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Mandado invalidado há 2 anos contra Alexandre chegou à polícia de PE por email na véspera da prisão

Laércio Portela / 03/08/2020

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O mandado de prisão contra Alexandre Dias Bandeira, executado no dia 27 de maio deste ano, foi enviado por email um dia antes pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul à Delegacia de Polícia de Capturas de Pernambuco – Polínter. Não se trata de um caso de celeridade da Justiça. Muito pelo contrário. O mandado chegou dois anos e cinco meses após ter tido seu efeito anulado por decisão judicial de fevereiro de 2018.

Na sentença daquele ano, o juiz Marcel Goulart Vieira considerou extinta a pena de 5 anos de prisão por tráfico de drogas, pela qual Alexandre havia sido condenado em 2001, por considerar o crime prescrito, com base no artigo 109, inciso III, do Código Penal, que prevê limite de 12 anos após o trânsito em julgado para cumprimento da punição.

Trecho da decisão judicial de fevereiro de 2018, extinguindo a pena contra Alexandre

Foi essa sentença que motivou a desembargadora Elizabete Anache a determinar a expedição de alvará de soltura para Alexandre na última sexta-feira (31). A magistrada informa no despacho que chegou à prescrição após consulta digital ao processo que tramitou na 1a Vara da Comarca de Bataguassu, cidade a 335 quilômetros da capital Campo Grande, onde o crime foi cometido.

Na mesma decisão pela prescrição, em 2018, o juiz Marcel determina que sejam recolhidos todos os mandados de prisão no nome de Alexandre Dias Bandeira. Ao determinar a libertação de Alexandre na última sexta-feira, a desembargadora avalia que o mandado cumprido contra ele em Pernambuco pode ter sido executado por não ter sido recolhido na época.

“No entanto, até mesmo por se tratar de processo muito antigo (datado de 2001), portanto, antes da criação do Banco Nacional de Mandados de Prisão, é possível, a despeito das providências já adotadas pelas serventias da Comarca de Bataguassu, que a prisão do paciente tenha ocorrido por mandados ainda em aberto que não foram devolvidos a sua origem”, afirma a desembargadora.

Na decisão pela soltura de Alexandre, a desembargado Elizabete Anache diz que a prisão pode ter ocorrido por conta de mandados "ainda em aberto que não foram devolvidos a sua origem"

Não foi o que aconteceu. A reportagem da Marco Zero Conteúdo voltou a analisar as informações e documentos do processo de Alexandre e encontrou email da técnica judiciária Adriana Freitas, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, datado de 26 de maio deste ano, com o envio do mandado para a Delegacia de Capturas de Pernambuco e cópia para a Polínter de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Um dia depois, Alexandre foi preso no Recife.

Email enviado pela Justiça do Mato Grosso informando a Polícia de Pernambuco do mandado de prisão contra Alexandre Dias Bandeira

Em nota enviada à Marco Zero, a Delegacia de Capturas confirmou que, de fato, recebeu o email no dia 26 e “após checagem em bancos de dados e realização de investigação prévia, o referido mandado de prisão foi cumprido, com as comunicações devidas ao Poder Judiciário do Estado do Mato Grosso do Sul”.

Esclareceu também que não havia mandado contra Alexandre na Delegacia até o recebimento do email. “Não constava no banco de dados da Delegacia de Capturas nenhuma mandado de prisão em desfavor da mencionada pessoa, anteriormente ao envio do email mencionado”.

Não se trata, portanto, de mandado que estava nos arquivos da Delegacia e não foi devolvido à Justiça do Mato Grosso do Sul conforme determinação do juiz Marcel, mas do envio direto pelo Tribunal à Polícia Civil de Pernambuco de um mandado que já havia sido invalidado há dois anos pela própria Justiça daquele estado.

A reportagem pediu explicações ao TJMS e recebeu apenas uma nota protocolar: “Trata-se de processo judicial e por isso o TJ não pode comentar o mérito da questão. Apenas se manifesta no sentido de confiar plenamente na total capacidade técnica dos magistrados que julgaram o caso de acordo com a Constituição Federal e as leis”.

O email do TJMS à Polícia Civil de Pernambuco foi anexado pelo advogado Pedro Diogo Rodrigues Marques no pedido de habeas corpus que impetrou no Tribunal do Mato Grosso do Sul no início de junho em favor de Alexandre, poucos dias depois de sua prisão. O advogado desconhecia a sentença de 2018 extinguindo a pena, e o documento aparece apenas para dar conhecimento à Justiça do trâmite da detenção.

Esse habeas corpus foi analisado pela mesma desembargadora Elizabete Anache que agora determinou a expedição do alvará de soltura de Alexandre. Mas ela negou o habeas corpus impetrado por Pedro Diogo, que apresentava uma série de provas de que Alexandre não cometeu o crime de tráfico de drogas e que o verdadeiro culpado falsificou documentos roubados no ano 2000.

No início de junho, quando negou a soltura de Alexandre, a desembargadora alegou que o habeas corpus não era o instrumento legal cabível e, sim, a revisão criminal, quando a defesa pede reavaliação do processo judicial para mudar ou anular a sentença punitiva. Na ocasião, a magistrada não fez a checagem do processo no sistema que poderia ter tirado Alexandre da cadeia poucos dias depois de ter sido preso ilegalmente.

Isso só aconteceu na última sexta-feira (31), dois meses e uma semana após a prisão realizada pela Delegacia de Capturas de Pernambuco e comunicada dois dias depois, via email, ao próprio Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Desde então, passaram-se 68 dias. A burocracia da Justiça de Mato Grosso manteve Alexandre demasiado tempo preso irregularmente.

Habeas corpus expôs erro

E mais: o erro da prisão de Alexandre baseado num mandado invalidado só veio à tona por conta de um novo pedido de habeas corpus, agora impetrado pelo advogado Hallysson Rodrigo e Silva Souza. Ele disse que ficou emocionado com o depoimento da esposa de Alexandre, Lucilene da Silva Bandeira, mostrando indignação com a prisão do marido e pedindo justiça às autoridades do Mato Grosso do Sul. O depoimento foi publicado no dia 16 de julho pela Marco Zero e republicado no dia 30 pelo portal Campo Grande News.

Matéria da Marco Zero repercute no Mato Grosso do Sul e Justiça determina liberdade para Alexandre

São dois os processos em tramitação na Comarca de Bataguassu com Alexandre como réu. O primeiro, iniciado em 2001, é relativo ao crime propriamente de tráfico realizado em 23 de maio daquele ano, quando um homem portando documentos com os dados iguais aos de Alexandre foi detido no km 97 da BR 267, em Bataguassu, transportando quase 80 quilos de maconha. Uma das últimas movimentações registradas eletronicamente deste processo no site do TJMS diz respeito ao cumprimento do mandado de Alexandre em 27 de maio de 2020. Mandado expedido em 2012 com validade até 2023. Mas que perdeu o efeito, em 2018, com a decisão pela prescrição.

O segundo processo, aberto em 2010, é o da execução penal. É nesse processo que o juiz Marcel extinguiu, em fevereiro de 2018, a pena imputada a Alexandre Dias Bandeira. Nele, não consta a prisão realizada agora, quase dois anos e meio depois da decisão.

Mesmo após o último despacho da desembargadora, Alexandre permanecia preso no Centro de Observação e Triagem Everardo Luna – Cotel, em Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, na manhã desta segunda-feira, 3 de julho. As advogadas dele passaram todo o final de semana tentando soltá-lo, mas a direção do Cotel aguarda a chegada da carta precatória com a determinação da soltura para liberar o trabalhador.

Revisão criminal e reparação

Ouvida pela reportagem da Marco Zero na manhã do sábado (1), a esposa de Alexandre, Lucilene da Silva Bandeira, informou que vai lutar na Justiça para provar a inocência do marido e limpar o seu nome. Isso porque, apesar de a pena ter sido extinta, Alexandre Dias Bandeira continua nos registros oficiais como autor do crime. “Alexandre vai ser libertado, mas o nome dele continua sujo na Justiça e a gente vai limpar porque ele estava pagando por um crime que não cometeu. Queremos justiça e indenização”, afirmou.

O cumprimento ilegal de um mandado de prisão invalidado há dois anos e cinco meses contra Alexandre se tornará mais uma peça fundamental na ação por reparação. Os erros e omissões das autoridades policiais e judiciais sobre o caso começaram ainda em 2001, quando o homem preso em Bataguassu, e que fugiu cinco meses depois da cadeia pública da cidade, não teve fotos nem digitais registrados no inquérito policial nem no processo judicial. O que dificultou profundamente a Alexandre provar sua inocência quando tomou conhecimento, em 2013, da condenação no estado onde diz que nunca esteve em toda a sua vida.

As advogadas de Alexandre, que acompanham o caso pelo Observatório de Direitos Humanos, de Pernambuco, vão entrar com o pedido de revisão criminal na Justiça de Mato Grosso do Sul. Várias provas documentais serão apresentadas para garantir que a Justiça reconheça o erro que cometeu: a comparação entre a foto do documento original de identidade de Alexandre com a foto do documento apreendido com o homem preso em Bataguassu, o exame comparativo das caligrafias de cada um deles, a carteira de trabalho de Alexandre comprovando que vivia e trabalhava num armazém de materiais de construção, em Olinda, quando o crime aconteceu.

Outro ponto crucial da defesa vai ser a comparação física entre os dois homens. Na ficha de registro do flagrante do preso em Bataguassu não constam as digitais e fotos, mas há sim uma descrição física. Entre as características mais relevantes estão uma tatuagem no braço esquerdo e uma cicatriz na parte da frente do tronco. O documento diz que o preso tinha “1,60 metro ou menos”.

A Marco Zero teve acesso a fotos tiradas de Alexandre no Cotel, a pedido da defesa. Ele não possui marca de tatuagem nem cicatriz frontal no tronco. E o mais importante: mede exatamente 1,80 metro. Pelo menos um palmo a mais de altura do que o homem detido há 19 anos no Mato Grosso do Sul.

Esposa de Alexandre quer limpar o nome do marido na Justiça e pedirá indenização ao Estado por prisão

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República