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Histórias que repórteres policiais não têm tempo pra contar

A emoção da repórter da favela após o assassinato de sua entrevistada, uma mulher trans

Martihene Oliveira / 19/03/2024
Nesta foto, uma mulher parda, de cabelos escuros e curtos, segura um cartaz amarelo com texto e desenhos nele. O cartaz é amarelo com texto em rosa e vermelho, e contém desenhos de corações e flores. A pessoa está vestindo uma blusa rosa e jeans azul. Ao fundo, há edifícios altos e o céu está parcialmente nublado. Parece ser um ambiente ao ar livre durante o dia. O texto no cartaz diz: “SOU UMA MULHER TRANS”

Crédito: Coletivo Revelar.Si

Cresci vendo minha mãe e minhas tias pretas em frente aos jornais policiais do meio dia, estraçalhando suas coxas de frango – quando se tinha – enquanto assistiam ao próprio genocídio pasmadas, estarrecidas, contudo, acostumadas. Nada diferente da imagem apresentada aos meus vizinhos, aos outros parentes, conhecidos e amigos de infância.

Presenciar assassinatos na frente de minha casa, mesmo residindo na área mais privilegiada da favela, me mostrou, desde criança, que não é todo mundo que vê a morte como a gente vê. Na faculdade, a morte narrada por mim, estatalava a professora de outra cor e classe, mesmo morando em um bairro vizinho ao meu, mesmo sendo ela empática e comprometida com um jornalismo ético e justo.

É março de 2024 e já faz um ano que a voz de Evellyn, trans assassinada na comunidade de Caranguejo Tabaiares, no Recife, ainda ressoa em meu whatsapp. No último 8 de Março, as mulheres de Caranguejo marcharam pela comunidade com pelo menos uma trans a menos. A morte, que aconteceu em outubro, me fez ouvir seus áudios repetidamente. Em nenhum momento ela falou de ameaças, não como mulher trans, não por ser mulher negra, embora a premissa para as estatísticas da morte nos territórios de pretas e pretos é simplesmente estarem vivas e vivos. 

Morre-se porque entrou para as drogas, morre-se porque se tornou o preto ou a preta metida, morre-se porque se tornou traficante, morre-se porque virou polícia, morre-se porque ficou doente, morre-se porque saiu pra correr, morre-se porque saiu pra trabalhar, morre-se porque ficou em casa dormindo. A bala chega pra a gente de todo jeito e, se não for em forma de projétil, pode ser nas longas filas de espera para nos curarmos e, entenda como quiser, não estou falando só do SUS.

“…morre-se porque se tornou traficante, morre-se porque virou polícia…”

Por ser mulher, a cada seis horas ganho uma chance de viver, como sou negra, de dez em dez mortes eu vou ganhando 7 vidas. Se eu fosse trans, me estampariam na cara, todos os dias, que o país onde moro, por 15 anos ininterruptos é responsável pelo maior número de assassinatos de pessoas como eu no mundo.

Para a favela, jornalistas só perguntam sobre a morte. Eu quero conversar com alguém de Evellyn, para falar sobre a vida dela, mas, como em todo assassinato que ocorre em territórios periféricos, as pessoas sempre têm medo de falar. Sendo assim, tudo o que tenho por Evellyn são seus áudios que me falam de sua vida e a sensação de que como disseminadora de informação, se não fosse esse cenário, eu, Martihene, jornalista de favela, poderia ter mais.

Era tarde, dia 14 de março de 2023, quando enviei uma mensagem para Evellyn. Poucos dias antes, as mulheres da comunidade Caranguejo Tabaiares, no Bongi, em Recife, haviam reinventado o 8M. Com apitos, cartazes e faixas, elas cruzaram a ponte da resistência sobre o canal que atravessa a comunidade e, onde havia uma mulher, em cada porta, paravam para conversar sobre violência de gênero. Evellyn Sophia da Silva, na época com 23 anos, trans e negra, não perdeu tempo. Na cartolina amarela pintou de tinta rosa a reafirmação: “sou uma mulher trans”, que estendida ao sol, contrastava com o vermelho de suas admiráveis unhas.

– Oi, Evellyn, sou Martihene Oliveira, jornalista que atua no Mapa da Mídia Independente e Popular de Pernambuco, gostaria de conversar com você sobre o 8M que aconteceu com as mulheres de Caranguejo Tabaiares, tens um tempinho para mim? 

Fotografia impressa e colada em uma cartolina de Evelyn Sophia. Ela está ao ar livre, sob a luz do dia, usando uma touca azul cobrindo seus cabelos e parece estar segurando um pedaço de fruta. Sua camiseta tem texto impresso que não é completamente visível. Abaixo da fotografia, há um texto escrito à mão em português em um papel azul claro que está anexado à parte inferior da foto. O texto escrito à mão é acompanhado por um coração desenhado em tinta vermelha. O fundo atrás dessa composição é vermelho. O texto escrito à mão diz: “VOCÊ ESTARÁ ENTRE NÓS SEMPRE!”
Crédito: Coletivo Caranguejo Tabaiares

Evellyn, atenciosa toda, me pediu para que aguardasse só um pouco, estava na rua e não podia bobear com o celular, uma hora depois a gente conversou.

– Oi, eu sou Evellyn, sou uma mulher trans. A marcha das mulheres foi muito legal. Estar inserida em trabalhos assim na comunidade mudou muito minha vida. Isso me fortalece como mulher trans, me ajuda a conseguir emprego, não ficar na rua nem depressiva dentro de casa. Me tratam como mulher, sabe? É muito difícil pra gente não ser tratada assim.

Na quarta-feira, dia 18 de outubro, Evellyn Sophia, aos 24 anos, foi assassinada dentro de casa. Eu não sabia que aquela conversa que tivemos teria sido a primeira e a última. Três dias antes, no domingo (15), um jovem havia sido assassinado na mesma área.

“Muita dor por aqui, temos lutado há muito tempo para que nosso território seja lugar de paz e sonhos realizados e quando vemos o que esse projeto da necropolítica faz, entramos em um lugar de muita dor. Precisamos pensar que isso não é um fato isolado de Caranguejo mas que estamos de novo servindo de vitrine para uma total falta de esperança alimentada por esse Estado, imprensa e muitas forças políticas”, afirmou uma moradora da comunidade.

A dor que a moradora fala segue silenciada pelo medo. Abafa o diagnóstico daqueles que dizem que o racismo do Brasil é velado, mas velado para quem? É tão fácil de ser identificado quem morre e quem vive no nosso país, quem come e quem passa fome, quem é preso e quem não é, quem chora e quem sorri. 

“…dizem que o racismo do Brasil é velado, mas velado para quem?”

O medo da favela, sempre que alguém é assassinado, não aponta testemunhas para as mortes, mas os jornais policiais e as páginas sensacionalistas noticiam com facilidade: “corpos pretos, favelados, vítimas usuárias de drogas”.

No caso de Evellyn, não fosse a imprensa tradicional que chegou rápido, fotografou e correu, talvez a história rendesse mais. Evellyn Sophia da Silva não seria apenas “usuária de drogas”. Renderia mais se as notícias não fossem veiculadas para falar do óbvio. Por exemplo: que tal desmarginalizar a mulher trans, a favela, o negro, a travesti?

No 8M de 2024, as mesmas mulheres se juntaram a outras e marcharam novamente no território contra o feminicídio, contra a violência de gênero, e ao assassinato em massa. Dessa vez, Evellyn não estava segurando um cartaz, mas, em uma cartolina branca estampada com sua foto, a frase “você está em nós sempre!” nos deixa com a reflexão sobre o medo de estarmos em cartazes nos próximos 8M’s.

Grupo de mulheres de várias idades e algumas crianças segurando cartazes em um ambiente externo que parece ser uma comunidade ou favela. Os cartazes mostram textos e desenhos, indicando que elas estão em protesto ou evento comunitário. O ambiente é caracterizado por construções apertadas e roupas penduradas para secar, indicando uma área densamente povoada e possivelmente de baixa renda. Há uma variedade de cores vivas na imagem, tanto nas roupas das pessoas quanto nos cartazes que elas estão segurando. O céu é visível no topo da imagem, indicando que o evento está ocorrendo durante o dia.

8M no Coletivo Caranguejo Tabaiares

Crédito: Coletivo Revelar.Si

AUTOR
Foto Martihene Oliveira
Martihene Oliveira

Mulher negra, jornalista, idealizadora do Coletivo de Mídia Independente e Popular Sargento Perifa.