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“Bom dia! Estamos com 19 remoções pendentes, inclusive dois idosos com fratura de fêmur e urgência dialítica. Precisamos de liberação de maca”. A primeira mensagem de mais um dia de trabalho, em um grupo de WhatsApp com profissionais e gestores da Secretaria Estadual de Saúde (SES), responsáveis pelas UPAs, revela o drama que esses profissionais têm enfrentado. A saudação, seguida de um pedido desesperado de ajuda, é de uma integrante da equipe de gestão de uma unidade no Grande Recife.
“Temos pacientes que esperam [transferência para hospitais] há seis dias”, reforça ela, na tentativa de sensibilizar os superiores. Sem respostas, a profissional exausta lamenta: “Por isso o plantão permanece restrito. Iremos solicitar aos pacientes que procurem outra unidade, infelizmente não temos mais espaço para acolhimento. Só dispomos de um respirador livre”.
Até mesmo para leigos, sem intimidade com os jargões da área da saúde, é fácil entender que a mulher que intercede por quase 20 doentes – entre eles pacientes infectados pelo novo coronavírus – reclama da falta de macas. A ausência do equipamento básico na UPA impede que os enfermos, que já tiveram as vagas em hospitais confirmadas pelo setor de regulação da própria SES, sejam removidos para as unidades de alta complexidade. E sem as macas as ambulâncias não rodam.
Sem acesso ao serviço médico adequado, esses pacientes que aguardam uma maca ficam expostos a contaminações enquanto assistem suas chances de recuperação diminuírem a cada minuto perdido. Ao mesmo tempo, quem procurou a UPA naquela manhã se deparou com o “plantão restrito”, ou seja, não passou sequer pelo vigilante na porta de entrada, e foi condenado a perambular atrás de outra unidade que ao menos tivesse espaço físico para lhe receber.
“A retenção de macas nos hospitais é um problema recorrente. A diferença é que nos meses mais críticos da pandemia os pacientes de Covid-19 iam para os hospitais de campanha e lá tinham leito, e os outros doentes eram acomodados nos hospitais da rede. Sem essas unidades provisórias e com o aumento de casos, desde outubro, está tudo lotado. Então, quando o doente é transferido, mesmo que a regulação indique o leito, o que há na verdade é um espaço para ele ficar com a maca”, explica em reserva um servidor da SES.
A médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez, explica que o gargalo logístico no gerenciamento das macas é um sintoma de problemas mais graves da própria rede de saúde de Pernambuco. Para a especialista, o cenário comprova o erro de estratégia de, no passado, investir em UPAs e não na ampliação da capacidade dos hospitais existentes. O resultado: unidades, que deveriam ser de passagem, acabam “funcionando como instâncias burocráticas para distribuição de senhas”.
“As UPAs fariam sentido se fossem construídas em bolsões com no mínimo 100 mil habitantes que não tivessem no território ou próximo os serviços de urgência e emergência. As UPAs deveriam ser essa porta de entrada para a alta complexidade, mas se tornaram uma espécie de dificultador para que o usuário chegue dentro do tempo terapêutico que ele precisa para se recuperar de acordo com a situação clínica. Na verdade, o que temos hoje é uma contrarregulação”, avalia.
Para a especialista, com a chegada do Sars-CoV-2 o estado repetiu o erro de investir em novas estruturas ao invés de fortalecer a rede já existente. Mas pecou ainda mais ao desmobilizar os hospitais de campanha antes de controlar a circulação do vírus.
“De maneira precoce desmontaram os hospitais de campanha. Um equívoco, pois tivemos um aumento exponencial dos casos de Covid-19, depois um platô alto e uma desaceleração muito lenta, ou seja, não houve o controle da pandemia e agora temos essa franca restrição de leitos em UPAs e hospitais à beira de uma segunda onda”.
Bernadete completa sua análise destacando que a crise das macas traz à tona o erro estratégico de pensar no combate à pandemia apenas numa lógica baseada na estrutura hospitalar, deixando de lado a vigilância epidemiológica. A médica diz que Pernambuco perde a oportunidade de aproveitar a capilaridade das equipes de saúde da família e fazer como em outros lugares do mundo que tiveram sucesso em relação à Covid-19 testando e rastreando os casos.
“Precisamos da abertura de novos leitos de enfermagem e UTIs, mas não apenas isso. Mais vagas não tira o vírus de circulação, na verdade sinaliza uma lógica perversa se analisarmos a mensagem simbólica que o governo está passando com a abertura de tudo e a pouca fiscalização em bares e no transporte público, por exemplo, que é: ‘se infectem, caso morram, morreram em um leito’. Não dá mais para culpar a população quando há uma clara falta de comando do governo estadual”, destaca a especialista.
As macas que faltam nas UPAs se amontoam nos corredores ou em salas superlotadas dos hospitais. Fotos e um vídeo anexados a uma denúncia que está sob investigação do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) mostram a realidade no Hospital Otávio de Freitas, zona oeste do Recife: pacientes e acompanhantes por todos as salas, corredores, muitas vezes em macas rente ao chão.
“Após sofrer um acidente vascular cerebral, meu pai ficou 12 dias internado no Hospital da Restauração em cima de uma maca do Hospital Geral de Areias. Ele foi acomodado primeiro em um corredor depois em uma sala com mais outros 20 pacientes ao lado de uma ala para doentes com Covid-19. Quatro dias após receber alta, ele morreu com febre, dores no corpo e dificuldades para respirar. Três dias depois do sepultamento o resultado do exame, positivo para coronavírus”, conta o músico e pesquisador Henrique Correia.
Ainda tentando se recuperar da morte do senhor José Edmirson Correia, que tinha 89 anos, Henrique relembra o cenário “chocante” que o seu pai e outros doentes foram submetidos, no fim de novembro. “É como em uma guerra, todos os procedimentos são feitos ali em cima de uma maca, equipamento que tivemos que esperar 24 horas para fazer a transferência considerada de urgência”, resume. “Não condeno os profissionais, a realidade é que estava lotado demais e cada vez mais chegando gente, e o hospital não tem capacidade para atender todo mundo”, completa.
A grave situação das UPAs e dos hospitais em relação a falta de leitos e à retenção das macas se tornou alvo de um inquérito civil no Ministério Público de Pernambuco (MPPE). A promotoria de defesa da saúde notificou todos os grandes hospitais para que informem o número de leitos de retaguarda em cada unidade.
“Pedimos informações aos hospitais para entender melhor qual a real situação e assim poder atuar para começar a solucionar esse problema e garantir o mínimo de dignidade no atendimento aos pacientes. Não é um assunto fácil de se resolver, não basta comprar mais macas, mas precisamos enfrentar e pensar juntos soluções”, afirma a promotora de defesa da saúde, Maria Ivana Botelho.
O prazo para que os hospitais cumpram o pedido do MPPE é até janeiro do ano que vem. Maria Ivana espera que no dia 19, data em que ocorrerá a audiência entre a promotoria e a SES, os dados estejam apresentados e partir deles se construa um plano de ações para garantir agilidade no atendimento aos pacientes.
“Há casos em que o paciente começa o tratamento no hospital de alta complexidade, mas depois pode continuar o acompanhamento em uma unidade de baixa complexidade. Podemos identificar hospitais, inclusive públicos, que possam absorver essa demanda”, sugere a promotora.
Maria Ivana diz que também espera que o estado, por meio da Secretaria de Saúde, e as direções dos hospitais compreendam a urgência da demanda. “Não podemos esquecer que graças a tal ‘PEC do fim do mundo’ temos o congelamento dos investimentos em saúde pelos próximos anos. A área que tem a maior inflação do setor público terá menos dinheiro em 2021 e a pandemia continua. De fato, é uma emenda à constituição que condena a população à morte”, afirma.
A Marco Zero Conteúdo procurou o governo de Pernambuco por meio da Secretaria Estadual de Saúde, mas até a publicação desta reportagem não foi dada nenhuma resposta.
Dentre os questionamentos feitos pela reportagem estão como a SES organiza a logística desde o acolhimento do paciente nas UPAs? Por quê o problema de retenção de macas não é solucionado? Quais são as medidas que a pasta está tomando para mitigar esse problema?
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