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Crédito: Géssica Amorim/MZ Conteúdo
A comunidade quilombola Teixeira, zona rural do município de Betânia, no Sertão do Moxotó, é habitada por uma média de 300 famílias. Em sua maioria, famílias evangélicas, de ramificações variadas. Na comunidade, entre os poucos habitantes que não aderiram ao pentecostalismo, vive a agricultora aposentada Francisca Maria dos Santos, de 71 anos. Dona Francisca é da umbanda e, isolada, com o auxílio de outros dois amigos, que também são umbandistas, mas moradores de outro quilombo do mesmo município, o Sítio Bredos, ela pratica a religião nos limites de um quartinho pegado à cozinha da casa onde mora com a mãe, seus filhos e seus netos.
Atualmente, no território do povoado, há três igrejas, a Adventista do Sétimo dia, a Assembleia de Deus – ministério de Madureira, e a Mundial do Poder de Deus. A última, com sua sede fundada em 1998 na cidade de São Paulo, pelo pastor Valdemiro Santiago, aqueçe frequentemente envolvido em escândalos ligados à exploração da fé alheia e propaganda enganosa – quem não lembra de Valdemiro Santiago, em agosto do ano passado, fazendo propaganda na TV de sementes de feijão “ungidas”, suportamente capazes de curar a covid-19, custando até R$ 1 mil cada uma?
Vendendo falsos milagres, se apoiando na teologia da prosperidade, exaltando os privilégios que o dinheiro pode trazer e incentivando a doação aos seus ministérios partindo da premissa de que, doando, os fiéis irão aumentar a sua riqueza material, muitas igrejas evangélicas têm penetrado e se estabelecido em lugares com determinadas culturas e costumes que não poderíamos antes imaginar. A comunidade Teixeira é um deles.
Recentemente, estive na casa de dona Francisca. Conheci o seu lugar, parte da sua história e conversei com ela sobre a sua vida religiosa. Há muitos anos, ela é procurada por pessoas de vários lugares da região e de outros estados do país, para ajudar a tratar casos de doença e para afastar espíritos ruins de corpos dominados por eles. “Aqui já chegaram carros e carros no meu terreiro. Já veio gente de São Paulo, da Bahia, de todo canto. Isso pra eu fazer trabalho pra ajudar em problema de saúde e pra afastar espírito ruim também. O que eu não faço é coisa ruim, pra prejudicar os outros”.
Dona Francisca chama a sua prática religiosa de “obrigação”. E essa obrigação teve início quando ela ainda era muito nova, antes do seu primeiro aniversário. Abro espaço para dona Francisca contar como tudo começou e que rumo a sua vida tomou a partir daquele dia:
“Eu comecei essa obrigação quando eu tinha três meses de vida. Foi a primeira vez que um espírito baixou e falou em mim. Pai viu eu falar e contava que, no dia, quase enlouqueceu. Que o espírito dizia que eu não pertencia a meus pais, eu pertencia a ele. Aí veio um vendaval dentro de casa, derrubou tudo, arrastou as coisas. Ficou tudo revirado.
E eu sei que fui crescendo e fui desenvolvendo. Eu sentia quando uma pessoa ia chegar em casa, sabia que ela vinha. Nunca fui disciplinada por ninguém. Tudo o que eu aprendi, eu via em sonho. Vinha um homem com um livro me ensinar. Parecia que ele estava na minha frente, como você tá agora. Se uma pessoa fosse matar outra por aqui, eu sabia. Ele vinha me avisar.
Quando eu fui fazer essa obrigação declarada pra todo mundo, eu já tinha 17, 18 anos. Pai não queria, não achava que era coisa de Deus. Mãe via, mas não dizia nada. Por aqui, não tinha ninguém pra eu falar, conversar sobre essas coisas. Meu avô Francisco, pai de meu pai, que o povo chamava Chico Pintado, era quem tinha parte com isso também, mas ele não morava aqui. O contato que eu tive com ele foi pouco. Eu sempre fui vendo e fazendo as coisas sozinha, mesmo.
E eu vou lhe dizer: quando eles [os espíritos] me pegam, eu não vejo nada. Eu já dei pisa em homem, já dei cacetada, já quebrei dedo de mulher. Até em meu pai, um dia, eu danei um machado pra cortar o pescoço dele. É uma coisa que eu não vejo, não sinto, só acontece. Antes, eu recebia mais, baixava mais espírito em mim. Agora, são dois, só. Um dá o nome de Mané Caboclo e o outro nunca disse o seu nome. E esse é o que baixou em mim quando eu tinha três meses. Ele nunca foi embora”.
Francisca me confessou que agora se sente cansada, sem forças para continuar com a “obrigação” que lhe foi dada ainda criança. A tensão das mudanças ao seu redor, a visita frequente de evangélicos à sua casa e a conversão de seus filhos ao protestantismo têm lhe feito considerar a possibilidade de se converter também. Ela tem pensado em frequentar a Igreja Mundial do Poder de Deus, que está construindo um templo na comunidade.
“Olhe, eu lhe digo que a minha corrente é da Umbanda. Aqui, eu só trabalho com meus amigos Joaquim e Maria das Dores, que vêm de outro canto pra cá, pra gente trabalhar. Mas o nome que eu levo por aqui é só de macumbeira. Tem coisa que entristece a gente. Às vezes, tem bicho morto na estrada, em encruzilhada, e o povo já passa dizendo ‘eita, quem terá sido esse que Francisca lascou?’. Eu não faço mal a ninguém. E essa obrigação que eu faço, é de muita responsabilidade, de muita energia, eu ando muito cansada. Tenho pensado muito em passar pra lei de crente”.
A realidade em que vive dona Francisca e a sua família, como em muitas outras comunidades rurais sertanejas, por muito tempo, se equilibrou numa negociação pela ocupação do seu território apenas com o dito catolicismo popular e a sua predileção pelo devocional ao sacramental. Agora, a comunidade passa a limitar ainda mais o espaço para o culto e a prática de outras religiões, principalmente as de matrizes africanas.
Olhando para a história de Dona Francisca, para as mudanças de caráter religioso que têm ocorrido em sua comunidade e para a perseguição e intolerância histórica contra religiões de matrizes africanas, é inevitável pensar que a influência pentecostal em Teixeira tem impactado e interferido na vida e na cultura da sua população, trabalhando para o silenciamento e apagamento das suas origens e tradições.
Os amigos de Francisca, Joaquim dos Santos, 72 anos, e Maria das Dores, 75, seguem resistindo e não consideram a possibilidade de conversão para o protestantismo. “Eu venho lá da comunidade dos Bredos, pra fazer esse trabalho aqui, com elas duas. Eu tenho visto muita gente passar pra lei de crente, mas não tenho vontade não. Em mim, baixa um caboclo caçador brabo, que não me deixa nunca. Isso é desde que me entendo por gente e vai até quando eu morrer”, conta seu Joaquim.
Dona Maria das Dores concorda com o amigo e acredita que a sua prática religiosa faz parte do seu destino. “Disso, a gente não foge. Não tem jeito. Não adianta ter medo, tentar se esconder, se desviar. Faz parte da nossa missão aqui. Eu respeito quem é evangélico, acho muito bonito as palavras, as homenagens que eles fazem quando um deles morre, mas não pretendo passar para a lei deles não”.