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João Pedro Nires // Cariri busca equilíbrio entre resistência cultural, juventude e transformação social

Marco Zero Conteúdo / 21/11/2025

Crédito: Dandara Françaa

por Beatriz Santana*

Em 1921, cinco amigos talvez não imaginassem que criariam o grupo responsável por anunciar a chegada do carnaval em Olinda. A Troça Carnavalesca Mista
Cariri Olindense, hoje Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, conquistou oficialmente esse título em 2016, mas já carregava há muito tempo o reconhecimento popular como símbolo de tradição.

A história começou com o encontro de Augusto Canuto de Santana, Cosmo Botão, Jacinto Martinho, Isnar Colombo e Eugênio Cravina com um velho mascate vindo do Sertão do Cariri, região entre Pernambuco, Paraíba e Ceará, para vender ervas medicinais no centro do Recife. Encantados com sua figura, pediram permissão para homenageá-lo na agremiação que estavam fundando.

Desde então, todos os anos, o Cariri sai da sede, no bairro de Guadalupe, às quatro da manhã. À frente do cortejo, um homem fantasiado de mascate, com barbas brancas, chapéu de palha e montado em um burro, guia os foliões pelas ladeiras. A lenda dizia que o mascate “pegava crianças”, uma brincadeira inventada para impedir que os pequenos saíssem de casa durante a madrugada.

Quem melhor conta essa história é o educador musical e diretor de preservação e memória do Cariri Olindense, João Pedro Nires. Em entrevista exclusiva, ele explica que a troça é, para ele, quase um parente: “É aquele primo ou tio que exige atenção o tempo todo. Já demandou esforço, tempo e dinheiro da família”.

Esse esforço coletivo foi essencial para impedir que a tradição se interrompesse. Em 2008, quando o Cariri não desfilou, o bairro reagiu com indignação. “Saiu até no jornal: ‘revolta no bairro do Guadalupe’. Porque o Cariri não saiu”, relembra João.

O sentimento de pertencimento se renova a cada cortejo. Os versos do hino “Lá vem o Cariri ali / Com saco de pegar criança / Pegando menino e moça / Pegando tudo o que a vista alcança” embalam os foliões, que seguem o bloco com devoção.

No passado, a manutenção da troça dependia do “Livro de Ouro”, que circulava de casa em casa recolhendo doações. Hoje, além da contribuição da comunidade, o Cariri se sustenta com a venda de camisetas, ingressos de festas e patrocínios pontuais, além da bolsa do título de Patrimônio Vivo.

Entre tradição e renovação

Para muitos moradores de Guadalupe, o som da orquestra do Cariri é o verdadeiro anúncio de que o carnaval começou. “Era uma agremiação bem restrita à sua saída às 4 horas da manhã. E de um tempo para cá, por vários fatores, o público vem mudando, vem chegando a juventude para brincar o Cariri, vem chegando uma galera de Recife, vem chegando a galera branca, é vem chegando a galera de São Paulo, de outros estados, enfim, para curtir”, conta João.

O desafio, agora, é equilibrar tradição e crescimento. “A logística se torna mais difícil: garantir espaço para os músicos, para os estandartes, para o burro do Cariri. Controlar não é dizer ‘vai pra cá, vai pra lá’, é trazer conforto”, explica.

Ainda assim, João vê a chegada do novo com entusiasmo. “A juventude vai chegar com mais gás, com mais energia, com mais potência. O novo sempre vem”, diz. Para ele, cabe às gerações anteriores orientar e equilibrar essa energia, garantindo que o “transe coletivo” continue.

João alerta para os perigos de um discurso que idealiza o passado. “É uma armadilha muito grande, principalmente para nós jovens, cair nesse discurso da essência, do que era original, do que é raiz”, afirma. Para ele, congelar o frevo e o carnaval em uma forma fixa é negar sua própria natureza transformadora.

Essa reflexão ganha ainda mais peso quando entra em pauta a inclusão. “A Troça Carnavalesca Mista, com ‘M’ de mista, inclui homens e mulheres. Algumas agremiações ainda não têm esse ‘M’. A gente vai manter isso em nome da tradição?”, provoca.

Preservar o Cariri é manter viva a memória coletiva e o pertencimento do bairro de Guadalupe, mas também aceitar que a tradição, como o frevo e o carnaval, só sobrevive se continuar se transformando. Afinal, como lembra João, “se o carnaval é o momento em que tudo pode ser, por que não pode também ser reinventado?”

* Beatriz Santana é estudante de Jornalismo da UFPE.

As reportagens publicadas aqui fazem parte da parceria entre a Marco Zero Conteúdo e o projeto de extensão “Cartografias do Frevo”, desenvolvido por professores e alunos do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A iniciativa busca mapear a contemporaneidade do frevo a partir de entrevistas com mestres, músicos, passistas e artistas que reinventam o ritmo.

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Marco Zero Conteúdo

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