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Julgamento no STF pode comprometer 89 processos de titulação de terras quilombolas em tramitação em Pernambuco

Laércio Portela / 15/08/2017

Oitenta e nove processos de demarcação e titulação de terras quilombolas que tramitam no Incra em Pernambuco podem ser prejudicados ou suspensos caso o STF julgue inconstitucional nesta quarta-feira (16) o decreto 4.887/2003, que regulamenta o direito constitucional dos remanescentes de quilombos.

Em 14 anos de vigência do decreto, 2.598 comunidades quilombolas foram certificadas pela Fundação Palmares – órgão do governo federal – em todo o Brasil. Dessas, 193 em solo pernambucano. Com as certificações, as comunidades podem requerer abertura de processo de titulação nas superintendências regionais do Incra.

Por trás da ação de inconstitucionalidade está o Democratas, partido do ministro da Educação, Mendonça Filho, e do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. A ação (ADI 3239) foi movida ainda em 2004 e começou a tramitar no STF em 2012, questionando o direito das comunidades de remanescentes quilombolas à autodeclaração. Alega ainda que a regulamentação da Constituição deveria ser feita por projeto de lei e não por decreto.

O ministro Cezar Peluso, então relator, considerou o decreto inconstitucional, mas o julgamento foi suspenso, voltando ao pleno apenas em 2015 quando a ministra Rosa Weber votou pela constitucionalidade. Houve um novo adiamento com o pedido de vistas do ministro Dias Toffoli. Agora, a ação volta mais uma vez a ser analisada. Com o placar em 1×1, vence o lado que garantir cinco dos nove votos restantes.

Pressão dos ruralistas

A pressão da bancada ruralista é grande. Em entrevista ao Repórter Brasil, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT) criticou a autodeclaração das comunidades quilombolas. “Não há problema em defender os direitos quilombolas, mas temos de defender os verdadeiros (quilombolas). O decreto abre essa brecha de qualquer um se declarar como descendente de escravo”.

A declaração do deputado, que é líder da Frente Parlamentar pela Agropecuária, não leva em conta o fato de que no mesmo ano de publicação do decreto 4.887/2003, o Brasil tornou-se signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que estabelece o critério de autoidentificação das comunidades originárias e a obrigação de o Estado fazer o reconhecimento oficial.

Nilson é autor do relatório da CPI da Funai e do Incra, aprovado em maio deste ano, acusado de criminalizar a luta dos povos originários ao indiciar mais de 70 lideranças indígenas, religiosos, antropólogos, procuradores da República e funcionários da Funai e do Incra envolvidos nos processos de demarcações de terras indígenas e quilombolas, entre eles um servidor do Incra do Rio Grande do Sul falecido em 2008.

A ameaça do marco temporal

Não é apenas o julgamento pela inconstitucionalidade do decreto que preocupa os defensores dos povos originários. Há a possibilidade de o STF decidir pela constitucionalidade, mas impor condicionantes. Neste caso, pode vingar a tese do marco temporal defendida pela ministra Rosa Weber pela qual teriam direito à terra apenas os remanescentes quilombolas que ocupavam suas terras em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal.

Para os defensores dos direitos dos povos originários, a tese do marco temporal ignora todo o passado de violência contra as populações quilombola e indígena. Muitas vezes essas populações foram expulsas de suas terras e tiveram mesmo que negar sua identidade como forma de autoproteção. Além do que, até a Constituição de 1988, o Estado brasileiro não reconhecia a origem dessas populações e, sem proteção, a relação delas com a terra era precária e sob a dominação de outros grupos, por isso, em diversos casos, não há como comprovar a ocupação.

 Autodeclaração e território

Jonnhy Cantarelli, antropólogo do serviço de Regularização de Terras Quilombolas do Incra de Pernambuco, defende o direito de autodeclaração e da indicação do território quilombola pela própria comunidade. Ele teme que com a queda do decreto 4.887/2003 volte a vigorar no Brasil a visão do quilombo histórico como espaço ocupado por escravos fugidos.

“Essa visão paralisaria todos os processos em tramitação no Incra. Embora tenham relação com esse passado, muitas das comunidades quilombolas se estabeleceram justamente após a escravidão. Considerar para efeito de demarcação e titulação apenas as terras ocupadas por essas populações em 1988 não mudaria em nada a realidade delas, especialmente aqui em Pernambuco, porque não levaria em conta o território necessário para garantir a reprodução material, social e cultural dessas pessoas. Seria um grande e grave retrocesso”.

Em Pernambuco, tramitam 89 processos de comunidades quilombolas no Incra. Cinquenta e cinco deles vinculados à Superintendência do Incra sediada em Recife e 34 à Superintendência do Médio São Francisco, com sede em Petrolina. A maior parte, no entanto, está em fase inicial de tramitação. No caso dos processos sob acompanhamento da Superintendência em Recife, apenas oito já avançaram para além da etapa inicial: Castainho, Timbó, Estivas e Estrela (os quatro em Garanhuns), Quilombo Pinhão (Águas Belas), Negros do Osso (Pesqueira), Varzinha (Iguaracy) e Chã dos Negros (Passira). Dos processos no Incra do Médio São Francisco, dez passaram da fase inicial, sendo nove deles no sertão pernambucano: Águas do Velho Chico (Orocó), Cruz dos Riachos, Fazenda Santana, Jatobá II (os três de Cabrobó), Posse/Feijão (Mirandiba), Contendas/Tamboril (Salgueiro), Trinca dos Crioulos (Carnaubeira da Penha), Santana III e Conceição das Crioulas (Salgueiro) e Curral da Pedra (Abaré-BA).

“É preciso pensar o passado, o presente e o futuro dessas comunidades. O passado para reconhecer a cultura ancestral afrodescendente, sua história; o presente para entender em quais condições vivem hoje, quais são suas necessidades; e o futuro para garantir as condições de vida das gerações futuras. Veja o caso do Quilombo Varzinha. Por 200 anos eles estão ali ocupando aquelas terras, sem a posse formal propriamente dita, mas trabalhando para vários proprietários que foram se sucedendo, geração após geração” explica Jonnhy.

O que diz o decreto

O decreto 4.887/2003 considera remanescentes dos quilombos “os grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Cabe à Fundação Palmares emitir a certificação dos autoproclamados quilombos. Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio do Incra, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos certificados

O decreto prevê que “para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental”. Também garante aos remanescentes “a participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de representantes por eles indicados”.

conceição das cioulas

Conceição das Crioulas é uma das duas únicas comunidades quilombolas que conseguiram os títulos parciais de propriedade em Pernambuco

Processo lento

De todas as comunidades certificadas pela Fundação Palmares no Brasil, apenas 11% têm a efetiva titulação de suas terras. O processo é burocrático e longo. Em Pernambuco, apenas duas comunidades passaram por todo o processo do Incra e tiveram emitidos os títulos de propriedade: Conceição das Crioulas (Salgueiro) e Castainho (Garanhuns). Mesmo assim os títulos são parciais. No caso de Conceição das Crioulas eles abrangem apenas 2 mil hectares de um total de 16.845 previstos, já que ainda não foi viabilizada a retirada do território dos ocupantes não-quilombolas e o pagamento das indenizações.

O título de propriedade abriu caminho, a partir de 2003, para que as comunidades sejam beneficiadas por políticas públicas que garantam acesso a escolas para as crianças e posto de saúde.

Desde 1995 foram regularizados apenas 752 mil hectares de território quilombola em todo o Brasil, num total de 219 títulos emitidos em benefício de 15.610 famílias. Dos 1.692 processos de titulação em andamento no país, 86% não ultrapassaram a fase inicial, segundo o Incra. A lentidão histórica dos processos se agravou com os cortes no orçamento a partir do segundo mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff e atingiram um nível de quase paralisação das atividades nos dois últimos anos, sob o governo Michel Temer.

Esvaziamento

Acostumados a trabalhar vendo os recursos sendo disponibilizados segundo as demandas do órgão, o setor de Regularização de Terras Quilombolas do Incra com sede em Recife teve apenas R$ 32 mil de orçamento para encaminhar todos os 55-PE processos de demarcação e titulação de terras em 2016. Esse valor caiu substancialmente para R$ 8 mil em 2017, inviabilizando avanços significativos nos processos, que demandam reuniões, visitas às comunidades, relatório antropológico, delimitação fundiária, desintrusão, reassentamento, até a fase de demarcação e titulação propriamente.

“Nós trabalhávamos antes com um orçamento mais flexível, mas de dois anos para cá temos que eleger prioridades, atuando agora especialmente em comunidades que estejam em situação de conflito ou com processo judicial, sempre de comum acordo com o movimento organizado dos quilombolas. Tínhamos planejado iniciar os trabalhos em pelo menos duas novas comunidades a cada ano, mas infelizmente não temos tido condição real de fazer essas visitas”, relata Isabel Rodrigues, antropóloga do setor de Regularização de Terras Quilombolas do Incra-PE.

Caravana

Setenta remanescentes quilombolas de Pernambuco estão em Brasília para acompanhar o julgamento no Supremo Tribunal Federal. São integrantes de mais de dez quilombos da Mata Sul e Norte, Agreste e Sertão. Eles se deslocaram para a capital federal no sábado de manhã em um ônibus e um micro-ônibus. “É muito importante que a gente esteja presente neste momento. Muitas pessoas envolvidas no julgamento nunca estiveram num quilombo e nós precisamos dizer a elas pessoalmente como vivemos e quais são nossas necessidades”, explica Antônio Crioulo, da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ).

Os quilombolas pernambucanos participaram na manhã da terça-feira (15) de uma audiência na Câmara dos Deputados e passaram a tarde em vigília na praça dos Três Poderes, em frente à sede do STF. Na quarta (16) acompanharão o julgamento. A CONAQ estima em 1.500 o número de quilombolas que estão se deslocando de todo o Brasil para acompanhar de perto, em Brasília, a decisão do Supremo. “O que está em jogo é a nossa sobrevivência. O direito de nos reproduzirmos material e culturalmente. O território é tão importante para nós quanto o sangue que circula em nossas veias”, defende Antônio.

 

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República