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Crédito: 14º BI Mtz
Um médico recém-formado está internado na UTI de um hospital particular do Recife após ter desmaiado durante um treinamento físico no Exército. O médico, que será identificado nesta reportagem apenas como F., estava há uma semana na formação do 14º Batalhão de Infantaria Motorizado em Jaboatão dos Guararapes, comandado pelo tenente-coronel Joel Cajazeira Filho, quando foi obrigado a fazer de 150 a 200 polichinelos, sequências de flexões e depois correr por três quilômetros. De acordo com relatos de colegas, ele chegou a cair por três vezes durante o percurso e foi obrigado pelos militares a seguir, sendo agredido por tapas. Da quarta vez, ele não se levantou.
Era o terceiro dia de treinamentos físicos da formação quando F. passou mal, nesta quarta-feira, 8 de fevereiro. “Na série de polichinelos ele já começou a pedir para parar. Aí deram um tapa nele. Nenhum dos colegas médicos teve permissão para atendê-lo”, conta a mãe, que também é da área de saúde e pediu para não ser identificada nesta reportagem. Segundo ela, F. saiu de casa às 4h para começar o treinamento às 6h30. Às 8h ela recebeu uma ligação de que ele havia sido encaminhado para a UPA de Jaboatão após convulsões.
Ela afirma que nem no Batalhão do Exército nem na UPA o filho recebeu tratamento adequado. “Fizeram aberrações no atendimento. Aplicaram diazepam nele antes de levar para a UPA. Lá, nenhum tipo de exame foi feito. Cheguei e ele ainda estava em contenção mecânica (amarrado), desorientado, desidratado ao extremo”. F. também estava com escoriações da queda que levou ao desabar de exaustão. A frequência cardíaca também estava alta e outros sinais vitais comprometidos.
No hospital particular, F. foi submetido a vários exames que mostraram um quadro renal complicado. Ele foi diagnosticado com rabdomiólise, uma síndrome que acontece quando a destruição das fibras musculares é tão intensa que libera uma proteína na corrente sanguínea, afetando os rins e, em casos graves, até o coração. É um quadro que pode deixar sequelas, como a insuficiência renal.
A mãe de F. questiona o motivo de militares sem formação em Educação Física, ou qualquer área ligada à saúde, serem os responsáveis por conduzir o treinamento físico dos aspirantes. “No treinamento, nem água ele podia tomar. Ele vinha já de um processo de fadiga pelo terceiro dia seguido e o organismo entrou em exaustão. Meu filho é sedentário, ele não tem preparo físico. Ele estudou para ser médico e salvar vidas”.
F. segue na UTI sem previsão de alta, mas apresentando evolução com melhora. O processo inflamatório dos músculos ainda está em fase ativa e a função renal vem sendo monitorada a cada seis horas com coletas e exames laboratoriais. “A parte neurológica está sendo sendo investigada, os exames até agora estão normais. O momento ainda requer cuidado e vigilância”, afirma a mãe.
Com 23 anos, F. se formou em medicina no final do ano passado. Pela lei, os brasileiros que estiverem cursando as faculdades de Medicina, Farmácia, Odontologia ou Medicina Veterinária no ato do alistamento militar, aos 18 anos, podem solicitar o adiamento da incorporação até o término do curso. Após o período de treinamento físico, que dura 45 dias, eles entram no estágio de formação de oficiais temporários médicos, farmacêuticos, dentistas ou veterinários.
F. entrou no Exército como voluntário. Após o treinamento em Jaboatão, ele passaria o restante do ano trabalhando como médico no Hospital Militar de Área do Recife, na Boa Vista, no centro da capital pernambucana.
Parentes e amigos temem que os colegas de F. sofram retaliações ao longo do período obrigatório no Exército. A mãe dele contou à reportagem da MZ que solicitou que os pertences do filho fossem entregues a colegas que estão no mesmo grupo de aspirantes. “Ficaram preocupados, com medo de serem vistos como amigos de F. e sofrerem retaliações”.
Agora, a família quer denunciar os responsáveis por colocar o filho na UTI. De acordo com a mãe, não há condições psicológicas para que o filho volte para o Exército. A família pretende solicitar a baixa na carteira de reservista de F. “Está caracterizado o crime de tortura. Ainda não tivemos condições de ir na delegacia prestar queixa. Estou 24 horas com ele na UTI”, afirmou. O Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe) e o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) também estão sendo instados por amigos e familiares a abrir sindicância sobre o caso.
Em nota, o Cremepe informou que protocolou, na tarde desta quinta-feira (09), a instauração de sindicância ex-officio para apurar o ocorrido e que todos os expedientes correm em sigilo processual, para não comprometer a investigação, e segue o que estabelece o Código de Processo Ético Profissional (CPEP). A Marco Zero também entrou em contato com o Simepe e o Comando Militar do Nordeste. O Simepe não deu resposta, mas a seção de comunicação social da 10{ Brigada de Infantaria Motorizada informou que a “solicitação será respondida em breve”.
Uma tia de F. fez um desabafo que circula nas redes sociais e ajudou a dar repercussão ao caso. Um trecho fala que os aspirantes são submetidos a “sessão de horrores diária, constrangimento moral e psicológico, para uma turma de médicos, que se dedicaram por seis anos em uma faculdade para salvar vidas e terem suas vidas colocadas em risco por uma instituição que se diz séria e que deveria zelar por eles. Em pleno 2023 ainda acontecendo esse tipo de coisa em treinamento das Forças Armadas. O que querem formar? Será que desejam formar cidadãos ou levar à exaustão, até a morte, seres humanos que escolheram salvar vidas?”.
A Marco Zero também conversou com o pai de um dos outros 25 médicos que está no mesmo grupo. Abalado, o filho não quis falar com a reportagem. “O exército tem certas atitudes em treinamento, já sabidas. É um treinamento duro, rígido. Eu preparei o meu filho para isso, conversei com ele. Mas o que ele estava me contando é muito, muito além do que eu esperava”, afirmou C., que por temer represálias ao filho, também preferiu falar sob anonimato.
Os relatos que C. ouviu do filho em apenas uma semana de formação – e três dias de treinamento físico – mostram uma rotina cheia de machismo, homofobia, pressão psicológica e assédio moral. “A tia de F. chamou de tortura. É bem por aí. Criamos nossos filhos de forma empática, respeitando as diferenças, sem preconceitos. E o que vi foi meu filho ser submetido a um tratamento desumano ea situações esdrúxulas”, afirmou.
Segundo ele, o despreparo do Exército já começou no exame físico do grupo de médicos. “Foi muito rápido e frágil”, conta. No primeiro dia de formação, na quarta-feira da semana passada (1º de fevereiro), mesmo sem avaliar realmente as condições físicas de cada um, o grupo de médicos teve que carregar camas beliches do térreo para um primeiro andar. “Depois, mandaram que eles forrassem a cama. E aí passava um oficial desforrando e xingando eles, e que tinham que forrar de novo. E isso se repetia. É algo que não leva a canto nenhum, só degrada a imagem do ser humano”, afirma.
As humilhações eram diárias. Se alguém não conseguia completar um exercício, era alvo de comentários homofóbicos e misóginos. Só tinham dez minutos para almoçar. “Engoliam a comida”, conta C. “Não acho que médico deve ter um tratamento melhor do que ninguém. Mas todos têm que ser tratados com respeito. Não respeitaram o ser humano. Em apenas poucos dias vi meu filho ficar desfigurado”, conta.
A formação dura, ao todo, 45 dias, sendo boa parte de treinamento físico. Depois, os médicos viram oficiais e passam a receber um salário e a trabalhar em quartéis, batalhões ou hospitais do Exército pelo restante do ano. No meio do processo, recebem a patente de tenente.
E são justamente dois tenentes de carreira no Exército, ou seja, que não possuem nenhum curso superior, os apontados como os principais responsáveis pelo assédio moral. “Não sei se eles queriam se impor, se foi um sentimento de complexo de inferioridade, mas disseram que estavam no Exército há nove anos e só agora eram tenentes, enquanto o grupo de médicos em poucos meses vão virar tenentes”, afirmou C.
Um outro episódio contado pelo filho de C. foi sobre as “tarefas de casa” que os médicos têm que fazer após o expediente. Em um dia na semana passada eles tiveram que decorar quatro canções militares. Como dois homens do grupo não conseguiram cantar corretamente as canções, todos os 25 médicos não foram dispensados às 17h, como seria o usual. Ficaram até ás 20h30 no batalhão, até que todos decorassem as canções. Outra “tarefa de casa” foi escrever uma redação sobre porque não se deve chegar atrasado no batalhão.Na chuva forte que atingiu o Grande Recife na segunda-feira (06), foram obrigados a ficar embaixo de goteiras das calhas.
Nesta quarta-feira, os médicos aspirantes chegaram e foram fazer o treinamento físico. Quando F. passou mal e desabou no chão os militares não pararam a corrida, nem deixaram ninguém parar ou mesmo olhar para trás. “Eles diziam sempre que ali era um quartel e que se alguém desobedecesse poderia ser preso. Quando F. desmaiou disseram que era para continuar a correr”, conta C. O grupo de médicos também foi impedido de atender o colega. “Foram impedidos de cumprir o juramento de Hipócrates, que acabaram de fazer na formatura. Isso é grave, gravíssimo”, diz C.
Ao contrário de F., o filho de C. não se voluntariou para o Exército. Foi obrigado pela lei. “Não entendo porque o Exército trata os profissionais dessa forma. Está precisando de médicos, de dentistas, enfermeiros e os afastam. Todos os 25 médicos que entraram semana passada não querem mais ficar no Exército”, diz.
Após o ocorrido com F., todos os médicos aspirantes foram transferidos de unidade, dentro do mesmo Batalhão. Também ficaram sabendo que os dois tenentes que estão sendo apontados como responsáveis pelo assédio irão ser alvo de um inquérito militar. A Marco Zero ainda não conseguiu confirmar essa informação com o Exército. “Vamos ver o que acontece depois desse inquérito, espero que não acobertem os responsáveis. Depois de quatro anos em que a imagem do Exército foi completamente desgastada, algo assim deve ser tratado com muita seriedade”, afirmou C.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org