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Para Flávio Dino, “lentidão do Governo Federal no vazamento do óleo dificulta as ações dos estados”

Débora Britto / 23/10/2019

Foto: Gilson Teixeira

Não foi difícil entrevistar Flávio Dino. Bastou uma troca de mensagens pelo whastapp, durante uma tarde, para sua assessoria separar 30 minutos na agenda do governador do Maranhão, apontado pelo próprio presidente da República como o mais incômodo dos governadores do Nordeste ou “o pior dos paraíbas”. Ao destilar seu preconceito, involuntariamente Jair Bolsonaro acabou incluindo o nome de Dino na lista dos pré-candidatos à presidência.

Na sala de reuniõesno Palácio dos Leões, em São Luís, onde recebeu a repórter Débora Britto, ele não negou nem confirmou a intenção de concorrer em 2022, mas abre o caminho para crescer sua imagem nacionalmente. As declarações mais incisivas são direcionadas a Bolsonaro, com bastante ênfase à atuação do Governo Federal no desastre ambiental nas praias nordestinas.

O único ponto de concordância com o presidente parece ser a questão do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com Estados Unidos, que permite o uso comercial da Base de Alcântara. Ao menos, por enquanto.O Acordo foi aprovado na Câmara dos Deputados na noite da terça-feira (22) por 329 a favor e 86 contrários. Uma das principais discordâncias de parlamentares com o projeto é com relação ao destino das terras de comunidades quilombolas da região – Dino, por sua vez, afirma ser contra a ampliação territorial da base, que implicaria a retirada de mais famílias da região. O projeto seguirá para o Senado e, depois, será submetido à sanção de Bolsonaro.

Quando se trata de figuras da esquerda, como Ciro Gomes (PDT) e o ex-presidente Lula (PT), a postura é conciliatória. Dino fala em superar o “clima de ódios ou de disputas em nosso próprio campo [esquerda]” e foca em reorganizar as forças progressistas para as eleições municipais de 2020.

Reeleito em 2018 com 59% dos votos, Dino desbancou a oligarquia Sarney no estado. Em São Luís, capital do Maranhão, ofusca a prefeitura, do PDT, e arrebata simpatia dos eleitores. Ao conversar com ludovicenses – quem nasce na capital – apesar do ceticismo com a política, Dino é citado como alguém do povo, acessível.

A entrevista aconteceu na sexta-feira (18), na semana em que a Câmara Federal preparava-se para votar o acordo de Alcântara e os noticiários eram tomados pela confusão entre a família Bolsonaro eo PSL, seupartido.Confira a seguir:

Relação com o Governo Bolsonaro

Em nossa relação com o Governo Federal, procuramos conjugar duas dimensões. Uma delas é o pluralismo político, mantendo nosso dever e nosso direito de criticar as coisas com as quais não concordamos com muita clareza, com muita nitidez; em segundo lugar, claro, procuramos dialogar tanto quanto possível, em nome das relações administrativas e federativas.

Temos a continuidade de programas com o Governo Federal, programas que tinham sido conveniados antes do início do governo do atual presidente da República, porém não temos tido avanços substantivos em novas ações. Na verdade, notamos, de um modo geral, muita paralisia administrativa por parte do Governo Federal em nosso estado, mas me parece que essa é uma realidade comum a outros estados do país, de modo que vivemos um quadro de crescentes dificuldades. Precisamos, sim, que o Governo Federal atue junto com os estados e junto com os municípios para que a gente consiga ampliar as políticas públicas.

Na temática ambiental, em particular, temos tido muita discordância, muita dissonância, pois há uma visão estigmatizante e de combate a certas políticas e mesmo a leis que foram conquistadas ao longo de décadas. O Governo Federal tem diverge do patrimônio que nós construímos desde o advento do artigo 225 da Constituição da República.

Isso faz com que, em episódios como o das queimadas na Amazônia ou nessa tragédia do vazamento de óleo no Nordeste, ocorra muita lentidão na presença do Governo Federal para ajudar os estados. E nós desejamos muito que esse quadro seja superado e tenhamos o estreitamento das relações administrativas sem sacrificar, claro, o direito de fazermos as críticas políticas que sejam necessárias.

Limites e possibilidades do Consórcio Nordeste

Os consórcios que reúnem os estados são uma construção institucional bastante recente. Nós tivemos, inicialmente, a constituição do consórcio Brasil-Central e, quase simultaneamente, a formação dos consórcio da Amazônia Legal e Nordeste. O Maranhão faz parte dos três consórcios, por sua posição geográfica e geopolítica, assim eu acompanho todas essas experiências. Por ser algo inovador e muito recente, nós estamos nos passos iniciais de construção de uma nova feição do federalismo, com êxitos e também com dificuldades.

No caso específico do Consórcio Nordeste, creio que tivemos uma experiência bem sucedida no âmbito da chamada reforma da previdência. Lembro que o documento que pautou, em larga medida, a resistência aos retrocessos sociais foi assinado aqui, nesta mesma mesa, que foi a Carta de São Luís, em que os nove governadores do Nordeste se opuseram muito fortemente a uma série de medidas que seriam especialmente danosas para os mais pobres do país, não só do Nordeste. Medidas que iriam sabotar a economia de toda a nossa região, uma vez que o pagamento com justiça de benefícios previdenciários melhora o perfil de distribuição de renda o Brasil e incorpora cidadãos e cidadãs ao mercado de consumo formal. Ou seja, estávamos falando também de empregos e da economia regional.

Creio que esse foi o grande êxito recente do Consórcio Nordeste. Evidente que há outras ações que estão em curso, a exemplo das compras conjuntas: estamos realizando a primeira compra conjunta na área da saúde. Eu tenho muita expectativa que isso resultará na redução de custos e, portanto, na economia de dinheiro público. E isso interessa à toda sociedade.

Também aprovamos recentemente, em uma reunião em Natal, a nossa proposta de reforma tributária, que já foi formalizada em proposta de emenda à constituição subscrita tanto por deputados de todas as regiões do país. Nós chamamos essa proposta de reforma tributária justa, solidária e sustentável. E isso nasceu no Consórcio Nordeste. Olhando assim, já temos um patrimônio de êxitos a apresentar.

Consórcio Nordeste e a tragédia do vazamento de óleo

Ao mesmo tempo, há algumas dificuldades, a exemplo dessa temática do vazamento de óleo, pois, até agora, nem chegamos a um diagnóstico, o que nos impede de tomar medidas concretas. Os estados podem exercer poder de polícia, poder de punição, aplicar multas e buscar reparação de danos, mas ainda não há nitidez de como e onde postular isso.

Hoje mesmo [a entrevista foi realizada na sexta-feira, 18 de outubro] foi divulgado um estudo da UFRJ dizendo que o vazamento teria se dado num suposto quadrilátero de 100 quilômetros quadrados, situado a 600 quilômetros da costa brasileira, provavelmente situado em águas internacionais. Então, até agora, não tivemos uma ação punitiva, de ressarcimento ou de busca por reparação dos graves danos ambientais que foram infringidos à nossa região porque estamos aguardando a conclusão das investigações, que cabe exclusivamente ao Governo Federal, afinal o mar territorial, de acordo com o artigo 20 da Constituição, pertence à União, ou seja, não tenho poder de polícia sobre o mar. Quem tem são os órgãos federais, como o Ibama e a própria Marinha, que têm o dever de investigar e elucidar.

Praia de Itapuama, no Cabo de Santo Agostinho, em 21/10/2019. Sem o Plano Nacional de Contenção, centenas de voluntários recolhem material. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Praia de Itapuama, no Cabo de Santo Agostinho, em 21/10/2019. Sem o Plano Nacional de Contenção, centenas de voluntários recolhem material. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Se forem identificados os responsáveis, aí sim, posso afirmar com toda segurança no caso do Maranhão e conhecendo também meus colegas do Nordeste, com certeza haverá essa atuação. Voltamos assim à sua primeira pergunta: a lentidão do Governo Federal dificulta, inclusive, que os estados possam cumprir aquilo que a lei manda.

As consequências do desastre ambiental

Nesses últimos 15 dias, temos debatido intensamente o tema em nossas reuniões virtuais e definimos alguns pontos de agenda: estamos cobrando do Governo Federal que elucide as causas, estamos cuidando de medidas emergenciais – os estados, de modo geral, têm cuidado das limpezas de praias, em parceria com autoridades municipais e federais. E já há algumas iniciativas do próprio MPF para que haja essa recomposição de cenários e mitigação de danos ambientais, embora muitos deles sejam irreparáveis.

Então, a resposta é sim, mas friso sempre, dependente das articulações com os entes federais, pois estamos numa zona de fronteira entre responsabilidades federais e responsabilidades estaduais, pois os estados não podem sequer fazer uma diligência no mar territorial, o que seria inconstitucional.

Acordo da base de Alcântara com os Estados Unidos

Desde sempre, temos defendido que a base de Alcântara existente seja utilizada. Apoiamos todos os esforços do presidente Lula pelo desenvolvimento do programa aeroespacial próprio do Brasil, o que seria o cenário ideal. Sabemos todos que isso se frustrou com aquele terrível acidente que vitimou mais de 20 técnicos, quando houve a explosão do veículo lançador de satélites, o que poderia ter sido um grande salto adiante em nosso programa aeroespacial [em agosto de 2003, um incêndio seguido de explosões destruiu o foguete brasileiro VLS-1 V03 na plataforma de lançamento do Centro de Lançamento de Alcântara, matando 21 técnicos civis].

Em seguida, acompanhamos com muito interesse o acordo binacional Brasil-Ucrânia, o que, ainda no governo Lula e depois no governo da presidenta Dilma, seria uma tentativa de usar a base de Alcântara. Eu próprio fui relator de um outro acordo de salvaguardas tecnológicas com a Rússia, visando a utilização da base. O fato é que, decorridos 40 anos, todas essas tentativas se frustraram, ou seja, não houve a utilização de algo que já existe, pois não estamos falando da implantação de uma nova base.

Frustradas essas iniciativas, temos dois caminhos hoje de curto prazo. Um: viabilizar o uso comercial com quem está se disposto a fazer alguma parceria tecnológica com o Brasil, no caso, com empresas que utilizem tecnologia americana. É sempre importante distinguir que não se trata de uma parceria com o governo dos Estados Unidos, mas de empresas que usem tecnologia dos Estados Unidos. Essas empresas, aliás, podem ser de qualquer país do mundo, desde que usem tecnologia americana, o que é mais ou menos uma derivação do regime jurídico de propriedade intelectual. Então a nossa posição, é essa. A outra possibilidade seria fechar a base, o que, a meu ver, seria um desastre econômico e social na cidade de Alcântara, o que resultaria no desemprego de centenas de famílias de Alcântara que, hoje, extraem seu sustento em razão do funcionamento, ainda tênue, da base. Esse é o nosso primeiro conjunto de posições.

O segundo conjunto de posições, que eu tenho externado com clareza, é que não há necessidade alguma de ampliação da base de Alcântara. Ou seja, se amanhã alguém tiver a ideia de expandir a base e isso resultar na tentativa de desocupação de novas famílias, além daquelas que já foram desocupadas nessas últimas décadas, a minha posição é claramente contrária, pois tenho dito publicamente que a base de Alcântara pode funcionar tal como ela existe hoje, sem necessidade de desalojar nenhuma outra família.

No que depender de mim, o acordo de salvaguardas tecnológicas não deve abranger esse aspecto, mas se amanhã alguém tiver a ideia de expandir a base terá a minha oposição, pois isso é absolutamente desnecessário, seria um ônus excessivo sobre quem já sofreu tanto nos últimos 40 anos. Inclusive, em governos do nosso campo político, que, infelizmente, não priorizaram a solução das questões sociais acumuladas ao longo dessas quatro décadas, nesse processo de implantação da base, desde o governo do presidente João Figueiredo.
Finalmente, o nosso terceiro conjunto de posições diz respeito à soberania. Se o acordo implicar na criação de um enclave de qualquer país do mundo no território do meu estado, obviamente que eu seria contrário. O acordo em si mesmo, tal como está escrito, não inclui nenhuma cláusula de transferência da base de Alcântara para qualquer governo estrangeiro, nem governo dos Estados Unidos, nem qualquer outro governo.

Mas aí alguém pode dizer “…mas pode ser que…”. Bom, se um dia alguém tiver essa ideia, novamente estarei entre aqueles que se opõem. Como disse antes, o acordo de salvaguardas tecnológicas se resume, como o próprio nome diz, a medidas de salvaguardas de propriedades intelectuais que podem estar embarcada num artefato, num foguete de qualquer país do mundo, desde que a tecnologia seja americana. Esse é um passo que pode resultar em proveito de nosso estado. Se houver essas derivações indesejadas, eu estarei contra ambas.

Crise do PSL e uso político da Polícia Federal

Exatamente pela minha experiência como juiz federal por 12 anos, eu sei que coincidências existem, mas, por outro lado, sei também que coincidências não acontecem todos os dias. O que temos visto nos últimos anos, lamentavelmente, é que certas instituições do Estado tem sido apropriadas pela lógica do jogo político. Isso está cabalmente demonstrado no conjunto de diálogos revelados pelo site Intercept e outros veículos de comunicação que tem se dedicado a demonstrar que, infelizmente, houve essa instrumentalização política, partidária, ideológica e, às vezes, até pessoal de instituições do Estado que teriam se nortear por uma ação tão imparcial quanto possível.

Por isso mesmo, creio que estamos vivendo o momento de revisão disso tudo. O Supremo Tribunal Federal tem sinalizado nessa direção, de mostrar que essas instituições não podem ser politizadas ou partidarizadas. Destaco, desse conjunto, a recente decisão do ministro Alexandre Moraes acerca da formação daquele fundo privado de bilhões de reais oriundos da Petrobras e que seriam, aparentemente, usados para fins outros que não de interesse público. O Supremo barrou essa iniciativa. E barrou corretamente.

E, agora, temos esse julgamento do Supremo acerca do momento de cumprimento das penas privativas de liberdade. Tais episódios em que há essas “coincidências” têm de ser duramente combatidos e, creio, o STF está sendo determinante para que essa instrumentalização deixe de ocorrer, na medida em que isso acaba implicando que investigações legítimas sejam contaminadas. Eu sou a favor de investigações, totalmente a favor, desde que sejam feitas de acordo com o que a lei manda.

Bolsonaro e a destabilização da democracia

Em primeiro lugar, há um belicismo inerente à posição política que ele representa, pois isso é constituinte dessa visão política, que é de permanente busca de inimigos e de discurso de extermínio desses supostos inimigos, como se fosse uma estratégia de manutenção de protagonismo do jogo político. Isso é muito perigoso para as instituições democráticas e perigoso para a sociedade como um todo, pois acaba despertando ciclos de violência incontroláveis, na medida em que há uma espécie de efeito dominó. Quando a esfera política é dominada por esse tipo de confusão, de belicismo, de ataques, isso acaba espalhando ciclos de ódio e violência pelo conjunto da sociedade.

Eu tenho sido uma voz que, permanentemente, aponta esse gravíssimo defeito do atual modo de fazer política no Brasil. E tenho defendido uma visão de respeito às diferenças, convívio entre as diferenças, que elas sejam arbitradas pela soberania popular. Ao lado dessa visão ideológica extremista que o atual presidente da República representa, nós temos também muita desorganização em seu próprio campo político. Há horas em que cabe a oposição até se recolher para não acabar se envolvendo em conflitos bastante esquisitos nesse campo político de extrema-direita que lamentavelmente ganhou as eleições em 2018.

Na verdade, nós temos dissensões profundas no próprio campo da direita política, mostrando que eles não estavam preparados e não estão aptos a governar o Brasil.

As tarefas para eleger o próximo presidente

A principal tarefa é, sem dúvida, resistir a esses retrocessos sociais e econômicos. Em segundo lugar, apresentar uma atualização programática do nosso campo político e ideológico, que é o campo nacional-popular. Em terceiro lugar, reunir amplas forças, lideranças e segmentos em torno desse programa. Sem percorrer esses passos, com três anos de antecedência é muito precoce já tratarmos de nomes.
Na verdade, essa é a última etapa. Agora, o que nós precisamos é juntar gente, não dissipar energias.

E eu tenho me dedicado a isso com um conjunto de outras lideranças, a partir do meu próprio partido político, com essa visão de fomentar a união, a unidade, temos de buscar isso, o máximo quanto possível, já nas eleições municipais de 2020, seja no primeiro ou no segundo turno.
A eleição em dois turnos permite isso, se não for possível juntar todo mundo no primeiro turno, que junte no segundo, mas com clima de diálogo e não clima de ódios ou de disputas em nosso próprio campo. Acho que 2020 funcionará como teste e, ao mesmo tempo, como plataforma de lançamento daquilo que desejamos fazer na eleição de 2022.

Então, cada dia eu foco no dia. Tenho muito serenidade para focar naquilo que é o principal: e no cenário nacional, ao meu ver, é o cumprimento desses passos. E, sobretudo, cuidar da minha tarefa principal que é governar o Maranhão.

Movimentação das esquerdas para 2020

Cada um, a seu modo, tem tentado fazer sua parte. Recentemente, quando estive na Câmara para o lançamento da proposta de reforma tributária, destaquei que não me associo às correntes que criticam bastante as esquerdas. Pelo contrário, nesses difíceis 10 meses que vivemos em 2019, acertamos mais do que erramos. Apresentamos propostas, ideias, resistimos ao máximo, mantivemos um nível de diálogo entre nós que, eu diria, é razoável.

Aqui e acolá tem críticas mais exacerbadas, a meu ver desnecessárias, entre lideranças importantes do nosso campo político, porém, mesmo estes, que praticam com tanta frequência esse tipo de coisa, também têm dado sua colaboração. De modo geral, todos os partidos do nosso campo tem se movimentado corretamente. Temos muitas pré-candidaturas já colocadas nas principais cidades brasileiras, inclusive do meu partido, o PCdoB, e, por isso, acho que vamos colher resultados eleitorais em 2020 melhores do que os resultados eleitorais de 2016, nas últimas eleições municipais.

E, desta vez, sem a presença na coordenação disso tudo, do ex-presidente Lula, o que faz uma diferença muito grande pela sua experiência, pela sua envergadura. A medida eu seja feita justiça a ele pelos tribunais, e recuperando sua plena movimentação, será um vetor importante para que essa unidade se construa e que a gente possa ter êxitos eleitorais importantes em muitas cidades do país.

O lugar do Lula Livre

Sou daqueles que têm enfaticamente criticado os processos judiciais aos quais o ex-presidente Lula tem sido submetido, exatamente pelo afastamento desses processos dos parâmetros constitucionais. Por isso, creio na validade da bandeira Lula Livre não apenas na defesa pessoal dele, mas como defesa do sistema democrático e constitucional que existe em favor de todos.

Nós estamos vendo, nos últimos dias, quantas injustiças se produzem. E há um certo efeito pedagógico, ou antipedagógico melhor dizendo, do modo como o ex-presidente Lula é julgado, pois se uma liderança com sua importância nacional e internacional, com sua importância histórica, é vítima de uma arbitrariedade judicial, isso funciona como um sinal de vale-tudo para que outras injustiças sejam perpetradas contra lideranças populares, contra cidadãos e cidadãs, contra crianças que são fuziladas, contra negros que são vítimas de extermínio, assim sucessivamente.

Então, a defesa do Lula Livre é a defesa da Justiça para todos. É a defesa de parâmetros de funcionamento do sistema institucional do país, é a defesa das garantias constitucionais. Eu faço essa defesa, outros tantos fazem, mas há aqueles que não concordam com essa bandeira nem por isso devem ser expurgados. Em suma, eu defendo o Lula Livre, mas respeito quem não acha que essa bandeira não é a principal no Brasil.

Nós podemos e nós devemos nos aliar com quem, eventualmente, não compartilha dessa bandeira ou de outras bandeiras que nós defendemos a medida em que você só consegue construir alianças com quem tem visões diferentes das suas. Você não pode dogmatizar isso como uma espécie de critério de fidelidade, do tipo “só pode ser meu aliado quem defende Lula livre”. Eu defendo e quero o maior número de pessoas defendendo.

Ruas sem povo

Nós sofremos uma série de revezes e de derrotas desde 2013, quando perdemos a disputa de sentido daquelas manifestações de junho daquele ano. De lá pra cá, realmente tivemos muitas dificuldades em recuperar essa hegemonia social. Os resultados eleitorais mostram isso. A própria prisão do ex-presidente Lula e o impeachment da Dilma indicam o nível de nossas dificuldades.

Conseguimos algumas mobilizações importantes nesse ano de 2019, sobretudo em torno da pauta educacional, que funcionaram como referência, apontando que só se consegue manifestações de rua mais expressivas quando se tem amplitude, ou seja, bandeiras estreitas ou discursos sectários não produzem mobilização. Quanto mais amplitude, quanto mais essas bandeiras forem universais, nesse sentido de agregar vários segmentos, vários grupos sociais, várias entidades, aí sim nós teremos a retomada desse processo. É um processo em andamento.

Depois de cinco anos de sucessivas derrotas, de 2013 à eleição de Bolsonaro, acho que 2019 marca essa reorganização que culminará com a libertação do maior líder popular que o Brasil já teve, o que faz uma diferença grande, como vértice organizador de nosso campo político.
Além disso, tivemos o enfraquecimento de alguns segmentos, como os sindicatos. As medidas legais que desorganizaram e acabaram comprometendo a força do movimento sindical. Isso também é uma coisa recente e o sindicalismo está vivendo sua reorganização.
Isso é uma fase, não vai durar para sempre, não estamos num longo ciclo de hegemonia conservadora no Brasil. Eu imagino que estamos vivendo um hiato, um terrível hiato, um terrível momento, mas que não será duradouro.

Voltar às bases

A teoria política mostra que, em vários países do mundo, há mais ou menos um itinerário comum: quando há vitórias eleitorais, paradoxalmente há um enfraquecimento das lutas sociais. A razão é até simples. A quantidade de pessoas que se dedicam a certos temas, a certas lutas, infelizmente não é tão grande quanto nós gostaríamos que fosse. Então, quando Lula vence a eleição em 2002 e tivemos êxitos em cidades e estados, grande parte das lideranças sociais acabaram se afastando daquilo que podemos chamar ‘suas bases’ para ocupar cargos e funções de governo e tocar a máquina pública adiante.

Há vários estudos que situações similares aconteceram com vários partidos de esquerda do mundo. É um processo indesejável, mas comum a outras experiências. Nós estamos vendo críticas semelhantes sendo feitas ao presidente Evo Morales, da Bolívia. Uma das críticas é essa: que o movimento MAS se afastou de suas bases tradicionais e isso explicaria parte das dificuldades que ele está enfrentando nesse momento.
Não é algo específico do Brasil. E essas experiências internacionais também nos mostram que não há receita pronta, pois é preciso observar as circunstâncias de cada país, mas não há dúvidas de que precisamos de movimentos sociais fortes, pois só se consegue avanços duradouros se houver uma base social organizada e ativa. Isso é imprescindível.

Da minha parte, aqui no Maranhão, sempre aponto para a minha equipe que não somos e não substituímos os movimentos sociais. E, às vezes, temos discordâncias dos movimentos sociais e eles conosco, é natural que aconteça, pois desempenhamos papéis diferentes. Mas sempre friso para minhas companheiras e companheiros do governo que nosso papel é deixar como legado o apoio à organização autônoma da população. Acho que, com todas as dificuldades, o campo da esquerda buscou isso, às vezes com mais sucesso, às vezes com menos.
Não há dúvidas, porém, que foi o período de melhores condições de atuação dos movimentos, ao contrário de hoje, quando a postura é claramente hostil e que o STF teve de barrar decretos e normas que extinguiam conselhos e conferências. Isso, a meu ver, também é educativo, tanto para quem exerce funções em governo quanto para quem faz parte do movimento social que, por vezes, pratica o discurso que “é tudo igual, é tudo a mesma coisa”. Muitos dos que diziam isso no período Lula-Dilma, hoje se arrependem.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.