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Foto: Terreiro de Xambá/Divulgação
A Constituição de 1937, que inaugurou o Estado Novo no Brasil, aparentemente estabelecia uma certa liberdade religiosa. Mas o Estado se valia do trecho de que as religiões tinham que seguir “ordem pública e bons costumes” para fazer uma ofensiva aos terreiros. Foi o que aconteceu em Pernambuco, sob o comando do interventor Agamenon Magalhães. Com oito anos de fundação, o Terreiro Santa Bárbara Nação Xambá, então no bairro de Campo Grande, no Recife, foi arrasado em maio de 1938: a polícia confiscou imagens, objetos sagrados e levou a fundadora e yalorixá Maria Oyá para prestar depoimento na delegacia.
É a partir deste episódio traumático que a jornalista Marileide Alves relembra a história do povo Xambá no livro Povo Xambá Resiste – 80 anos de repressão aos terreiros em Pernambuco. Localizado no quilombo urbano Portão do Gelo, em Olinda, este foi o único terreiro da tradição Xambá que resistiu após a forte repressão da década de 1930. Os outros poucos que existiam na época não se reagruparam ouforam refundados somente décadas depois. “De uns 15 anos para cá, temos ouvido falar de outros terreiros Xambá, alguns de familiares de integrantes do terreiro daqui. Tem também o de Mãe Márcia, em Alagoas, que foi fundado na década de 1960”, conta Marileide.
Após o fechamento pela polícia, as celebrações aconteciam clandestinamente. Em 1950 é outra mulher forte, Severina Paraíso da Sila, a yalorixá Mãe Biu, quem reabre a casa. Foi sob o comando dela que o terreiro viveu uma de suas fases áureas. “Ela era uma mulher que controlava tudo, sabia de tudo que se passava na comunidade. Ao lado das irmãs Tila, Laura e Luiza, ela organizava a vida dos filhos de santos. Ela era quem arranjava emprego. Nada se passava na comunidade sem o aval dela”, conta Marileide. É na data de aniversário de Mãe Biu, falecida em 1993, que o povo Xambá faz sua maior celebração, com uma festa de coco que reúne cerca de 5 mil pessoas todo 29 de junho.
Editado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), o livro Povo Xambá Resiste – 80 anos de repressão aos terreiros em Pernambuco é vendido por R$ 35,00 e pode ser encontrado nas principais livrarias do Recife.
As religiões de origem africana são fortemente apoiadas na tradição oral. As histórias dos orixás estão impregnadas nas práticas, nas cantigas, nas cores das roupas e colares, nas danças, nas músicas. Como afirma o professor de sociologia da Universidade São Paulo Reginaldo Prandi no livro Mitologia dos orixás, o candomblé – nome surgido na Bahia para abarcar as religiões de tradição iorubá, ou seja, baseadas no culto aos orixás – só a partir da década de 1960 a linguagem escrita se tornou mais forte nas religiões afro-brasileiras.
Por conta disso, Marileide Alves teve dificuldade em encontrar documentos sobre os impactos da repressão ao terreiro xambá na década de 1930. “O Arquivo Público não tem documentos sobre o período. O que encontramos foram documentos de licença. Para esconder que se tratavam de cultos aos orixás, a yalorixá solicitava licença para festas de coco, para aniversário de crianças”, diz Marileide, que se apoiou nos relatos de familiares e amigos de pessoas que vivenciaram o período.
Poucos anos antes do fechamento dos terreiros em 1938, houve um breve momento de sossego. Foi quando o prestigiado psiquiatra Ulisses Pernambucano de Melo Sobrinho estudou a incorporação dos santos nos cultos dos terreiros. “Embora ele não tenha respeitado as diferentes características dos terreiros de candomblé, o estudo dava uma certa segurança para o funcionamento dos terreiros. Apesar da perseguição que havia, as casas funcionavam normalmente porque ‘o doutor Ulisses estava estudando’”, conta trecho do livro.
Embora o livro trate de umepisódio ocorrido há 80 anos, o preconceito e os ataques aos terreiros pernambucanos nunca cessaram. Nem antes, nem depois. O historiador Hildo Leal da Rosa, também filho do terreiro de Xambá, cita em artigo reproduzido no livro perseguições na década de 1920. Em 2014, antes de um terminal de ônibus ser inaugurado no bairro de Peixinhos com o nome de Xambá, integrantes do terreiro foram atacados verbalmente. No mês passado, o programa Fora da Curva, da Rádio Universitária (99.9 FM), discutiu as agressões aos terreiros em Pernambuco (confira abaixo).
Para os iorubás tradicionais, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum a incumbência de criar e governar o mundo. O culto a determinados orixás é limitado na África: geralmente uma região ou uma cidade só cultua um ou um pequeno grupo de orixás. Poucos orixás têm o culto disseminado em mais de uma região. Nas Américas, o culto aos orixás é abrangente. “Como vieram negros de várias partes da África, o candomblé juntou vários deles. O nome candomblé, aliás, veio da Bahia. Em Pernambuco se chamava xangô, por isso o terreiro de Xambá era conhecido como xangô de Mãe Biu. O candomblé é um termo adotado mais recentemente”, conta Marileide.
Hoje, há orixás que foram esquecidos na África e continuam sendo cultuados no Brasil e em Cuba, e vice-versa. Entre os orixás que são hoje pouco lembrados está Orô, espírito da floresta, e Oquê, a montanha que nasce do oceano. Outro orixá também pouco cultuado hoje em dia é Orunmilá ou Ifá, o detentor do saber dos oráculos, que ensina como resolver problemas. “Orunmilá foi muito esquecido no Brasil, mas ainda é celebrado em antigos templos de Pernambuco e em terreiros que procuram recuperar tradições perdidas. Em Cuba, Orumnilá é praticamente baluarte das religiões dos orixás”, escreve o pesquisador Reginaldo Prandi no livro Mitologia dos Orixás.
O pesquisador calcula em mais de 20 os orixás hoje cultuados nas Américas. “Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, orixás e humanos não podem se comunicar”, escreve Prandi. No terreiro de Xambá são cultuados 14 orixás – entre eles Afrekete, praticamente só cultuado no Xambá – e há um calendário anual, onde só não há toques nos meses de março, agosto e novembro.
Os terreiros de tradição Nagô e os de Xambá são da mesma raiz iorubá – da tradição africana do culto aos orixás -, mas um terreiro Xambá tem algumas diferenças no toque (música dos rituais), na alimentação ritual e nas vestimentas. Na música, por exemplo, o toque de Xambá não utiliza ílus de cruz, mas um instrumento de percussão chamado engone, que é tocado com as mãos. Nas roupas, as saias usadas nos toques não são armadas, como nos terreiros nagôs. A forma de dançar também é diferente.
O povo Xambá é oriundo das regiões de Ashanti e do planalto de Adamawa, que hoje consistem em áreas dos países de Gana, Nigéria, Camarões e República Centro-Africana. No Brasil, é uma tradição restrita ao Nordeste, sendo o quilombo Portão do Gelo seu maior representante.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org