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Estudo da UFPE e Iphan indicará caminhos para nova legislação do Sítio Histórico de Olinda

Maria Carolina Santos / 08/12/2025
A imagem mostra a Igreja da Sé, em Olinda, com fachada branca, detalhes amarelos e duas torres com sinos, situada próxima ao mar. Em frente à igreja, há uma área ampla com cadeiras organizadas em fileiras e uma tenda, sugerindo um evento ou cerimônia. Algumas pessoas estão próximas à entrada, e carros estão estacionados ao longo de uma via curva. O entorno é arborizado, com casas espalhadas pela paisagem. Ao fundo, o oceano completa o cenário com um toque sereno e natural.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Olinda é único. Uma mistura da arquitetura de seis séculos, em meio a um vasto verde, emoldurada pelo céu azul e o verde do mar. É só olhar para o horizonte do Alto da Sé para entender que o Sítio Histórico é algo que o Brasil deve preservar a todo custo. O tombamento de Olinda pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) veio em 1968. Em 1982, foi declarada Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Unesco. A segunda cidade brasileira a receber o título, depois de Ouro Preto, em Minas Gerais.

A legislação municipal que rege o Sítio Histórico é de 1992, mas, em 2023, o Ministério Público de Pernambuco recomendou que a lei fosse atualizada, levando em conta as novas dinâmicas da cidade. A legislação federal é da década de 1980. Para fazer essa atualização, o Iphan fez uma parceria técnica com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que, desde o ano passado, está fazendo pesquisas para diagnósticos que foram publicamente lançados de julho a setembro deste ano. O estudo, que segue até o próximo ano, traz um panorama da atual situação do Sítio Histórico de Olinda.

“Em relação a outras cidades históricas, Olinda já era mais ou menos privilegiada, porque já tem essa normativa federal desde 1982. E agora estamos fazendo esses estudos que vão dar os recursos para que essa normativa possa ser revista e atualizada pelo Iphan”, explicou a professora de arquitetura e urbanismo da UFPE Natália Miranda Vieira-de-Araújo, que coordena o estudo junto com a pesquisadora Juliana Barreto, do Laboratório de Urbanismo e Patrimônio Cultural da UFPE.

A ideia é que a próxima legislação seja mais detalhada, com parâmetros bem definidos, e que evite conflitos entre diferentes níveis de normas. “Em alguns setores, a sobreposição com a normativa federal ou planos posteriores revela inconsistências. Por exemplo, no Setor B do Sítio Histórico, existe a definição de uma taxa máxima de ocupação de 35%, o que conflita com a recomendação de preservar as características da vizinhança”, explica Juliana Barreto.

Falta de fiscalização é o grande problema

Apesar de várias fachadas do Sítio Histórico estarem claramente fora das normas – como se vê em uma rápida visita aos bares dos Quatro Cantos –, em grande parte as fachadas permanecem preservadas, mostra o diagnóstico. O desafio maior é no que acontece nas áreas internas das edificações, nos quintais e no âmbito da gestão municipal. “A legislação está defasada, mas a fiscalização é hoje o grande problema de Olinda. O controle urbano está muito prejudicado e houve uma erosão do setor de patrimônio na prefeitura. O Iphan também tem poucos técnicos”, aponta Natália.

Um dos maiores conflitos é o desrespeito à vocação residencial do Sítio Histórico, o que gera o abandono de imóveis e o uso inadequado de espaços. “A prefeitura muitas vezes demonstra pouca clareza na aplicação da lei. Existem usos que, em grande proporção, entra em conflito diretamente com o uso residencial do imóvel”, aponta a arquiteta e urbanista Juliana Barreto. Outro problema grave é a falta de capacitação dos servidores, o que impacta na aprovação desses projetos, permitindo intervenções inadequadas: “Já vimos projetos arquitetônicos que foram aprovados dizendo que vai ter demolições internas que não são permitidas. Então, o próprio corpo técnico da prefeitura aprova projetos que a lei atual não permite. É preciso mais rigor nessas avaliações”, acredita.

O mapa apresenta o acervo arquitetônico e urbanístico do Sítio Histórico de Olinda, em Pernambuco, destacando os setores que compõem a área protegida da cidade. A delimitação da zona tombada é indicada por uma linha vermelha, chamada de “Polígonal de Tombamento”. Dentro dessa área, os setores são organizados por cores: verde claro para os setores A1 e A2, verde amarelado para os setores B1 a B4, verde escuro para os setores C1 a C4, e amarelo para os setores D1 e D2. Cada setor representa diferentes níveis de preservação e características urbanas. O mapa também utiliza símbolos para marcar bens tombados (quadrados vermelhos) e monumentos não tombados (círculos amarelos). À direita, o Oceano Atlântico aparece como referência geográfica, e há uma escala gráfica que indica distâncias de até 600 metros, além de uma rosa dos ventos apontando o norte.

O Sítio Histórico de Olinda dividido em setores.

Crédito: LUP/UFPE

A integridade paisagística também está em risco devido à perda da cobertura vegetal, uma característica essencial de Olinda. Natália Vieira-de-Araújo lembra que, na década de 1960, o consultor da Unesco Michel Parent, que foi o responsável pelo primeiro parecer feito sobre o patrimônio de Olinda, disse que a cidade era “um jardim pontuado por igrejas e pelo casario histórico”. “Essa citação dimensiona a importância da cobertura vegetal para a paisagem de Olinda. O parecer de Parent serviu para iluminar o processo de tombamento nacional da cidade”, diz.

A consultoria da pesquisa revelou uma diminuição significativa da vegetação nos últimos 20 anos, com destaque para os quintais. Não foi possível quantificar essa perda, mas as imagens mostram que a citação já não é mais verdade: o verde está restrito a bolsões. Muitas das áreas verdes privadas, nos quintas, foram sendo transformadas em puxadinhos e espaços para festas, com a retirada de árvores e a construção de bares. A fiscalização precária também permite a circulação de veículos de grande porte nas ladeiras e ruas estreitas, o que é proibido por lei desde 1987, além de causar acidentes e fissuras nas paredes históricas devido à trepidação.

A pesquisadora Natália Vieira-de-Araújo ressalta que é preciso achar um equilíbrio. “A aplicação prática da legislação também enfrenta a falta de continuidade do serviço público, um problema crônico na gestão brasileira. Com a rotatividade de secretários e a aposentadoria dos técnicos mais antigos sem reposição por concurso público, o conhecimento e o compromisso com a preservação se perdem”, diz.

Apesar da falta de comprometimento das gestões municipais e da ameaça de descaracterização, Olinda ainda mantém seu fascínio. Recentemente, Natália ajudou a organizar um seminário internacional sobre patrimônio com pesquisadores e pesquisadoras do Chile, Bolívia, Espanha, Itália, Argentina, México e Estados Unidos, que ficaram hospedados em um convento no Alto da Sé. Todos ficaram encantados com a beleza do Sítio Histórico. “Mesmo com todos os desafios encontrados em Olinda, ainda temos muito pelo que brigar. Tem muito problema, tem muita transformação, mas temos um tesouro ali. A história não está perdida”, afirma Natália.

Os desafios atuais do Sítio Histórico de Olinda

Os diagnósticos elaborados pela pesquisa da UFPE/Iphan estão disponíveis no site do LUP. Aqui, um pequeno resumo da caracterização e dos desafios de cada setor do Sítio Histórico:

Setor A (Área urbana de preservação rigorosa): É o núcleo urbano com maior densidade monumental, incluindo Amparo e Carmo. É caracterizado pela presença de casario e sobrados de caráter colonial. A normativa federal atual estabelece um maior compromisso com o rigor das ações interventivas, buscando a preservação ampliada das tipologias construtivas de longa duração.

O principal desafio deste setor é a gestão dos detalhes: a lei em vigor reconhece a necessidade de “Planos especiais de quadras” para orientar as intervenções, mas eles nunca foram desenvolvidos. A legislação municipal, embora mais detalhada, é considerada difusa e, em alguns pontos, flexível demais, concentrando muita responsabilidade no servidor que analista a questão. Além disso, como parte da colina histórica, o Setor A enfrenta a ameaça persistente de riscos geotécnicos, como infiltrações e deslizamentos de terra. Os estudos identificaram também a degradação das estruturas de contenção, como muros, em edifícios religiosos e monumentos, além de sinais de movimentação lenta e progressiva do solo, fenômeno que afeta as estruturas históricas.

Setor B (Área urbana de preservação ambiental): É a zona de transição entre a área de proteção rigorosa e as ocupações mais recentes, incluindo trechos de Varadouro, Carmo, Guadalupe e Bonsucesso. Abrange áreas importantes onde se concentra a ocupação a partir do século XX, apresentando casas com afastamentos frontais e laterais. 

O maior desafio aqui é a imprecisão da legislação. A lei federal para o Setor B é criticada por utilizar parâmetros pouco precisos e que podem causar tensões, como a recomendação de que gabaritos e cores sejam assumidos em relação ao “caráter da vizinhança”. O diagnóstico revelou problemas de adensamento construtivo e ocupação irregular de quintais, principalmente em vias como a Estrada do Bonsucesso. Há também conflitos na paisagem, com o plantio de espécies vegetais sendo realizado sem levar em conta a essência do lugar e a visibilidade da paisagem histórica.

Setor C (Área verde de preservação rigorosa): É caracterizado pela densa vegetação, incluindo áreas dos bairros do Carmo e do Monte. É o setor que possui a segunda maior extensão do Polígono de Tombamento e tem forte presença da cobertura vegetal, incluindo as cercas conventuais, como do Mosteiro de São Bento e do Convento de São Francisco, o antigo Horto Del Rey (Sítio dos Manguinhos) e o Sítio de Seu Reis.

O principal desafio do Setor C é a preservação da vegetação e a gestão fundiária. A legislação existente é limitada em relação a definições e controle de usos para essas áreas verdes. Há uma pressão crescente por conta de ocupações irregulares, notadamente nas margens do Horto D’el Rey. Embora os conventos permaneçam, a forma de uso se modificou, impactando a continuidade da manutenção dessas áreas. Além disso, a lei exige a definição de parâmetros claros para as intervenções, o que ainda não foi totalmente consolidado.

Setor D (Área de proteção e ambiência da colina histórica): É a área ao redor da colina histórica, delimitando partes dos bairros de Guadalupe, Bonsucesso, Monte, Amparo e Amaro Branco. É marcado por ocupação espontânea e relativamente recente, sendo distinta dos Setores A e B pela escassez de qualidades arquitetônicas e históricas significativas no casario. Este setor é crucial para a proteção do ambiente e visibilidade do sítio.

O principal desafio é a fragilidade da paisagem visual e a falta de detalhamento normativo. A lei federal exige que o ambiente e a visibilidade sejam “desembaraçados de quaisquer elementos nocivos”, mas não detalha os procedimentos para isso. O diagnóstico de campo revelou que o local está comprometido pela presença de elementos adulterados e não tradicionais, como fiação exposta, postes, caixas d’água, equipamentos de climatização e publicidade excessiva, que interferem drasticamente na paisagem. Outro ponto crítico é a ausência de trabalhos acadêmicos específicos sobre a formação dessa vizinhança e sobre as manifestações culturais de raízes afro-indígenas que ali existem, resultando em menos subsídios para uma gestão culturalmente integrada.

A imagem mostra uma rua de paralelepípedos em uma área residencial, vista de um ângulo baixo próximo ao chão. Os paralelepípedos estão molhados, indicando chuva recente, e há pequenos tufos de grama entre eles. À esquerda, parte de um carro preto é visível; mais adiante, um carro branco está estacionado próximo a cones laranja. A rua tem uma leve inclinação e é ladeada por casas com fachadas coloridas. O fundo desfocado destaca o relevo e a textura das pedras no primeiro plano.

Deslocamento e afundamento do solo põem monumentos em risco

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org