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Lia de Itamaracá explica porque se sentiu usada pelo prefeito de Itamaracá
“Exoneraram Lia. Não avisaram a Lia. Eu estava em São Paulo quando a notícia correu”. Não se pode dizer que foi um espanto a exoneração de Lia de Itamaracá da prefeitura da ilha onde ela nasceu e se tornou a Rainha da Ciranda. Aos 81 anos, ocupando o cargo de secretária de Turismo, Cultura e Eventos, Lia, Patrimônio Vivo de Pernambuco e uma das artistas mais respeitadas do Brasil, passou oito meses “engessada” como gestora, nas palavras de seu produtor, Beto Hees.
“Eu me choquei e também não me choquei. Desde o início, não encontrei apoio em nada”, contou ela à Marco Zero. A reportagem foi até Itamaracá, na semana passada, conversar com a ex-merendeira que está prestes a receber seu quarto título acadêmico pelo reconhecimento à sua contribuição excepcional para a cultura.
Lia e sua equipe afirmam que nunca foram consultadas para nenhuma ação da pasta. Sequer participaram dos encontros de transição no Forte Orange depois da eleição do prefeito Paulo Galvão no ano passado, na época filiado ao PSDB, hoje no PSD. A primeira reunião com a participação dela como secretária aconteceu somente no final de agosto. Foi só aí que Lia tomou conhecimento da grade de programação artística do Festival de Verão da Ilha, que aconteceu de 5 a 7 de setembro, orçado em R$ 1 milhão.
A grade não contava com nomes locais da cultura popular. Lia e sua equipe ainda tentaram reverter a situação, propondo um Festival da Cultura como parte da programação, para contemplar e valorizar artistas da ilha, usando 10% do orçamento, ou seja, R$ 100 mil. Não conseguiram.
Lia se negou a assinar os empenhos do Festival de Verão. A resposta dessa vez chegou rápida: ela foi exonerada no dia 4 de setembro, sem qualquer diálogo prévio. Alguém precisava assinar a papelada do festival que começaria no dia seguinte. O novo nomeado é Gebson Santos, formado em turismo, pós-graduado em produção de eventos e ligado ao prefeito Paulo Galvão.
“Eu estava em São Paulo quando a notícia correu. Tem que chegar perto da pessoa, esperar a pessoa chegar para sentar, conversar. Explicar o que quer, o que vou fazer, se podiam fazer mesmo o que fizeram ou não. Simplesmente eu recebi a notícia”, conta Lia.
A artista resumiu assim o cenário de expectativa versus realidade como secretária: “Eu fiquei sem saber por onde vou voar nem por onde vou sair. Eu esperava que ao menos se comunicassem melhor”.

Quando perguntada sobre o que ficou pactuado com o prefeito Paulo Galvão quando assumiu a pasta, a Rainha da Ciranda resumiu: “Ficou o nada. Ele (o prefeito) não explicou o que a secretária ia fazer e o que dependia da secretária. Fiquei sem apoio. Como é que pode acontecer um negócio desse?”, questiona. Lia admitiu à MZ que se sentiu usada.
O Festival da Cultura terminou acontecendo no Centro Cultural Estrela de Lia, nos dias 6 e 7, como parte de um projeto financiado com emenda parlamentar de R$ 500 mil do deputado estadual Humberto Costa (PT).
Lia e sua equipe devem terminar 2025 com uma captação em projetos e emendas próxima a R$ 4 milhões, superior ao orçamento anual da Secretaria de Turismo, Cultura e Eventos de Itamaracá, de R$ 3 milhões. “Quer dizer, a gente é competente”, diz Beto. Lia costuma fazer entre 10 e 15 shows por mês, tem uma equipe de 33 pessoas trabalhando com ela e três bandas.
“Eu sai tranquila, de peito erguido. Eu sou Lia”, declarou durante a conversa. “Eu, graças a Deus, estou sã e salva. O que eu tenho para dizer é que eu sou feliz. Eu sou Lia. O que eu faço eu não vou deixar de fazer. Eu amo Itamaracá, sou filha de Itamaracá, para onde eu vou é com Itamaracá. Então, por favor, se me exonerou, quem vai assumir que Deus ajude”, complementou.
As dificuldades com a gestão do prefeito Paulo Galvão, segundo Lia e sua equipe, começaram antes mesmo da assinatura do cargo de secretária municipal. Em novembro do ano passado, ela foi convidada pelo prefeito recém-eleito para uma conversa.
Quem narra a linha do tempo, na Câmara de Vereadores, é Beto Hees: “Era uma oportunidade de a gente saber o que é que ele tinha programado para a ciranda, a cirandeira e o nosso trabalho. E lá nos surpreendeu que Lia foi convidada para assumir a Secretaria de Turismo, Cultura e Eventos de Itamaracá. Ficamos contentes com a possibilidade de fazer política pública para a cultura. Ficamos honrados e aceitamos”.
O desejo de Lia era estar à frente da cultura da ilha. “Eu expliquei, eu não sei fazer turismo, eu não trabalho com o turismo, eu trabalho com a cultura”, comentou na entrevista. Mesmo assim, resolveu aceitar o convite, em favor de Itamaracá.
Lia conta que nunca foi consultada pelo prefeito para discutir cultura da ilha
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A novidade foi amplamente divulgada no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. “Não por acaso”, pontua o produtor. “E aí, até março a gente não sabia se ela foi nomeada, se não foi nomeada. Até que eu publiquei (nas redes sociais) que eram fake a nomeação e o convite”, conta.
Um ou dois dias depois, Lia foi procurada pela primeira-dama de Itamaracá, Rúbia Chagas Galvão, que é secretária de Políticas Sociais do município, para “levar o papel que ela tinha esquecido de levar para Lia e comunicar à equipe dela que ela tinha sido nomeada em 2 de janeiro”. Mesmo assim, só ela foi confirmada, sozinha, sem ninguém para compor sua equipe.
Somente em 31 de julho, ou seja, oito meses depois do convite do prefeito, é que uma pequena equipe foi nomeada. “A partir daí era que a secretária poderia atuar. Porque Lia não é gestora, todo mundo sabe”, comenta o produtor Beto. Somente um mês depois Lia participou de sua primeira reunião como secretária de Itamaracá. Ela foi chamada para a apresentação do Festival de Verão da Ilha, um projeto orçado em R$ 1 milhão e que já chegou pronto em suas mãos.
Foi aí que a equipe de Lia começou a questionar a grade de programação artística e Lia comunicou que não assinaria nenhuma ordenação de despesa que não tivesse passado por sua avaliação como gestora. “Nós deixamos bem claro que, para assumir, Lia tinha que ter autonomia e participar de tudo que fosse feito pela secretaria”, lembra Beto. Não foi isso que aconteceu.
“Isso também é uma forma que acontece muito quando as pessoas negras atingem um lugar de poder. Às vezes, são escolhidas como vitrine para dizer que não tem racismo”, avalia o produtor.
Amigas e amigos, população de Itamaracá,
Não estou deixando a cultura, mas a Prefeitura Municipal da Ilha de Itamaracá. Meu compromisso com a cultura popular e por todos aqueles que fazem a permanece vivo porque caminha comigo.
Depois das minhas últimas declarações sobre os entraves que vinha enfrentando como Secretária de Turismo, Cultura e Lazer, recebi a notícia da minha exoneração feita pelo prefeito Paulo Galvão nesta noite. Estou em São Paulo onde me preparo para uma sequência de apresentações. Daqui, reitero meu compromisso com a seriedade do meu trabalho e preocupação com um nome que construí ao longo de mais de 70 anos de carreira com muita resistência, inclusive para ser respeitada como mulher e representante da cultura pernambucana pelo mundo.
Eu não poderia fazer o contrário agora. Não concordei com projetos que não pude opinião em nada, nos quais não tive direito de decisão sendo titular da pasta. Minha equipe também não foi consultada para a destinação de recursos para a contratação de bandas dos eventos que serão realizados na cidade, onde não haverá a participação de artistas da cultura popular. Também fui desrespeitada pela gestão municipal quando fui exonerada temporariamente numa manobra administrativa para realização de eventos.
Na próxima semana tenho uma conversa com o Ministério Público de Pernambuco para esses fatos. Enquanto gestora pública, cargo para o qual fui convidada, mas não pude exercer, esse também é meu papel.
Seguirei fazendo minha ciranda de mãos dadas com minha Ilha. Lia não se cala, Lia não se curva e ninguém desmerece ou desrespeita Lia de Itamaracá.
Itamaracá, 4 de setembro de 2025.
A Marco Zero procurou a Prefeitura de Itamaracá para saber das expectativas que tinham ao nomearem Lia secretária. A resposta veio em forma da nota que a gestão já havia publicado nas redes sociais e para a imprensa.
A Prefeitura da Ilha de Itamaracá reconhece a imensa contribuição de Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo da cultura popular e referência mundial da ciranda, que há mais de sete décadas leva o nome de Pernambuco e de nossa Ilha para além das fronteiras.
A exoneração do cargo de Secretária de Turismo, Cultura e Eventos não diminui, em nada, o respeito, a admiração e a gratidão que temos por sua trajetória. A medida foi tomada visando a melhor gestão da pasta, diante de incompatibilidades e divergências de ideias entre a equipe indicada por Lia e a atual gestão, especialmente quanto à condução dos projetos culturais do município.
Reafirmamos que Lia de Itamaracá seguirá sempre celebrada, apoiada e respeitada pela Prefeitura, pois sua história é motivo de orgulho para todos os itamaracaenses. Sua voz, sua força e sua ciranda continuarão inspirando gerações.
Nosso compromisso permanece firme em valorizar as tradições locais e fortalecer a cultura da Ilha de Itamaracá, para que siga sendo reconhecida em todo o Brasil e no mundo.
Ilha de Itamaracá, 8 de setembro de 2025
Prefeitura Municipal da Ilha de Itamaracá
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com