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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Na manhã desta sexta-feira, 24 de junho, o corpo do indigenista Bruno Pereira foi velado no cemitério Morada da Paz, na Região Metropolitana do Recife. Mesmo morando em Belém com a esposa Beatriz Matos e os dois filhos e viajando constantemente a trabalho para o Vale do Javari, no oeste do Amazonas – local onde foi assassinado -, Bruno Pereira costumava vir com frequência ao Recife para visitar os pais.
A paixão pelo Sport Club do Recife e o orgulho de ser pernambucano fizeram parte da despedida do indigenista. As bandeiras do estado e do clube de coração estavam dispostas sobre o seu caixão ao chegar na sala do velório.
O corpo de Bruno chegou ao Recife na tarde da quinta-feira, 23 de junho. Participam da cerimônia de despedida familiares, amigos de Bruno Pereira, representantes de organizações de direitos humanos e grupos de povos indígenas ue vieram do interior de Pernambuco para homenagear o indigenista.
Logo nos primeiros minutos do funeral, a emoção tomou conta de todos com a chegada dos indígenas xukurus da serra do Ororubá, no agreste do estado. Foi entoando cantos e marchando que o grupo entrou no cemitério Morada da Paz. “Oh, meu irmão, oh, irmão meu. Cadê o meu irmão que não vem brincar mais eu?”, cantavam os xukurus enquanto balançavam seus instrumentos de percussão. O cântico continuou quando chegaram próximo ao caixão de Bruno. Os pais e a esposa do indigenista assistiam a homenagem com muita emoção.
“Não poderíamos não estar presentes aqui no dia de hoje, representando todos aqueles que não puderam estar aqui para dizer que Bruno e Dom vivem em cada um de nós”, declarou o cacique Marcos Xukuru, cujo pai, o cacique Chicão, também morreu assassinado em maio de 1998, a mando de fazendeiros contrariados com a luta do povo xukuru pelas suas terras. “Hoje eu gostaria de dizer para Bruno o que minha mãe disse quando meu pai foi assassinado: ele não vai ser enterrado, ele vai ser plantado porque dele vão nascer novos guerreiros”, afirmou a liderança indígena.
Após o ritual, Eriberto Marubo, diretor do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados (OPI) se dirigiu aos pais de Bruno: “Hoje, ele pertence a todos os povos indígenas. Vocês têm um filho herói para nós”. Após a falas de Eriberto, o cacique Marcos colocou sobre o caixão de Bruno o chapéu de ritual dos xukurus de Ororubá, feito de palha de buriti, um dos objetos mais sagrados para o povo do agreste pernambucano.
No final da cerimônia, após a celebração da missa, chegaram os representantes do povo pankararu, do sertão do São Francisco, que também homenageou Bruno Pereira.
Simultaneamente ao funeral, o OPI emitiu uma tocante “nota de tristeza e revolta”. Abaixo, dois dos trechos mais emocionantes da nota:
“Hoje enterramos Bruno, nosso irmão mais velho. Hoje, a terra onde ele nasceu o recebe, seu corpo reencontra o barro, as raízes das plantas, a água e o calor do solo. Seu corpo carrega o perfume salgado do mar e o aroma denso da mata que ele defendeu até que os destruidores da floresta o mataram de forma traiçoeira. Nossos olhos misturam lágrimas de tristeza profunda e de revolta intensa. Mataram Bruno e seu amigo Dom à beira do rio Itacoaí, numa manhã de domingo de fim de inverno, quando ele voltava de uma temporada junto aos seus melhores amigos, junto aos seus melhores mestres, com os quais ele aprendeu a entoar os cantos da festa”.
O segundo trecho que selecionamos carrega uma mensagem política clara, indicando a permanência do legado de luta do indigenista pernambucano: “Bruno teve uma paixão imensa, uma emoção que ele fez transbordar a tantas pessoas de tantos lugares: soube que no coração da mata os povos indígenas isolados lançavam seu grito de recusa contra a violência invasora. A voz dos povos indígenas isolados, daqueles que duramente sobreviveram a massacres e pestilências nossas, ecoou pelo mundo afora porque Bruno espalhou seu desejo: o desejo de deixá-los em paz, sem os burocratas do Estado, sem as fardas de militares que empunham armas, sem as cruzes sagradas das missões da morte, sem o brilho de ouro falso do capital insaciável”.
A família não destacou ninguém para dar entrevista, mas elaborou uma nota, que foi lida pela cunhada de Bruno, Thamy Rufino. Leia nota na íntegra:
A família está se despedindo de Bruno com o coração cheio de gratidão por ter tido ele em nossas vidas.
A vida de Bruno foi de coragem, dedicação e fidelidade à causa dos indígenas.
Bruno tinha uma missão e iluminou sua causa, levou ela para o mundo.
Neste momento e durante a última semana, indígenas de todo o país fizeram seus rituais de passagem e homenagearam Bruno Pereira. Agradecemos a todos.
Aos familiares, aos amigos, aos indígenas e a todas as pessoas que oraram, buscaram, trabalharam, representaram Bruno, somos eternamente gratos.
Que Deus em sua imensidão possa retribuir a Vocês e às suas famílias.
Agora estamos dedicados ao amor, ao perdão e à oração.
Obrigada.
O jurista e professor Manoel Moraes, coordenador da cátedra Dom Hélder Câmara da Unesco/ Unicap. Foi enfático ao declarar que a prisão dos assassinos não significa que a Justiça está feita: “É muito doloroso. A gente tenta encontrar algum conforto nas homenagens feitas pelos indígenas, mas o concreto é que um assassinato ainda não foi desvendado e é muito importante que a Polícia Federal e o estado brasileiro possam trazer evidências efetivas de quem mandou matar Bruno Pereira, isso ainda não foi respondido. É muito pouco você acreditar que o crime foi motivado por uma questão local, não foi uma questão local, foi um crime movido por interesses internacionais”.
Amigo de Bruno e com larga experiência no trabalho com os povos indígenas na fronteira com a Colômbia, onde desenvolve projetos de preservação e fiscalização em terras indígenas, Renato Athias, da Associação Brasileira de Antropologia, conhecia de perto a atuação do indigenista assassinado.
“O trabalho que Bruno estava desenvolvendo no Javari era um projeto piloto muito importante, não só para o georreferenciamento da região, mas também em defesa do patrimônio territorial das terras e para nós era fundamental. O trabalho de Bruno não vai parar, muito pelo contrário, vai despontar novas possibilidades de visibilidade desse trabalho e todos os antropólogos estão comprometidos em dar continuidade ao projeto e garantir a fiscalização do Vale do Javari, que está completamente ameaçado por garimpeiros, madeireiros e empresas mineradoras, e uma invasão que foi feita graças aos olhos fechados do Ministério do Meio Ambiente e da própria Funai”.
Os parágrafos abaixo são um relato emocionado desta cobertura, escritos depois de 12h30min, quando teve início a missa no salão de cerimônias do cemitério Morada da Paz. Logo depois de escrevê-los, acompanhei a família seguindo para a sala de cremação, onde terão o último momento de despedida ao indigenista:
“Filho, amigo, torcedor do Sport, pai, ativista, defensor dos direitos humanos, referência na luta indígena, marido. Hoje foi possível conhecer as diversas qualidades de Bruno Pereira e sentir o tamanho da perda que sua morte representa. Da bela homenagem realizada pelos indígenas pernambucanos às lágrimas derramadas pela cunhada que leu a nota elaborada pela família, é inegável o que Bruno foi um homem amado e reconhecido em seus exercícios profissionais e sociais.
Para quem não o conheceu pessoalmente, ou não sabia do trabalho desenvolvido por ele no Vale do Javari antes do crime que interrompeu a sua vida precocemente, fica a lamentação e a dor de saber que o Brasil não foi capaz de proteger os seus heróis mais uma vez e o dever de cobrar a justiça, não apenas para Bruno, mas por todo o povo que antes sorria com suas ações e agora chora com a sua partida.”
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.