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Indígenas Kapinawá denunciam desmatamento no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco. Crédito: Ronaldo Kapinawá
O povo indígena Kapinawá, que vive entre os municípios pernambucanos de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, na região de divisa entre agreste e sertão, denuncia que uma fazenda de criação de caprinos está destruindo e cercando um trecho virgem de caatinga.
A região desmatada abrange uma área do território sagrado Kapinawá que se sobrepõe ao Parque Nacional do Catimbau, o segundo maior parque arqueológico do Brasil (o primeiro é a Serra da Capivara, no Piauí), com pelo menos 42 sítios arqueológicos catalogados, duas mil cavernas e 28 cavernas-cemitério. As formações geológicas são compostas de arenitos de diversas cores e tipos que datam de mais de 100 milhões de anos.
O fato de parte da terra ainda não ser demarcada deixa os indígenas em situação de ameaça e vulnerabilidade. Eles alertam que “as consequências são irreversíveis”.
A região desmatada, segundo a denúncia, adentra as terras do Parque do Catimbau por 14 quilômetros de extensão e 17 metros de largura. Ficam, portanto, dentro de uma Unidade de Conservação da Natureza, nas proximidades do distrito de Moderna, perto da BR-110, em Ibimirim.
A denúncia mostra que, para construir as cercas, a fazenda identificada como Fazenda Juá, que seria pertencente a Caprinor S/A Agropecuária Indústria e Comércio do Nordeste, está utilizando retroescavadeira e trator, numa supressão de vegetação que afeta diretamente as aldeias Malhador, Batinga, Cumbe e Dor de Dente.
Ao redor da Terra Indígena Kapinawá, onde vivem aproximadamente 1,5 mil pessoas, ainda há 16 aldeias em processo de demarcação, sendo que, em sete delas, parte da terra já foi demarcada e outra parte ainda aguarda os processos. Na prática, isso prejudica a garantia à saúde e a programas sociais. Enquanto algumas famílias têm direito a certos acessos, outras que vivem muito próximas não têm.
Apesar de a presença Kapinawá ser do período pré-colonial, com registro em documentos desde 1696, o território só começou a ser regularizado em 1982. A lentidão é tanta que, em algumas áreas, nenhuma medida administrativa foi tomada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) até hoje.
A presença da caatinga íntegra significa para os Kapinawá o direito de criar animais e buscar frutas, remédios e “arrifrigérios”, que, nas palavras dos indígenas, é “o que a caatinga oferece para alimentar quem não tem dinheiro para comprar alimentos”.
Os Kapinawá têm uma particularidade quanto à demarcação de terras. O Parque Nacional do Catimbau foi criado sobrepondo parte das terras reivindicadas. Esse fato vem sendo objeto de uma série de conflitos de interesses desde a criação do parque, em 2002.
Os indígenas relatam ainda que, nos últimos anos, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão do parque, proibiu a retirada de piçarra, material usado pelos Kapinawá para reformar as estradas de acesso às aldeias. O povo também não vem conseguindo declarações de solicitação de energia elétrica para residências recém-construídas nem pode mais retirar madeira, mesmo que de forma sustentável, para reformar as cercas dos roçados.
Ainda assim, os Kapinawá reforçam ser importante que “o Parna (Parque Nacional) Catimbau fosse nosso parceiro no combate à destruição da caatinga, dos sítios arqueológicos, da flora, da fauna e da venda ilegal de animais silvestres, isto é, atuasse em conjunto com o povo Kapinawá na defesa e proteção do meio ambiente, caatinga e todo o ecossistema envolvido”.
A Marco Zero entrou em contato com assessoria de imprensa do ICMBio, mas até o momento não recebeu qualquer retorno. A reportagem não conseguiu localizar os responsáveis pela Caprinor.
Historicamente, a fragilidade territorial abre espaço para perseguição de fazendeiros e posseiros, suprimindo do povo desde as necessidades mais básicas até as mais complexas, de ordens física, mental e espiritual.
Ainda sobre o desmatamento, Socorro Jucá, liderança Kapinawá, 57 anos, calcula que a caatinga destruída deve levar uns 50 anos para crescer. Com a destruição e o novo limite da cerca que vem sendo construída, os rebanhos dos indígenas não terão onde pastar.
Além do impacto na alimentação e sustentabilidade econômica, há a destruição de árvores nativas e o fechamento de estradas centenárias, como a Estrada do Gado e a Estrada de Moderna, prejudicando o direito de passagem e locomoção.
Sobre as terras, Socorro detalha que o processo de demarcação seguiu o leito de um riacho que vai da aldeia Coqueiro e “corre terra por dentro”, saindo em Ibimirim. Assim, nas aldeias Coqueiro, Carnaúba, Pau Ferro Grosso, Ponta da Várzea, Riachinho, Quiridalho e Marias Pretas, há um pedaço demarcado e outro não.
“Por exemplo, em Quiridalho, na época da demarcação, apenas três famílias ficaram dentro da terra demarcada, de um total de 20 famílias. Foi uma coisa muito mal feita”, diz. Quem não está nas áreas regularizadas diz estar “encurralado dentro de pequenos espaços de terra que sobraram”.
Da aldeia Malhador, Socorro relata que, onde ainda não há demarcação, famílias não conseguiram, por exemplo, construir casas pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Aldeias não demarcadas também não têm direito a um posto de saúde próprio.
“A gente tem que se virar. O atendimento costuma acontecer apenas periodicamente dentro das escolas. Então, quando tem atendimento, as crianças ficam sem aula. Quando precisamos ir ao dentista, temos que nos deslocar para outra aldeia onde tem posto”, relata Socorro.
À reportagem, o defensor regional de direitos humanos e defensor nacional de direitos humanos substituto, André Carneiro Leão, da Defensoria Pública da União em Pernambuco (DPU-PE), informou que, após receber a denúncia, já instaurou procedimento e deve encaminhar ofícios a diversos órgãos oficiais, incluindo ICMBio, para obter mais informações.
Como há várias reivindicações, a DPU-PE também irá inicialmente conversar com a comunidade Kapinawá para, em seguida, dialogar com a Funai e o Ministério Público Federal (MPF).
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com