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Era um sábado morno na cidade do Recife em junho de 2016. Chovera na madrugada. Mateo estava ao volante. Sentia-se bem na cidade que escolhera para estudar cinema, apesar de estar longe do país onde nascera, a Colômbia. Ao seu lado, Ranier, estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – estava em Pernambuco para dar conta das disciplinas do Programa de Mobilidade Estudantil. Vinham ambos de um trecho da BR-101 nos arredores do município de Paulista e vinham tranquilos ouvindo uma coleção de cumbia com mais de 300 músicas compradas no camelô. A tranquilidade acabou-se ao avistarem de longe uma blitz da Lei Seca montada na Avenida Agamenom Magalhães. Não tinham como desviar. O policial pediu para que eles encostassem o carro – chamava-se Gustavo Rodrigues da Cunha, o agente da lei. O nervosismo dos dois estudantes forasteiros na #Hellcife denunciou a carga ilegal que portavam: quase dois quilos de maconha de boa qualidade –, que cheirava um cheiro doce no interior do automóvel. Embaixo do banco do passageiro, uma balança comum. O que se seguiu demorou quase dez meses para terminar e deixou suas marcas. Ambos foram presos e indiciados por tráfico de drogas (artigo 33 do Código Penal) e associação ao tráfico de drogas (artigo 35).
O caso é típico das ambiguidades que a Lei de Drogas no Brasil (Lei 11.343) possui e das situações a que os usuários de maconha são expostos no País. Isso acontece por causa da falta de clareza do texto, que atribui ao agente policial que faz o flagrante a prerrogativa de interpretar se o portador da droga é um mero usuário ou um traficante.
Ao longo do processo que se seguiu, Mateo e Ranier conseguiram provar que a erva era para uso privado e sem intenção de comércio (ela seria dividida entre colegas que haviam se cotizado para adquirir o produto). Na verdade, a afirmação de que a erva era para venda e portanto era destinada ao tráfico não tinha provas, era baseada apenas na afirmação do policial Gustavo Rodrigues.
“O depoimento dessas pessoas (os outros colegas) foi fundamental para mostrar em juízo que as acusações de tráfico eram infundadas”, afirma Yuri Albert, advogado que defendeu os estudantes. A decisão dos compradores se exporem e afirmarem em juízo é rara, segundo Yuri. E até que isso ocorresse passaram-se muitos dias. Ranier foi encaminhado ao Presídio Aníbal Bruno. Sem liberdade e com o peso da acusação da promotoria sobre os ombros, a coisa só parecia piorar. O acúmulo de casos a serem contemplados pelo Judiciário também atrasou o processo.
O nome desse problema – uma boa palavra para designar a situação – é criminalização do usuário de drogas. A solução passa pela reforma na política de drogas no Brasil. Esse é o principal tema da programação do Maio Verde, organizado e realizado pelo Coletivo Antiprobicionista de Pernambuco (CAPE Mujica). O Cape Mujica também organiza a Marcha da Maconha, que esse ano acontece no próximo sábado (20). Na sexta, a programação inclui o seminário “Antiproibicionismo: para além das drogas. Por uma nova sociedade” e acontece na Torre Malakoff amanhã.
Em seu texto de divulgação das atividades, o Seminário afirma que “Compreendemos que a luta Antiproibicionista é a luta pela mudança de uma cultura proibicionista e de controle, perpetuado pelo modelo capitalista ao qual somos submetidos. Por isso, debater Antiproibicionismo é entender a mudança de cultura de forma estruturante, levando em conta todas as questões que nos amarra nos modelos controladores”.
Mateo e Ranier foram acompanhados por um advogado e tiveram suporte das famílias. Os amigos chegaram junto não somente com o depoimento que os livrou da acusação de tráfico, mas com a força para se manterem lúcidos na prisão.
Mateo e Ranier são brancos, classe média intelectualizada, puderam contratar um advogado e possuem informações sobre as questões legais que rondava o caso deles. “Mateo e eu tivemos todos os privilégios que dois homens brancos e estudantes universitários têm numa sociedade construída à base de racismo e exploração. O tempo da primeira audiência em casos de acusação de tráfico de companheiros presos no pavilhão B do COTEL tinha no mínimo 9 meses”, explica Ranier. “Felizmente e exemplificando os privilégios do nosso caso, tivemos nossa primeira audiência com 4 meses e 12 dias, tendo liberdade provisória concedida com 4 meses e 26 dias. Isso é uma coisa que explicito aqui por que o sistema existe pra matar, e pra matar da pior forma, aos poucos”, completa.
É precisamente nesse sentido que a reforma da política de drogas se reveste de um caráter tão urgente. Os números do modelo da guerra às drogas (e da legislação associada) são bem conhecidos: desde 2006, o quantidade de presos por tráfico aumentou 132%. A categoria “tráfico” é a principal razão da prisão no país: 27% dos detentos em território brasileiro foram associados ao comércio de entorpecentes. Acrescente-se a isso: são 622.202 mil presos (250 mil a mais que o sistema comporta). É a quarta maior população carcerária do mundo, e 61,6% dela é de negros e pardos. Os dados são do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Enquanto isso, os dados da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílio (PNAD-2014) indicam que a população negra e parda é de 53,1%. A proporção de negros presos é maior que a de pretos em liberdade.
Não é preciso muito para ligar os pontos: a política de drogas no Brasil penaliza a população negra e pobre. Nesse aspecto, a luta pela mudança no estatuto da lei precisa ser acompanhada da ação em outros territórios. É o que sinaliza o professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Rui Gomes de Matos Mesquita.
“É preciso estar atentos para o fato de que esse terreno de disputa (legal) é necessário, mas é o terreno do inimigo. É preciso alimentar e fortalecer o território da matriz civilizacional afro-indígena”, afirma. “Essa matriz deve também alimentar a luta porque o cultivo da erva implica no cultivo de relações, está associado a nossa formação histórica como povo”, diz.
É por isso que a organização do seminário, assim como a Marcha da Maconha, não se referem somente à questão da descriminalização do uso. Trata-se também de uma pauta que envolve o racismo institucional e a política carcerária.
Rannier lembra que o específico aperto no peito que sentiu ao acorda naquele dia. Ela só desapareceu completamente alguns dias depois que lhe foram retiradas as tornozeleiras eletrônicas. O aparato foi colocado depois que a testemunha de acusação do caso não compareceu à primeira audiência e eles foram colocados em liberdade provisória. “No dia em que fomos comprar a droga, havia um clima estranho que eu não sabia identificar. Prometi a mim mesmo que não ia repetir essa compra”, afirma. Mateo e Rannier ficaram cinco meses no sistema fechado e mais cinco meses com algumas restrições de liberdade e monitoramento eletrônico.
As lembranças do dia ainda estão claras. “Quando você esta numa situação de transgressão às ordens impostas e vê um agente de repressão, o coração acelera. Tentamos desviar e não conseguimos, ai ficamos meio que atrás de um caminhão de pequeno porte, só que o policial também deu uma parada no caminhão e viu a gente. Quando ele pediu para o Mateo parar ele exitou por uns 3 segundos, chegando a encostar no acelerador, e isso já rendeu mais nervosismo”.
Entrevista: Ingrid Farias
Em seu perfil no Facebook, Ingrid se define como feminista antiproibicionista, redutora de danos, graduanda em Serviço Social, mãe de Leon e maconheira. É também uma das articuladoras da Marcha da Maconha e uma referência nacional do debate. A militante fala na entrevista abaixo das intersecções entre a pauta antiproibicionismo com o feminismo.
Como e por que as perspectivas de gênero se mostram relevantes para melhor compreender o consumo de álcool e de outras drogas?
O momento para abordar o tema sobre mulheres envolvidas com delitos relacionados à drogas é o mais pertinente, uma vez que o crescimento do número de mulheres presas no país é assustador. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2014, houve um aumento de 503% no número de mulheres presas entre 2000 e 2014. Mais da metade delas está presa por tráfico de drogas. O modelo de guerra às drogas se estrutura pelo controle dos corpos das pessoas, e isso fica ainda mais evidente quando se trata dos corpos das mulheres, que quando não são encarceradas por serem transgressoras do papel moral estabelecido para elas, são medicalizadas por não serem adequadas aos espaços que ocupam. Então debater a política de drogas não é debater apenas o uso dessas substâncias, mais quais impactos sociais os modelos executados pelo estado causam à vida das mulheres, especialmente as negras e pobres. Por isso, é urgente uma abordagem que relacione mulheres e drogas em uma perspectiva emancipadora, apontando a necessária reforma da política de drogas, denunciando a falência da atual incapacidade de construir alternativas de superação da violência e da criminalidade financiadas pelo tráfico.
Como essas perspectivas contribuem ainda com a necessidade de se discutir o modelo de guerra às drogas?
É urgente dar visibilidade à forma como a proibição e o tráfico tem sujeitado as mulheres. São diversas as violações de direitos. As diretrizes brasileiras no trato sobre drogas compõem uma opção política que diariamente criminaliza territórios pobres, e que autoriza ações bélicas através da polícia em favelas. Nesse contexto de guerra à vida das mulheres, é possível elencar os diversos fatores que colaboram para o seu sofrimento. Quando não são encarceradas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, precisam dar conta dos filhos, netos e maridos encarcerados ou mortos nessa guerra diária. Por isso é necessário uma mobilização coletiva de diversos setores da sociedade em evidenciar as violações e falência da política de drogas atual.
Uma certa interpretação sobre a relação entre valores machistas e o consumo de álcool e drogas aponta para o incentivo ao consumo como forma de redução da sensação de inadequação entre as mulheres – dentre outros efeitos da estrutura patriarcal e misógina. Algumas dessas conclusões estão na pesquisa da terapeuta ocupacional e especialista em Farmacodependências Aline Godoy. Como você vê essa relação?
Sem dúvidas existe uma associação das instituições que fazem a venda dessas drogas lícitas com o acesso ao corpo das mulheres. Então, durante muitos anos, a publicidade de cerveja, cigarro, direcionavam que o consumo dessas drogas fazia parte de um ritual de acesso ao corpo dessas mulheres, que estariam disponíveis. Então existe uma predisposição da cultura machista em associar o corpo feminino também ao consumo de drogas.
No texto de divulgação da Marcha da Maconha lê-se que “A luta antiproibicionista é a luta pela mudança de uma cultura proibicionista e de controle”. É uma luta contra o machismo também? Como você faz essa associação?
Sim, a luta antiproibicionista se estrutura pela garantia da autonomia das pessoas. Entendemos que os sistemas de opressão, machista, racista, capitalista, ruralista, jurídico, sexual se organizam através de uma perspectiva proibicionista e controladora. Por isso acreditamos que para além das drogas o antiproibicionismo precisa atuar pela mudança de culturas opressivas que colocam em vulnerabilidade e violenta parte da sociedade.
Considerando as evidências de que o modelo militarizado e penal de lidar com o mercado da droga vitimiza mais a população negra e pobre, quem ganha com a sua manutenção, do ponto de vista político?
A política de combate às drogas é uma política de combate às pessoas e de controle massivo da população periférica, moradora de um território onde não há garantia de direitos. Os policiais não precisam de mandados de busca e apreensão para entrar nos bairros pobres forjando flagrantes, levando e sumindo com quem quiserem, arrastando mulheres pelas ruas, matando crianças nas portas de suas casas. É preciso denunciar a crueldade da atual política de drogas, que se utiliza da estrutura policial, judiciária e prisional para responder ao tráfico de drogas, mascarando o verdadeiro objetivo colonialista de controle dos corpos negros por meio de uma cultura punitivista e proibicionista que autoriza o Estado a matar e encarcerar pretas e pretos. É uma escolha que fecha os olhos para a estrutura do crime organizado, que envolve os mais altos escalões políticos e econômicos da sociedade, que acabam por enriquecer e lucrar com a exploração das mulheres, a outra ponta desfavorecida da estrutura do tráfico.
Queria te pedir para fazer um exercício de análise de dois cenários: em um deles, o Brasil descriminaliza as drogas. Noutro, o STF decide não descriminalizar. Quais seriam, pra você, as consequências de um e de outro cenário?
A gente acredita que esse debate vai avançar pela urgência para a sociedade. A partir do momento em que a sociedade consegue compreender esses impactos como tem compreendido em relação ao uso medicinal, passará pressionar os espaço de poder para que esses possam responder a essas questões. Além disso, há uma grande mobilização do capital econômico em promover a legalização aqui no Brasil, para fazer com que a maconha seja mais um produto explorado. Por isso é muito importante estarmos atentos a isso. Acreditamos que há um bom cenário para a descriminalização do usuário, que é o objeto do julgamento do STF. A partir disso outros questionamentos surgirão. Que modelo de política de drogas queremos? Gerido por quem? Quais os direcionamentos? Acreditamos que o direcionamento da exploração não é o melhor caminho. O contexto é de avanço no STF e achamos que se não acontecer agora, há uma pressão por legalização.
Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.