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Fraudes da Natural da Vaca continuaram mesmo após operação policial, diz PF

Inácio França / 23/07/2025
A foto mostra dois produtos da marca Natural da Vaca, expostos sobre uma superfície metálica brilhante em um supermercado. À esquerda, há um pote azul e branco com tampa azul, contendo cobertura cremosa sabor requeijão, com 200 gramas. À direita, está um pacote azul e transparente com queijo ralado de cor amarela clara, pesando 40 gramas. Ambos os produtos exibem o logotipo de uma vaca sorridente. Na embalagem do queijo, há alertas de alto teor de gordura saturada e sódio. O fundo da imagem está desfocado, mas revela prateleiras e uma parede amarela com letras grandes. A iluminação do ambiente é clara e suave. A composição destaca os produtos em primeiro plano.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O esquema criminoso da indústria de laticínios Natural da Vaca para se apropriar de recursos públicos continuou agir mesmo depois de duas operações conjuntas da Polícia Federal (PF), Controladoria Geral da União (CGU) e Receita Federal (RFB). Para permanecer desviando dinheiro do Programa Leite Para Todos, do Governo de Pernambuco, os responsáveis pela fraude contavam com, pelo menos, mais duas cooperativas “de fachada”. Uma delas não interrompeu suas operações após a investigação ser veiculada pela mídia.

Essa é uma das constatações do relatório final assinado pela delegada federal Bianca Alves de Oliveira e remetido para a 24ª Vara da Justiça Federal em Pernambuco.

Depois de três anos investigando a “organização criminosa”, a PF indiciou 40 pessoas, incluindo Paolo Avallone, sócio majoritário da Natural da Vaca, e Francisco Garcia Filho, da Planus Administração e Participações, fornecedora de merenda escolar da rede estadual de ensino. Os empresários são apontados como os dois “líderes” do esquema fraudulento.

A partir de irregularidades constatadas por uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), a PF confirmou que o desvio de recursos federais do Programa de Aquisição de Alimentos/Leite acontecia por meio do contrato entre o Governo de Pernambuco e uma cooperativa “fantasma” no município de Itaíba, no Agreste, a Coopeagri.

Assim, R$ 68,2 milhões destinados a remunerar pequenos produtores de leite da agricultura familiar acabaram nas contas bancárias da Natural da Vaca e dos demais participantes do esquema.

O resultado parcial das investigações levou a Justiça Federal a autorizar duas operações policiais no final de 2022 e em junho de 2023, com quebra sigilos e seis prisões preventivas. Com isso, o governo estadual teve de romper o contrato com a Coopeagri e cancelar pagamentos — ao todo, R$ 95,3 milhões chegaram a ser empenhados pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário. Mesmo assim, a fraude continuou.

Na época, a PF não sabia, mas outras duas supostas organizações de agricultura familiar faziam parte do esquema montado por Avallone e Garcia, a Cooperativa de Agricultores de Panelas (Coopepan) e o Instituto de Integração Social e Desenvolvimento Sustentável (Integrar), com endereço cadastrado na zona rural de Maraial, na Mata Sul de Pernambuco.

Se a Coopeagri foi a instituição que mais recebeu dinheiro do Leite Para Todos entre 2014 e 2022, a Coopepan ocupava a segunda posição nessa lista, com R$ 49 milhões empenhados a seu favor e R$ 20,1 milhões efetivamente pagos. O último pagamento feito pelo governo estadual à Coopepan foi realizado em maio de 2023, sete meses após a primeira operação policial.

Assim como a Coopeagri, a Coopepan e a Integrar só existiam no papel. Documentos da cooperativa de Panelas, por exemplo, foram encontrados no pen drive do empresário Francisco Garcia, que também pagou pela análise de laboratório do leite que teria sido fornecido pela Coopepan.

Aliás, a delegada Bianca Oliveira faz uma ressalva sobre o conteúdo encontrado nas pastas do computador de Garcia: “Ainda é causa de estranhamento a existência de outras entidades nos documentos de controle de Francisco Garcia, contudo, fogem ao escopo da investigação”.

Domingos Sávio Neves, funcionário da Planus também indiciado pela PF e apontado como um dos “gerentes” da organização criminosa, aparece como contato dessa cooperativa.

Chefe de gabinete e “dono” de cooperativa

O relatório final da PF aponta que a terceira cooperativa usada como fachada pelos criminosos, o Instituto de Integração Social e Desenvolvimento Sustentável (Integrar), era controlada por Ademilton de Goes Bezerra Filho, que exerceu a função de chefe de gabinete da Secretaria de Desenvolvimento Agrário por dois anos, de janeiro de 2019 a janeiro de 2021.

A contratação do Integrar pela secretaria estadual aconteceu após a exoneração de Bezerra Filho do cargo de confiança, mas a instituição foi estruturada formalmente enquanto ele estava na pasta.

O Integrar recebeu mais de R$ 5,4 milhões entre maio de 2021 e setembro de 2022. Ao todo, a organização criminosa recebeu indevidamente do governo estadual mais de R$ 93,7 milhões, contabilizando as três instituições contratadas. A Polícia Federal considera também os valores que chegaram a ser empenhados, ou seja, bloqueados pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário, o que eleva o valor desviado para quase R$ 150 milhões.

Para a PF, Ademilton teria se incorporado ao grupo de fraudadores “em período mais recente”, afinal seu nome aparece em 2019, quando o grupo comandado pelos sócios da Natural da Vaca e da Planus já atuava há cinco anos.

No computador e no celular de Ademilton — cujo telefone era o mesmo informado pelo instituto à Receita Federal —, a polícia encontrou mensagens e planilhas indicando que ele pagava R$ 1 mil mensais a um “laranja” que emprestava seus documentos para aparecer como presidente de uma cooperativa em cuja conta bancária movimentavam quantias milionárias.

Em seu relatório final, a delegada Bianca Oliveira afirma que o Integrar não existe de fato, seria mais uma organização fantasma criada para drenar dinheiro público para as empresas dos líderes do esquema. Equipes de policiais foram aos dois endereços fiscais do instituto, no sítio Abismo, em Marial, e no centro daquela cidade, mas não encontraram nada que indicasse a existência da cooperativa.

A convicção da delegada é reforçada por outros achados da sua investigação. A organização, por exemplo, tem apenas 17 filiados, mas apenas oito são cadastrados como agricultores familiares.

A maior parte dos fornecedores de leite relacionados para participar do programa governamental são de Itaíba, mesmo município da Coopeagri, a 216 quilômetros de sua suposta sede em Maraial. Outra “coincidência” está no fato de que a gestão da remuneração desses produtores era feita por um dos sócios de Avallone, também indiciado pela PF.

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A defesa de Ademilton de Goes Bezerra foi procurada, mas preferiu não se posicionar até o momento.

Dinheiro das cooperativas para a Natural da Vaca

As investigações da polícia também revelaram transferências de milhões de reais das cooperativas para a Natural da Vaca e a Planus, assim como acontecia com a Coopeagri, conforme reportagem publicada pela Marco Zero em julho de 2023.

No relatório, a delegada registra que “ocorreu uma transferência significativa de recursos da Coopepan para as empresas Natural da Vaca e Nexus, sem uma contrapartida aparente uma vez que não existe emissão de notas fiscais dessas empresas tendo como destinatário a Coopepan”. A Nexus é uma das empresas de Avallone com participação ativa na lavagem de dinheiro do esquema.

De acordo com o relatório final, foram mais de R$ 10,4 milhões em transferências, das quais R$ 5,4 milhões sem nota fiscal ou qualquer justificativa contábil.

No caso do Integrar, os policiais identificaram diálogos e trocas de mensagens entre Avallone e seu sócio Geraldo Lobo Nogueira “a respeito de TED do Integrar que deveria ser realizada por Ademilton Filho”.

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TED significa Transferência Eletrônica Disponível, que é a movimentação de dinheiro entre contas de bancos diferentres sem restrição de valor.

No dia seguinte, realmente há duas transferências do Integrar para a empresa, uma no valor de R$ 296 mil e a segunda de R$ 316 mil. A PF concluiu que isso “reforça os indícios de que Ademilton realiza o controle financeiro do Integrar e de que, mais uma vez, a Natural da Vaca Alimentos executaria as duas etapas da contratação pública, tanto no tocante à fase de pagamentos do leite in natura que deveria ser fornecido pelos pequenos produtores rurais, quanto ao beneficiamento do produto, denotando a falta de capacidade operacional da associação para execução contratual”.

Defesa de Avallone reafirma presunção de inocência e questiona investigação

Responsável pela defesa de Paolo Avallone, da Natural da Vaca e dos funcionários da empresa indicados pela PF, a advogada Sandrele Jorge, do escritório cearense Valença e Associados, respondeu aos questionamentos da Marco Zero.

Ela questionou o relatório da PF como sendo “mero relatório de indiciamento, sustentado por elementos frágeis e questionáveis, sem contraprova técnica ou metodologia adequada na coleta de provas”.

Segundo a defensora, “o que existe até o momento são indícios não consolidados, muitos deles obtidos sem observância aos critérios legais e científicos necessários para comprovar irregularidades. A defesa apresentará, nos autos, a contestação detalhada desses pontos, demonstrando a inocência dos
investigados”.

Na mesma nota, reproduzida na íntegra abaixo, a advogada critica a Polícia Federal pelo que considera ser um “vazamento seletivo de informações”. “A espetacularização de uma investigação que deveria tramitar em sigilo está causando danos irreparáveis à imagem de pessoas inocentes, colocando em risco empregos e a sobrevivência de uma empresa legítima”, afirma.

Leia abaixo a nota da defesa de Paolo Avallone e da Natural da Vaca:

Em nota oficial, a defesa dos sócios da empresa Natural da Vaca rebate as acusações veiculadas na imprensa sobre suposta participação em fraude alimentar, organização criminosa e irregularidades em contratos públicos. Os advogados destacam que as alegações repousam sobre um mero relatório de indiciamento, sustentado por elementos frágeis e questionáveis, sem contraprova técnica ou metodologia adequada na coleta de provas.

Desse modo, o que existe até o momento são indícios não consolidados, muitos deles obtidos sem observância aos critérios legais e científicos necessários para comprovar irregularidades. A defesa apresentará, nos autos, a contestação detalhada desses pontos, demonstrando a inocência dos investigados.

A Natural da Vaca, seus sócios e funcionários construíram reputação ao longo de anos de trabalho, com um portfólio diversificado de clientes — inclusive de grande porte — sendo que os contratos com a cooperativa (esta que tinha contratos com ente público e não a empresa) representavam menos de 10% do faturamento mensal antes da operação, a qual inclusive causou crise em parte dos negócios. A espetacularização de uma investigação que deveria tramitar em sigilo está causando danos irreparáveis à imagem de pessoas inocentes, colocando em risco empregos e a sobrevivência de uma empresa legítima.

As contestações técnicas aos laudos apresentados, incluindo a impugnação de eventuais irregularidades processuais, estão sendo adotadas com a observância do devido processo legal.

Por fim, a defesa critica o vazamento seletivo de informações, reforçando que a presunção de inocência é um princípio constitucional e confia que, ao final, a Justiça reconhecerá a ausência de fundamento nas acusações e a inocência dos sócios, que sempre agiram dentro da legalidade, da transparência, com respeito à saúde pública, regras sanitárias e jamais coadunaria com qualquer conduta diferente disso.

AUTOR
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.