Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Mobilização contra usina nuclear em Itacuruba ganha força com audiência pública no Senado

Raíssa Ebrahim / 20/09/2021

Crédito: captura de tela YouTube/Senado Federal

“Não queremos usina nuclear em nosso território tradicional nem ao longo do nosso rio São Francisco, que vem sendo agredido continuamente e pede socorro”. A fala é da cacica Lucélia Pankará, da aldeia Serrote dos Campos, em Itacuruba, a quase 500 quilômetros do Recife. Nessa região, vivem 11 povos indígenas e nove comunidades quilombolas.

O debate em torno do projeto da Eletronuclear de instalação de uma usina nuclear no Sertão de Itaparica ganhou força recentemente porque alguns estados estão sendo alvo de ação de inconstitucionalidade para derrubar artigos que impedem a instalação de empreendimentos desse tipo. Foi o que aconteceu, na semana passada, com a vizinha Paraíba, após decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF).

Itacuruba, às margens do Opará (como o São Francisco é chamado pelos indígenas), está ameaçada pela potencial instalação de seis reatores nucleares. Um megaprojeto que, caso saia do papel, terá mais do que o triplo da energia gerada por Angra 1 e Angra 2 juntas, localizadas no Rio de Janeiro.

A cidade do sertão pernambucano foi escolhida, ainda em 2011, como o melhor local para o projeto por, entre outros fatores questionáveis, ter água em abundância. Uma usina nuclear necessita de muita água para resfriar os reatores e joga essa água alguns graus mais quente de volta no rio, podendo comprometer a vida da fauna e da flora. Porém, com o grave acidente nuclear de Fukushima, no mesmo ano, o projeto foi engavetado. Agora a gestão Bolsonaro reativou o debate e o Governo Federal está convencido a tocar o projeto.

A Constituição de Pernambuco tem uma particularidade em relação a alguns outros estados. A legislação pernambucana prevê não a proibição, mas a exigência de que a implementação de uma fonte nuclear só se faça quando todas as demais matrizes energéticas já tenham sido implementadas com todo o seu potencial.Em outras palavras, quando não houver mais alternativa. O que, nem de longe é o caso de Pernambuco, um dos maiores produtores de energia eólica do Brasil e com um enorme potencial para geração de energia solar.

Além dessa ameaça, tramita na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 09/2019), de autoria do deputado estadual Alberto Feitosa (PSC), que altera a constituição estadual para abrir caminho a esse tipo de empreendimento. A PEC, no entanto, ainda não chegou a ser analisada pela Comissão de Constituição de Justiça.

Com o clima de tensão aumentando no sertão, o tema foi pauta de uma audiência pública no Senado, nesta segunda-feira, 20 de setembro, convocada pelo senador Humberto Costa (PT-PE), que preside a Comissão de Direitos Humanos do Senado. A princípio, nenhum representante dos povos tradicionais havia sido convidado a falar. Mas, após pressão dos movimentos sociais, a cacica Lucélia Pankará foi convocada a participar.

A liderança lembrou que boa parte da população vive as dores e o trauma de ter visto suas casas e sua terra inundadas, na década de 1980, para construção de uma barragem pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) para instalação de uma usina hidrelétrica. A chamada Nova Itacuruba foi erguida do zero a dez quilômetros do rio e a 11 da rodovia mais próxima.

A mudança ajuda a entender por que a região carrega altos índices de adoecimento mental. Itacuruba, alvo de empreendimentos energéticos desde a década de 1970, passou a carregar a marca da cidade da depressão e do suicídio. A taxa de suicídio da cidade, de 6,6 casos para cada 100 mil habitantes, é quase seis vezes maior do que a média nacional.

A cacica Lucélia também lembrou, em sua fala, que os povos ainda estão na luta pela demarcação dos territórios. Mas, por conta do descaso do governo federal e a morosidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), as terras ainda não foram demarcadas. Em Itacuruba, nenhum dos seis povos e comunidades tradicionais tem seus territórios regularizados. No sertão de Itaparica, apenas quatro dos 11 povos indígenas têm terra demarcada e nenhuma comunidade quilombola tem seu território titulado. “Nós povo pankará nos vemos obrigados a peregrinar em defesa dos nossos direitos”, assinalou a cacica Lucélia.

“Queremos um projeto de desenvolvimento nacional que ampare os direitos humanos, que olhe as comunidades tradicionais e que seja pensado e planejado com elas envolvidas, pois é quem bem sabe do que precisa”, defendeu a liderança.

Enquanto o mundo inteiro fecha usinas nucleares, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) insiste em abri-las. O senador Humberto chamou a iniciativa de “vexame internacional”. O relatório anual 2020 sobre indústria nuclear no mundo aponta que fontes renováveis, como solar, eólica e biomassa, geraram, em 2019, mais eletricidade do que usinas nucleares pela primeira vez na história. O número de usinas em operação no mundo caiu de 438 para 408.

Violação de direitos humanos

O projeto da usina nuclear constitui violações de direitos humanos não só aos povos e comunidades tradicionais da região, mas à população na sua forma geral, mesmo antes da sua instalação. É o que argumenta a antropóloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Vânia Fialho.

Ela coordenou uma pesquisa na região a partir do projeto “Nova cartografia social” e que culminou em várias publicações. Membro do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Vânia vem, há alguns anos, desconstruindo os argumentos dos entusiastas do empreendimento.

Ela frisa a negligência de informações sobre o projeto e a situação em que vivem as populações após repetidas investidas de empreendimentos em nome do desenvolvimento. Mesmo diante de experiências traumáticas, as pessoas ainda não receberam informações precisas ou foram devidamente consultadas por órgãos competentes sobre a instalação da usina.

A situação lembra o que está acontecendo na foz do Rio São Francisco, nos Estados de Sergipe e Alagoas, em relação à exploração da petrolífera ExxonMobil. Sem consulta prévia aos povos, os empreendimentos violam a Constituição Federal e o artigo 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário.

Vânia lembra que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem entendido que a consulta aos povos indígenas deve acontecer desde a primeira etapa do plano.

Apesar de haver 11 povos indígenas e nove comunidades quilombolas vivendo no Sertão de Itaparica, a professora lembra que a escolha do local é justificada por ali ser um “vazio demográfico”. Deixando de reconhecer, portanto, todo o potencial sociocultural das vidas que ali estão, incluindo também agricultores, pescadores e populações de outros segmentos.“Essa é, sem dúvida, a mais profunda das violências, a negação da própria existência”, resume.

“Entusiastas da usina têm defendido que a discussão sobre o empreendimento deve ser ‘técnica’, e não ‘emocional’, e que ações antinucleares realizadas por críticos são de cunho sensacionalista e terrorista. Isso como forma de tratar pejorativamente as produções nas na área das ciências humanas”, ressalta Vânia.

Em contrapartida, essa tecnicidade dos defensores se resume a propagandas de emprego e renda, ruas asfaltadas e um hospital de alta complexidade que serão promovidos no município, ainda que não se demonstre haver meios para isso nem que esses sejam os objetivos prioritários do projeto. “Numa central nuclear, serão poucos os postos a serem ofertados para trabalho e eles exigem altos níveis de especialização e trabalhadores que vêm de fora”, rebate.

Mobilização popular contra usina em Itacuruba em 2012. Crédito: João Zinclar

A briga jurídica

Na semana passada, o senador Humberto Costa (PT-PE) participou de audiência com a ministra Rosa Weber, relatora da matéria no STF. A Procuradoria Geral da República (PGR) ajuizou uma série de ações na Suprema Corte questionando legislações estaduais que proíbem ou restringem a instalação de usinas nucleares e o depósito de lixo radioativo. Já há decisões de inconstitucionalidade em Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Paraíba.

“Será que o lobby da indústria nuclear internacional irá vencer a vontade de um povo que já sofreu com tantas ações intempestivas no estado?”, provocou o parlamentar. Humberto colocou que a legislação brasileira fala da possibilidade de implantação desse tipo de fonte energética, mas determina que o tema precisaria ser regulamentado por lei federal, o que inclui a localização das potenciais usinas.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear já possui autorização legislativa para adotar medidas necessárias para ampliação da energia nuclear na matriz energética do Brasil. Porém, diz o senador, a discricionariedade delegada ao Executivo foi restringida. A Constituição de 1988 atribui ao Congresso a prerrogativa de aprovar iniciativas referentes a atividades nucleares.

“Nesse sentido, é de competência do Congresso a definição, por meio de lei ordinária, de sítios destinados a instalação de usina sem legislação adequada. Então o empreendimento de Itacuruba não poderá ser executado”, defende. No momento, na visão do senador, só o sítio de Angra está habilitado para receber usina, pois, a despeito de não haver uma lei que autorize, a unidade já estava operativa quando da promulgação da Constituição de 1988.

Também participaram da audiência pública Isaltino Nascimento, deputado estadual (PSB-PE); Hélio Lúcio Dantas da Silva, procurador-geral da Assembleia Legislativa de Pernambuco; Dom Limacêdo Antônio, bispo auxiliar de Olinda e Recife e presidente da Comissão Regional para Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); e José Júnior Karajá, assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Nordeste e membro do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com