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João Pernambuco, o gênio que Pernambuco esqueceu

Inácio França / 22/11/2022
Foto antiga, em preto e branco, com sinais de desgaste, de um homem jovem de cabelos escuros e lisos, segurando um violão inclinado para cima.

Crédito: Arquivo José Leal

Vinte e dois de novembro é o dia do músico. E, mais uma vez, os gestores da cultura em Pernambuco perderam a oportunidade de homenagear a vida e a obra de um dos mais influentes músicos da história do país, o pernambucano João Teixeira Guimarães, cujo 75º aniversário da morte aconteceu no último 16 de outubro.

Em 2023, mais uma data redonda corre o risco de passar em branco, pois o dia 2 de novembro marcará os 140 anos de nascimento daquele que foi o mais popular violonista e compositor da primeira metade do século XX. A assessoria da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) informou que não deixará nada programado para o próximo governo celebrar a data.

Mas, quem foi este homem de nome, ao mesmo tempo, tão comum e desconhecido para os pernambucanos do século XXI? João Teixeira Guimarães era o nome de batismo de João Pernambuco.

Se você, leitor, não for músico profissional ou estudioso da música brasileira, provavelmente ainda não sabe de quem se trata. Fizemos uma rápida sondagem com integrantes da equipe da Marco Zero e constatamos que ninguém aqui da redação sabia de João Pernambuco.

No entanto, a influência desse sertanejo nascido no povoado Bebedouro de Jatobá, que viria a ser a antiga Petrolândia, hoje submersa sob as águas do lago artificial da usina de Itaparica, se faz presente em qualquer violão dedilhado pelos bares, palcos e estúdios Brasil afora. Coordenador do Conservatório Pernambucano de Música e professor de violão da instituição Rodrigo Leite Cavalcanti nos ajuda a compreender a importância de Pernambuco para a cultura brasileira:

“Ele é muito importante não só pro violão. Ele foi para o Rio de Janeiro a música nordestina na bagagem, mas ele virou um músico brasileiro, com muita coisa de choro, valsa, maxixe, associando isso à música do sertão. Para o violão ele é muito importante porque colocou toda essa linguagem brasileira no violão. Hoje parece muito natural, mas, na época, era muito ousado. Por isso, ele é tão importante para o violão brasileiro como Ernesto Nazareth foi para o piano”.

Cavalcanti acredita que a falta de reconhecimento de João Pernambuco é regra geral, inclusive no mundo da música. “Ele é conhecido mesmo entre o pessoal do violão e pelo pessoal que toca choro, mas até entre profissionais de outros instrumentos, há muita gente que não o conhece”, lamenta.

Rodrigo Cavalcanti lembra que, em 2021, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto do deputado estadual Waldemar Borges, instituindo o 16 de outubro – aniversário de morte do compositor – como o Dia Estadual do Choro em Pernambuco. A iniciativa não teve grande repercussão pública e parece não ter despertado interesse dos gestores da área.

Um autodidata na Torre

O primeiro contato de João com a música foi no sertão. Quem conta é o carioca José Leal, jornalista e pesquisador de música, radicado em Hamburgo, na Alemanha, desde meados dos anos 1980. Quando ainda morava no Brasil, Leal conquistou o primeiro lugar de um prêmio de monografias da Fundação Nacional de Artes (Funarte) graças a seu trabalho de pesquisa sobre a obra de João Pernambuco.

O pesquisador relata que, ainda criança, no sertão, o compositor aprendeu a tocar violão . Para isso, lhe bastou assistir as apresentações dos tradicionais violeiros na feira de Bebedouro de Jatobá ou nas festas populares. Seu talento chamou a atenção de um músico da vila, responsável por lhe transmitir os primeiros segredos do instrumento. O aprendizado, no entanto, foi interrompido.

Depois que seu pai morreu, a mãe Teresa casou-se novamente e toda a família veio para o Recife, pois o padrasto havia arrumado emprego como operário na fábrica de tecidos na Torre.

João morou toda a adolescência e início da vida adulta na vila operária onde vivia a maior parte dos funcionários da fábrica. Algumas dessas casas ainda sobrevivem, nas redondezas da rua José Bonifácio, perto da antiga indústria cujas instalações sobrevivem de pé, vizinhas ao Carrefour e do Atacado dos Presentes.

Com ajuda dos descendentes do músico, José Leal retomou as pesquisas e transformou a monografia original em perfil biográfico, que será publicado em forma de livro no próximo ano. Por isso, o jornalista visitou Pernambuco para conhecer o bairro da Torre e a nova Petrolândia, erguida após a formação do lago artificial de Itaparica.

Sem vocação para a vida de operário têxtil, João trilhou seu próprio caminho. “Ele fazia pequenos serviços na feira da Torre, junto da fábrica, para ganhar alguns trocados que usou para comprar um violão usado. Ele ia de bonde até o pátio de São Pedro e o mercado de São José para ver os violeiros, foi dessa maneira inusitada que João aprendeu tudo com seus mestres nas ruas, sem saber ler partitura ou cifras. E foi assim que estabeleceu e definiu a linguagem do violão brasileiro, sendo o primeiro brasileiro a compor música para exclusivamente para violão”.

Ao visitar Recife e Petrolândia, Leal manteve contato com um grupo de músicos sertanejos que se consideram discípulos de João Pernambuco e fundaram um instituto com seu nome para tentar preencher a lacuna deixada pelo poder público. A edição da biografia no Brasil acontecerá com apoio da entidade recém-criado. “Falar de João é fundamental, pois se uma pessoa estuda violão, de maneira consciente ou não, necessariamente vai se encontrar com João Pernambuco, mas se a pessoa tem consciência deste legado, vai aprimorar o seu desempenho com o instrumento e quem ganha com isso é a música brasileira”, defendeu.

João (de chapéu escuro, 1º da esq. p/ dir, sentado) e Os Oito Batutas.

Luar do Sertão e Villa-Lobos

Se Pernambuco não homenageia João Pernambuco, há quem o faça. O paraense Salomão Habib, um virtuose do violão erudito, pretende realizar um conserto no Teatro da Paz, o mais tradicional do Pará, intercalando obras do pernambucano e do compositor popular paraense Tó Teixeira. Habib põe Pernambuco no mesmo patamar de importância do compositor clássico Heitor Villa-Lobos e Ernesto Nazareth, já citado pelo professor Rodrigo Cavalcanti.

“É justamente a forma do Pernambuco tocar o choro, a valsa e o maxixe no momento em que esses gêneros musicais estão sedimentando as suas bases, que marcaram seu legado na estética desses gêneros”, explica o violonista paraense, que cita um dos mais polêmicos episódios da música brasileira: o fato de Catulo da Paixão Cearense ter omitido o nome de João Pernambuco como coautor da célebre Luar do Sertão (famosa pelo refrão “Não há, ó gente, ó não / Luar como esse do sertão / Não há, ó gente, ó não / Luar como esse do sertão”).

“Composta em 1911, lamentavelmente sua autoria foi dada apenas para o Catulo da Paixão Cearense autoria, mas isso mais lá adiante foi pouco reparado e, hoje, a gente sabe que essa obra maravilhosa é também de João Pernambuco”, recorda. Durante décadas, Catulo alegou que era o único autor, mas dezenas de músicos da época, inclusive Villa-Lobos e Pixinguinha, afirmavam terem escutado a canção tocada pelo pernambucano.

Em seu livro, José Leal é categórico, reforçando as suspeitas sobre Catulo, detalhando que, por saber ler e escrever partituras, o famoso compositor cearense acompanhava muitas das apresentações de Pernambuco pelos palcos do Rio de Janeiro, anotando tudo e registrando depois as músicas como se fossem criações suas. A polêmica não é vazia: Luar do Sertão é uma das músicas mais gravadas da história do Brasil.

Foi no Rio de Janeiro, para onde emigrou aos 21 anos de idade em 1904, que João incorporou o nome do seu estado natal. Seis anos depois, já era considerado um “bamba” do choro, formando grupos como Trupe Sertanejo, Turunas e Oito Batutas. Quatro décadas antes de Luiz Gonzaga, foi João quem introduziu o chapéu de couro e roupas sertanejas no cenário cultural brasileiro.

Salomão Habib, porém, destaca outras canções de Pernambuco consideradas essenciais: “Graúna e Sons de Carrilhões são músicas maravilhosas; Sonho de Magia que é uma peça melodiosa, belíssima; temos Rosa Carioca e Mimoso, obras gravadas em 1926 pelo selo Odeon”.

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AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.