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Crédito: Acervo comunidades Chupé e Akroá Gamela
por Adriana Amâncio*
O Estado brasileiro e grandes empresas do agronegócio foram condenados pelos crimes de ecocídio do cerrado e de genocídio dos seus povos. A sentença foi proferida pelo júri do Tribunal Permanente dos Povos, durante a sessão Cerrado, realizada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFGO).
O crime de ecocídio está caracterizado pelo desmatamento extensivo na região, que já acumula 100 milhões de hectares, superando a Amazônia, que tem pouco mais de 74 milhões de hectares em áreas desmatadas. Esse desmatamento é resultado dos avanços nos projetos de monocultivo de soja e de mineração. As condenações são simbólicas, sem valor jurídico, porém com impacto na comunidade internacional.
Também configura ecocídio a aplicação massiva de agrotóxicos no Cerrado, que reúne os estados campeões de consumo desse produto no Brasil. Quando aplicados por via aérea, os agrotóxicos provocam o efeito deriva, ou seja, se expandem e contaminam solo e águas O veneno tem sido usado também como armas químicas contra os povos tradicionais. Para se ter uma ideia, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), há uma medida cautelar em favor do povo indigena Kaiowá, do Mato do Grosso do Sul, vítima do lançamento aéreo de agrotóxicos em sua aldeia, por parte de fazendeiros.
Outro grande problema é a concentração de água. O cerrado abriga as nascentes que abastecem oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras. Ainda assim, a região concentra 50% das outorgas da Agência Nacional das Águas (ANA), das quais 60% servem a grandes projetos de agricultura irrigada. Já o crime de genocídio se configura pela tentativa de submissão dos povos indígenas e quilombolas a um projeto hegemônico e homogêneo.
Em todos os 15 casos denunciados na sessão, há relatos de povos afetados por escassez hídrica, fome e insegurança alimentar, vítimas de ameaças e ataques violentos, de adoecimento por contaminação com o uso de agrotóxicos e impedidas de vivenciarem a sua cultura e religiosidade. “Tanto na questão ambiental, quanto na questão humana, esses territórios estão sendo corrompidos até a desterritorialização de pessoas”, explica a integrante do júri e ex-procuradora da República, Deborah Duprat.
No território do Vale do Vão do Vico, localizado no município de Santa Filomena, estado do Piauí, viviam cerca de 80 famílias da etnia indígena Akroá Gamela, hoje, resistem apenas 17 famílias. A ação da empresa Dama Agronegócio, que atua no monocultivo de soja, reduziu a área e a capacidade de plantio dessas comunidades, por meio do desmatamento e uso extensivo de agrotóxicos e da grilagem de terras.
De acordo com a integrante da coordenação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí, Maria Mercês, essas comunidades tiveram suas casas destruídas pelos “projeteiros”, forma como os indígenas chamam os fazendeiros da região. Após esse conflito violento, as famílias montaram a aldeia em outra parte do território. Mesmo assim, segundo Mercês, hoje, os fazendeiros cultivam alimentos a 30 metros de distância da fronteira com o território indígena. A lei estabelece uma distância mínima de 100 metros.
À medida que o monocultivo de soja avança, o desmatamento da vegetação original também aumenta. Isso implica na extinção da prática “resto de toco”, uma forma de cultivo milenar, que consiste em colher os frutos deixando o tronco da planta de pé para que ela possa se regenerar. No preparo do terreno para o cultivo da soja, a mata é totalmente removida. Com isso, a Lagoa Feia, por exemplo, perdeu vazão devido ao assoreamento, denuncia Mercês. A retirada da vegetação das suas margens fez com que o barranco descesse para o leito. O desmatamento também leva ao aumento da temperatura no território, o que extinguiu o tradicional cultivo da fava.
A extinção dos mananciais de água ocorre também pelo uso massivo de agrotóxicos. Essas substâncias são lançadas de tal maneira que contaminam as casas, os solos, as águas e as áreas de cultivo. “As frutas que eles cultivam, hoje, tem cheiro e sabor diferentes por causa dos agrotóxicos”, afirma Maria Mercês. Um típico território indígena é formado pela casa, as áreas de cultivo de alimentos e de espécies medicinais e a área de espiritualidade.
Originalmente, todos esses espaços são ocupados e geridos de forma coletiva. Segundo Mercês, a ação do agronegócio mudou essa realidade. “Eles têm medo de andar na floresta e quando andam é em grupo. Se sentem ameaçados pelos fazendeiros! Sem contar que os jovens são aliciados e vão parar no trabalho escravo ou vão embora sem perspectivas de futuro na aldeia”, lamenta Mercês. Travar uma batalha judicial contra essas empresas não é nada fácil.
É comum os latifundiários arrendarem as terras para outras empresas, inviabilizando investigações judiciais em curso, iniciadas a partir de denúncias das famílias indígenas. Ou seja, a denúncia é registrada contra uma empresa, mas na hora das investigações descobre-se que elas não estão mais com a posse das terras em questão.
“Eles entram nas terras, ameaçam, usam armas e bombas, matam o gado, fazem barramento das nascentes e matam o brejo”, resume o agricultor Jamilton Santos, que vive na Fazenda Buriti, no Vale do Arrojado, localizada na região oeste da Bahia. Ele faz parte da comunidades que ocupa utiliza áreas de fundo e fecho de pasto, usadas para a criação animal coletiva das famílias que, hoje, resistem contra a ação dos grileiros de terra.
As terras estariam no centro de esquemas de vendas de sentença, que garantem a titularidade das terras a empresário com peso político no universo do agronegócio. Uma dessas áreas é a comunidade fecho de pasto Gado Bravo, que mede 12.900 hectares, da qual Jamilton faz parte, junto com outras 18 famílias. “Eles cooptam todo o aparato judiciário, tecnológico, que deveria estar a serviço do povo, corrompem lideranças, juízes, promotores, que ficam a serviço do capital, e usam milícias para expulsar o pessoal. E nós não temos o apoio de ninguém”, explica, que repetiu as mesmas acusações nas sessões do Tribunal.
Tanto as áreas de fundo de pasto, quanto de fecho de pasto servem para criação animal e extrativismo sustentável das famílias. A diferença é que a primeira fica próxima às comunidades que as utilizam, enquanto as comunidades de fecho ficam distantes das famílias que fazem uso das terras. O maior temor das famílias, segundo Jamilton, é que o agronegócio avance, tomando completamente as terras. “Se isso acontecer, o modo de vida das pessoas que vivem ali vai ser afetado, não vai ter onde as pessoas criarem os seus rebanhos, eles vão desmatar e as áreas de nascentes e de reserva possivelmente vão acabar. Na Bahia, as áreas preservadas que tem hoje, são de fundo e fecho de pasto”, conclui Jamilton.
O júri também condenou o Japão, país que apoiou a criação do Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), que fomentou, na década de 70, a expansão de grãos e outras commodities no cerrado. A China e os países da União Europeia, principais compradores dos produtos oriundos das atividades do agronegócio no bioma. Além das empresas Vale S.A, Bayer, Monsanto, Suzano Papel Celulose, Cargill, Bongi, o Fundo de Pensão de Harvard e o Banco Mundial. Este último exerceu um papel importante na adoção de políticas de austeridade nos estados brasileiros, especialmente após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, reduzindo o investimento em políticas sociais.
A petição do Tribunal foi realizada pela Campanha em Defesa do Cerrado, que ao longo do processo de preparação, realizou duas audiências temáticas sobre água e soberania e segurança alimentar. A preparação envolveu ainda a sistematização de dados de 15 casos de violações de direitos ambientais e humanos em nove estados cobertos pelo bioma: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão e Piauí. De acordo com o advogado da Associação de Trabalhadores Rurais da Bahia, Maurício Corrêa, “a petição foi motivada pela denúncia de um ecocídio que pode levar à extinção do cerrado se nada for feito.”
Além da sentença, o tribunal apresentou 26 recomendações prioritárias e urgentes. Uma delas é respeitar a essência da Constituição Federal Brasileira, que preconiza o debate amplo, participativo e democrático, em nível nacional, estadual e municipal, que permita às comunidades terem a sua própria noção de desenvolvimento. A segunda, é “avançar na institucionalidade, que foi perdida no governo Bolsonaro, recapacitando Funai, ICMBio e todas as instituições, que têm o papel de garantir direitos”, complementa Duprat.
Jair Bolsonaro e os governadores dos estados do Cerrado foram intimados pelo Tribunal, no dia 11 de novembro de 2021 e no dia 23 de junho de 2022 foi enviada a ata de acusação atualizada com a programação da sessão ocorrida em Goiana, entre os dias 8 e 10 de julho, em anexo. “É preciso registrar que ninguém respondeu, nem o presidente Bolsonaro, nem os governadores dos estados”, afirmou Deborah Duprat, durante a coletiva de imprensa de divulgação da sentença, transmitida através do canal do Youtube da Campanha em Defesa do Cerrado.
O Tribunal Permanente dos Povos surgiu no fim da década de 1960. A iniciativa do filósofo britânico Bertrand Russel, com o apoio do intelectual Jean Paul Sartre e do jurista Lélio Basso, foi instalada em Estocolmo, na Suécia. À época, a finalidade era julgar os crimes praticados pelos Estados Unidos contra as populações vítimas da Guerra do Vietnã. Em função disso, era chamado inicialmente de Tribunal de Guerra.
A ação teve continuidade, entre os anos de 1973 e 1976, com a realização do Tribunal Russel II, que se dedicou a investigar as violações dos direitos humanos praticadas durante as ditaduras militares da América Latina, incluindo o Brasil. O Tribunal passou a ter o caráter permanente em 1976. A partir de então, ele dedica-se a dar visibilidade às graves violações dos direitos humanos contra os povos subalternizados, com base na Declaração Universal dos Direitos dos Povos.
Em 2018, o crime de ecocídio foi incorporado ao estatuto do Tribunal. Esse crime refere-se a destruição dos ecossistemas de um território, limitando ou destruindo os recursos naturais oferecidos à população local. Trata-se de um tribunal de opinião, ou seja, não é obrigado a cumprir as medidas penais nacionais e internacionais. Entretanto, o espaço gera um volume robusto de dados e mobiliza diversos segmentos da sociedade acerca do debate sobre graves violações dos direitos humanos. Além de sentenciar os crimes, o júri também sugere medidas urgentes de reparação dessas violações.
*Jornalista e assessora de imprensa da ASA
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