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por Letícia Barbosa*
Mulher negra e moradora do bairro da Linha do Tiro, na zona norte do Recife, Lidiane Silva, de 36 anos, deu à luz a Benjamim, seu quarto filho, em novembro de 2024. Durante a internação, a empregada doméstica foi surpreendida com a possibilidade de realizar a laqueadura já no dia seguinte ao nascimento do mais novo integrante da família.
Lidiane já havia manifestado o interesse em realizar o procedimento durante o pré-natal, mas ouviu dos profissionais que acompanharam sua gestação na unidade básica de saúde que não era possível realizar a cirurgia logo após o parto normal e deveria esperar por um golpe de sorte.
Mesmo assim, chegou ao hospital munida de toda documentação necessária. Desta vez, Lidiane conseguiu fazer valer seu desejo e realizar a laqueadura, sem necessidade de se submeter a uma cirurgia cesariana. Cidadã recifense, ela realizou todo o processo na Policlínica e Maternidade Professor Barros Lima, localizada na zona norte, perto de onde mora.
A empregada doméstica buscava realizar a esterilização voluntária há dez anos, mas encontrou obstáculos, como a dificuldade de estar presente nos encontros de planejamento reprodutivo, mais conhecido como planejamento familiar, que ocorrem durante a semana, em horário comercial.
A laqueadura após o parto normal ou cesáreo é uma das mudanças trazidas pela Lei nº 14.443/22, que entrou em vigor em março de 2023. O marco legislativo atualiza a Lei do Planejamento Familiar, de 1996. A alteração inclui ainda a redução de idade para realizar a laqueadura ou vasectomia, de 25 para 21 anos ou menos de 21, no caso de já ter dois filhos nascidos vivos; e a retirada da obrigatoriedade de permissão do/da cônjugue para obter o procedimento.
Com as novas condições, o número de laqueaduras realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foi elevado em quase duas vezes e meia em Pernambuco, entre 2019 e 2024. Os dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) revelam que, em 2019, 3.522 procedimentos foram efetuados no Estado. Em 2020 – ano em que o país foi acometido pela pandemia de Covid-19 e as cirurgias eletivas em geral foram suspensas – o número caiu para 3.086. No ano seguinte, ainda na pandemia, a queda se manteve, totalizando 2.742 esterilizações femininas.
Com o controle das infecções pelo coronavírus, a quantidade de laqueaduras cresceu. Em 2022, o aumento chegou a quase 65% em relação a 2021, com a execução de 4.518 procedimentos.
Já em 2023, com a nova lei da laqueadura em vigor, Pernambuco registrou 6.913 esterilizações femininas. E a curva de crescimento se mantém: em 2024, mais de 12 mil laqueaduras foram realizadas no estado.
O cenário atual, no entanto, é marcado por fatores como inflexibilidade do modelo de planejamento reprodutivo, superlotação de hospitais, falta de informação e concentração regional, que aparecem como obstáculos para as pessoas que querem acessar o serviço. Além disso, as regras vigentes facilitam para mais pessoas o direito de optar pela esterilização, o que representa em alguma medida maior possibilidade de escolha, mas, em contrapartida, aumenta a busca por partos cesáreos.
Embora a Lei Nº14.443/22 tenha ampliado a procura pela laqueadura, a concentração das unidades de saúde que oferecem o serviço em Recife e na Região Metropolitana é outra barreira de acesso ao procedimento.
A capital pernambucana contabilizou 3.339 cirurgias em 2024 e uma a cada quatro dessas pacientes saem de municípios de fora da Região Metropolitana do Recife (RMR) para realizar a laqueadura na cidade.
Mesmo na RMR, as cidades de Abreu e Lima, Paulista, Araçoiaba, Igarassu, Itapissuma, Ilha de Itamaracá e Moreno não realizaram laqueaduras, enquanto residentes fizeram o procedimento em outras localidades.
Além da ausência do serviço em alguns municípios, a concorrência com outras cirurgias eletivas no sistema público de saúde impacta na espera.
“A paciente para laqueadura está competindo com patologias. Então, há pacientes com miomatoses, com sangramento, com endometriose, que são consideradas como urgência”, explica Cleonúsia Vasconcelos, à frente da Gerência de Atenção à Saúde da Mulher da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco
“O estado tem investido em mais leitos em hospitais e recomposição de equipes para conseguir dar celeridade ao processo. O programa “Cuida PE” incentivou vários hospitais a fazer contratos com o estado para ofertar cirurgias, dentre elas a laqueadura. Houve um aumento de cirurgias eletivas de uma maneira geral, mas não há um olhar específico para laqueadura”, explica a gestora.
Dados do SIH-SUS mostram que 41% do total de laqueaduras realizadas em 2024 em Pernambuco foram pela regulação estadual. “Os municípios têm unidades mistas ou hospitais de pequeno porte, que fazem partos quando acontece em período expulsivo, mas eles não têm equipe 7 dias da semana. Custear maternidade é difícil. Os valores que se repassam do SUS para realizar a parto, seja normal ou cesárea, são baixos, não é bom custo-benefício sustentar um serviço com maternidade de uma maneira geral”, completa Cleonúsia.
Outro fator é a necessidade dos encontros e consultas que fazem parte do planejamento familiar. Sempre em dias de semana e em horário comercial, as mulheres têm dificuldade de estar presentes e concluir o processo. É o caso de Patrícia Ferreira, de 35 anos, mãe solo de cinco filhos, residente do bairro da Linha do Tiro.
Henrique, seu filho mais jovem, veio ao mundo em março de 2023. Entretanto, ela não conseguiu ter um pré-natal de qualidade, algumas vezes por não ter com quem deixar suas crianças, outras por se sentir muito cansada para se deslocar até as consultas.
Há um ano e meio Patrícia voltou a buscar a laqueadura tubária. Sem encontrar vaga na unidade mais próxima, ela foi direcionada para os encontros de planejamento familiar em locais distantes. Desempregada, ela nem sempre tem condições financeiras de arcar com os custos do deslocamento e, por vezes, não pode estar presente por ter que fazer algum bico.
“Minha dificuldade é chegar lá. É a questão financeira e também deixar meus filhos com alguém. Como são muitos, nem todo mundo tem a possibilidade de ficar”, revela. Mãe solo, ela conta que percebe o aumento de vagas desde quando começou a procurar em 2023, porém, as duas vezes que iniciou o processo foi colocada em unidades distantes. “O ruim mesmo é a gente achar um local perto da gente, porque botam um para o Hospital da Mulher [zona oeste], botam para Afogados [zona sul]”, ela completa.
Para Lidiane, citada no início da reportagem, também não foi fácil. Com carteira assinada, ela evidencia que gostaria de se esterilizar há mais tempo. “No meu caso, realmente,não fiz uma laqueadura antes, porque eu não tinha como. Porque eu tinha três filhas para criar. Ou eu fico sem trabalhar, ou eu trabalho para poder dar comida a elas. A minha classe, empregada doméstica, é muito complicada. Porque em empresa, você falta hoje, tem outro para substituir. Na minha classe não tem”, explica.
Ao falar de como foi o processo do parto do pequeno Benjamim e para conseguir a laqueadura, Lidiane pontua que foi a primeira vez que passou a cuidar da própria saúde. “Há 11 anos, eu não tinha tempo para pedir para faltar, para fazer uma prevenção. Então, para algumas mães é bem complicado”, comenta.
A Lei do Planejamento Familiar teve origem na CPI da Esterilização, de 1992, destinada a analisar a incidência em massa do procedimento, principalmente, entre mulheres negras e pobres.
O processo teve início pela constatação de movimentos sociais e outras organizações de práticas como a troca da cirurgia por votos, a exigência de atestado de esterilização por parte de algumas empresas e os altos índices de arrependimento entre mulheres esterilizadas.
A mestre em saúde pública pela Fiocruz e pesquisadora em direitos reprodutivos, Talita Rodrigues, destaca que a laqueadura foi utilizada como estratégia de controle de natalidade.
“Tinha-se a ideia de que o que criava pobreza no Brasil eram os pobres. Então, para eliminar os pobres, eles não podiam procriar. Pelo objetivo de progresso, agiu-se muito sobre o corpo das mulheres. E quem são essas mulheres? São mulheres majoritariamente negras, porque a discussão de raça e de classe caminham juntas”, pontua.
Para Talita, a questão racial não pode ser desconsiderada nesse contexto. “O racismo é o instrumento dessa estratégia de controle, de aniquilamento. Ele é um definidor na hora de decidir quem vive e quem morre, quem nasce, quem se cria”, completa.
O Censo de 2022 mostra que Pernambuco tem uma população majoritariamente negra, com 5,9 milhões de pessoas, quase o dobro da população branca, que soma 3 milhões. Enquanto isso, em 2023, 87% das mulheres que passaram pelo procedimento eram negras – 6.029 das 6.913 laqueaduras realizadas. O número de mulheres brancas submetidas à cirurgia foi 10 vezes menor. Já em 153 dos registros, o item raça ou cor das pacientes não foi preenchido.
Em 2024, 11.188 laqueaduras foram registradas em mulheres negras pernambucanas, número 14 vezes maior que o de mulheres brancas, que somaram 783 do total de 12.176 procedimentos.
Em março de 2025, a lei que altera as condições para realização de laqueaduras celebra dois anos de vigência. Apesar disso, o perfil de mulheres que se submetem à cirurgia em Pernambuco permanece quase intacto. Elas são, em sua maioria, negras e possuem, em média, dois filhos. É possível observar, porém, algumas mudanças expressivas influenciadas pela nova legislação.
Entre 2023 e 2024, saltou de oito para 87 o número de laqueaduras tubárias registradas em pessoas sem filhos. No mesmo intervalo de tempo, o número de procedimentos em mulheres com um filho aumentou de 400 para 1.002. Pacientes com dois ou mais filhos representaram 6.502 das 6.913 cirurgias realizadas em 2023 e 10.485 das 12.176 laqueaduras realizadas em 2024.
Outra mudança diz respeito à idade das pacientes. Em 2024, 1.671 procedimentos de laqueadura foram registrados entre pacientes de 21 a 24 anos, mais do que o dobro dos 786 casos do ano anterior. Para esse grupo, o aumento no número de mulheres submetidas à esterilização com menos de dois filhos foi ainda mais expressivo, saltando de 56 para 272, quase quatro vezes mais.
Embora a lei tenha permitido a laqueadura pós-parto normal desde março, nenhum caso ocorreu em Pernambuco em 2023. No entanto, em 2024, foram contabilizados 597 casos. Em relação à laqueadura tubária, houve um aumento entre os dois anos, subindo de 4.027 para 6.730. Por fim, o número de intervenções após cesarianas teve um salto de 68%, passando de 2.886 em 2023 para 4.849 em 2024.
Cleonúsia Vasconcelos explica que o principal impacto é a maior procura pela laqueadura após o parto, principalmente, por cesariana. Ela acredita que os números de laqueadura tubária, sem a internação para o parto, sofreram menor impacto pela falta de informação das pessoas que podem acessar o serviço, mas também pela opção de laquear, por vezes, ser uma forma de aproveitar o momento do parto.
“Mulheres que normalmente não usam o método anticoncepcional de uma maneira adequada se veem grávidas de novo e é quando pensam na laqueadura. Dificilmente, quando ela está no seu dia a dia, cuidando das crianças, vai parar para fazer esse procedimento eletivo, mas como ela vai ter que se internar no hospital, quer aproveitar o momento”, defende.
A alta incidência de partos cesarianos decorrente das novas condições é uma preocupação para profissionais de saúde e defensores dos direitos reprodutivos. Isso se deve ao fato de que esse procedimento pode colocar em risco a vida da gestante e da criança, gerando complicações como infecções, lesões em órgãos e até mesmo a morte. A cesariana deve ser indicada apenas em situações de real necessidade, como quando há risco à vida da gestante ou do bebê.
A gerente de Atenção à Saúde da Mulher enfatiza que essa realidade é um problema. “A cesárea veio para salvar vidas, mas não queremos que ela seja feita de forma desenfreada. A paciente, às vezes, já traz experiências ruins, seja dela, seja de familiares ou de outros conhecidos, trazendo essa vontade de fazer uma cirurgia [cesariana], de que o parto normal não é benéfico nem para ela, nem para o bebê”.
Talita Rodrigues explica que a mudança da lei, nesse sentido, é um retrocesso. “Nós desenvolvemos, por meio de tensionamentos, um modelo de parto e nascimento que diminuísse a quantidade de mortes maternas, o parto humanizado. A discussão em torno do retorno da cesariana tem mais a ver com o poder médico se reconstituindo, se reorganizando e se recolocando”, argumenta.
A pesquisadora acredita que as mulheres ficam vulneráveis à decisão dos profissionais de saúde ou optam pelo procedimento por medo de violência obstétrica. Soma-se, ainda, a possibilidade de se submeter à laqueadura logo após o parto por meio da cesárea, que pode induzir gestantes a fazer essa escolha.
“Colocando essa moeda de troca, é mais fácil convencer as mulheres e também justificar o porquê de fazer a cesariana e, assim, dentro de uma lógica produtivista, ganhar mais tempo. Porque na cesariana em uma a duas horas você tem uma criança ali, um bebê que é nascido. Num parto natural, você pode demorar 24, 36 horas”, explica Rodrigues.
Ana Carolina Conceição é um exemplo. Empregada doméstica, de 39 anos, do bairro da Torre, zona oeste do Recife, por sua vez, foi esterilizada em fevereiro de 2025. De forma semelhante à Lidiane, ela também indicou que gostaria de realizar a laqueadura durante o pré-natal de sua segunda filha, nascida em 2023. Porém, seu pedido não foi atendido, segundo ela, por um engano da profissional de saúde. Mesmo sem autorização para o procedimento,optou pela cesariana por medo de sofrer durante o parto.
Para Talita, a laqueadura é uma grande demanda das mulheres porque outros fatores não funcionam. “Na prática, as mulheres estão sozinhas. Para acessar métodos contraceptivos encontram dificuldade. Algumas não podem de jeito nenhum tomar medicação por questões de saúde. Muitas vezes os parceiros não querem usar camisinha. Se sofre violência, não consegue negociar. E aí com três filhos, cinco filhos, ela quer laquear como uma medida drástica”, analisa.
Sobre isso, Ana Carolina, que é casada, conta que suas duas gestações não foram planejadas. “Eu já queria mesmo laquear, queria nem ter a primeira [filha], nem a segunda, mas veio. Então, eu disse ‘eu quero fazer, não quero filho mais não’. Já está bom, não tem com quem deixar”.
Ela explica que costumava usar medicação ou injeções, mas passou um tempo sem conseguir ir às consultas no posto de saúde por conta do trabalho. “Passei um tempo sem ir para não atrapalhar o trabalho. Aí pronto, aconteceu, ela veio”, descreve.
Patrícia também fazia uso de injeções, mas nem sempre encontrava a medicação na unidade de saúde e, por vezes, não tinha condições de comprar. “Tem vezes que falta e eu tenho que esperar repor”.
Além de um atendimento de qualidade e o avanço dos direitos reprodutivos, a informação pode ser uma grande aliada para a justiça reprodutiva.
“Ter acesso a informações e métodos de maneira segura e adequada é ter qualidade de vida, desde a adolescência sem culpa. O impacto disso se vê também na aceitação de sua sexualidade. Tanta gente depois tem problemas para se sentir bem e conseguir ter prazer, porque vem tanto medo, tanto culpa e tantas coisas que vão além de engravidar ou não engravidar”, defende Cleonúsia.
Talita considera que a justiça reprodutiva envolve uma multiplicidade de aspectos que precisam ser atendidos. “Nós só vamos conseguir ter escolhas livres, autônomas e conscientes enquanto várias dimensões da nossa vida não estiverem razoavelmente organizadas. Então, se a gente pensar isso no campo das políticas públicas, precisa ser de forma integrada, para que as mulheres possam ter uma vida livre de violência, ter segurança alimentar, moradia, creche, escola, assistência para que possam conseguir tomar suas decisões de forma autônoma”.
*Reportagem produzida a partir do edital Vozes de Impacto: Jornalismo investigativo sobre direitos humanos e democracia, promovido pela Fiquem Sabendo em parceria com a Embaixada Britânica no Brasil.
Coordenação Editorial: Maria Vitória Ramos
Coleta de dados: Igor Laltuf
Revisão: Taís Seibt
Mentora: Aline Gatto Boueri
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