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Preso no Recife, trabalhador luta para provar inocência por crime no Mato Grosso do Sul

Laércio Portela / 16/07/2020

Lucilene mostra a foto do dia do casamento com Alexandre Dias. Crédito: Veetmano/Agência JC Mazella

Dezenove anos depois de ser condenado a 5 anos de prisão em regime fechado por tráfico de drogas, Alexandre Dias Bandeira, 51, foi preso no dia 27 de maio na Construtora Ingazeira, no Recife, onde trabalha como servente de obra. Aos que pensam que “a Justiça tarda, mas não falha”, alto lá. O caso pode mostrar justamente o contrário: a rapidez em condenar sem investigar induz ao erro.

Essa história começou em 23 de maio de 2001 quando policiais rodoviários federais pararam um Santana Quantum branco às 3h da madrugada no km 97 da BR 267, em Bataguassu, interior do Mato Grosso do Sul. Os policiais desconfiaram do cheiro forte, fizeram uma busca e encontraram quase 72 quilos de maconha escondidos sob o estofamento dos bancos.

O condutor foi autuado em flagrante na Delegacia da Polícia Federal em Três Lagoas e apresentou carteira de identidade e documento de propriedade do carro, com placa de Foz do Iguaçu, expedido em nome de Alexandre Dias Bandeira. A data e o local do nascimento (Rio de Janeiro), os nomes dos pais e o número do CPF batem com os mesmos dados do Alexandre Dias Bandeira preso quase duas décadas depois em Pernambuco. Mas a foto da carteira de identidade, não. Vê-se com facilidade tratar-se de pessoas diferentes.

Imagem de Alexandre detido no Recife e do "Alexandre" preso em flagrante por tráfico de drogas em 2001 no Mato Grosso do Sul

O “Alexandre” de Bataguassu foi autuado pela Polícia Federal, encaminhado para a cadeia pública e condenado por tráfico três meses depois do flagrante. No exato dia em que a Defensoria Pública entrou com pedido de anulação da sentença, cinco meses depois da prisão, em 29 de outubro, “Alexandre” e mais 12 detentos fugiram da cadeia. Sete foram capturados em algumas horas, mas Alexandre Dias Bandeira ficou foragido por 19 anos.

Um apelo à Justiça

O Alexandre de Pernambuco só descobriu em 2013 que existia uma condenação contra ele num processo em Mato Grosso do Sul. Desde 2011, ele tentava regularizar seu título de eleitor que havia sido cancelado. A Justiça Eleitoral de Pernambuco buscou por dois anos a razão do cancelamento, pedindo os antecedentes criminais de Alexandre no Rio de Janeiro (onde nasceu) e aqui no estado. E em 2013 localizou o processo no MS.

Alexandre, que cursou até a 5a série, escreveu sua defesa de próprio punho. Contou ao TRE que teve seus documentos roubados em 2000 e que, na época, prestou queixa na Delegacia do Varadouro, em Olinda. Tentou obter uma cópia do boletim de ocorrência para provar que falava a verdade, mas foi informado na delegacia que o documento não existia mais, não havia sido digitalizado.

“Não sei mais o que fazer para provar a minha inocência porque nunca saí do estado de Pernambuco depois que vim pra cá na adolescência. Nunca fiz nada que desabonasse a minha conduta”, escreveu na defesa para a Justiça Eleitoral.

Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação social da Polícia Civil informou que a informatização dos boletins de ocorrência só começou a partir de 2004 na Delegacia do Varadouro. Por lei, as delegacias mantêm os documentos em papel guardados por 5 anos e depois os envia para o arquivo geral da Secretaria de Defesa Social. Em 2010, houve um incêndio no prédio onde ficava o arquivo geral e todo o material foi perdido.

Uma questão a se levar em conta: caso fosse mesmo culpado por tráfico de drogas por que o Alexandre de Pernambuco procuraria a Justiça Eleitoral do estado para tentar de todo jeito regularizar seu título de eleitor, fornecendo todos os seus dados e preenchendo uma série de documentos com o seu endereço residencial? Não parece o comportamento de um foragido da lei.

Os direitos políticos de Alexandre permaneceram suspensos e a Justiça Criminal demorou mais sete anos para prender um homem que alega inocência.

Inquérito só com versões, sem investigação

A reportagem da Marco Zero Conteúdo teve acesso à íntegra do processo que tramitou em Mato Grosso do Sul. Não consta em toda a peça uma única foto do preso em Bataguassu, a não ser a do documento de identidade, cuja veracidade está sendo questionada. Não há registros fotográficos nem na delegacia, nem na cadeia pública. Como também não há o fichamento com as digitais do preso. Constam, sim, dez fotos do carro e das drogas.

Advogados ouvidos pela MZ Conteúdo disseram que na época não eram exigidos esses registros, a não ser nos casos em que a autoridade policial desconfiava da autenticidade dos documentos, quando eram muito antigos ou se os dados de um não batiam com os dados de outro ou se houvesse rasuras.

Aqui temos mais um ponto importante a levar em consideração: se o delegado não questionou a veracidade dos documentos é porque o homem preso em Bataguassu parecia mesmo com a fotografia da identidade apreendida com ele. E essa imagem não bate com a do Alexandre preso em Pernambuco. Se os documentos eram de fato falsificados, podemos dizer que serviram direitinho ao seu propósito.

Não foram só os documentos que convenceram a polícia, toda a versão apresentada pelo homem detido em flagrante foi considerada crível e absolutamente nada nela foi checado.

Ele disse que havia sido procurado na cidade de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, por um homem chamado Eduardo – que não conhecia – para transportar uma carga – que depois ficou sabendo que era de maconha – até o estacionamento do supermercado Carrefour, na Marginal Tietê, na cidade de São Paulo. Alguém, que ele também não sabia quem era, o procuraria para pegar a droga.

Aceitou o serviço por 4 mil reais porque estava desempregado e precisava do dinheiro porque tinha dívidas e queria abrir uma pizzaria ou uma lanchonete em Ponta Porã, onde vivia com uma prima desde 2000, quando deixou São Paulo, onde morava anteriormente e tinha sido dono de uma pizzaria que fechou, forçando-o a trabalhar como “perueiro” e motoboy.

O homem preso em flagrante deu um endereço de residência na cidade de Ponta Porã. Afirmou que havia nascido no Rio e que tinha morado entre 1991 e 1993 em Pernambuco. A carteira de identidade apresentada por ele tinha data de expedição de outubro de 1993 pela SSP-PE.

O depoimento do réu passou sem acréscimos relevantes do inquérito policial para a denúncia do Ministério Público até o processo criminal que culminou na sua condenação. Além das informações trazidas aos autos pelos peritos, o delegado e o escrivão, prestam depoimento duas testemunhas de acusação: os policiais rodoviários federais que prenderam o réu. Nada mais.

Nada da suposta prima, de algum familiar ou conhecido do réu aparece em toda a papelada.

Lucilene (d) tem recebido o apoio dos vizinhos, pegos de surpresa com a notícia da prisão de Alexandre. Crédito: Veetmano/Agência JCMazella

A revolta da esposa e o apoio dos vizinhos

A prisão de Alexandre em plena pandemia do coronavírus deixou desamparada a sua esposa, a catadora de material reciclável Lucilene da Silva Bandeira. O marido trazia para casa 480 reais por quinzena e garantia o mínimo para a manutenção do casal. Em isolamento social, Lucilene tem contado com o apoio de familiares e amigos para sobreviver.

Com o marido preso, é ela quem tem se movimentado para provar a sua inocência. “Eu não vou me calar, nunca vou desistir de provar que ele não tem nada a ver com isso. É um homem inocente que está pagando por um crime que não cometeu”.

A prisão de Alexandre pegou de surpresa os vizinhos na Avenida Canal, em Sítio Novo, Olinda. A reportagem da Marco Zero conversou com seis deles e todos afirmaram que o trabalhador, morador da localidade desde 2007, nunca havia se metido em confusão ou discussão.

“É um excelente vizinho. Sempre de casa pra o trabalho e do trabalho pra casa, nunca se envolveu em briga na rua. Como vizinho e como pessoa não tenho nada de ruim para falar dele. Não entendemos nada do que aconteceu. Estamos acompanhando a dor e a luta de Lucilene”, diz Rejane Demétrio, 44, que convive com o casal há 13 anos.

Simone Maria de Oliveira, 49 anos, outra vizinha, também conhece Alexandre desde que ele se mudou para a comunidade. “Sempre tivemos uma convivência muito boa com Alexandre. Eu como mãe que perdi meu marido há pouco tempo, fico até emocionada em falar e ver uma amiga que sempre ajudou a gente quando precisamos passar por isso agora”.

“Tenho um irmão de 50 anos que é especial e de vez em quando eu preciso de ajuda para contê-lo e sempre procurava Alexandre. Muito gente boa e gentil. Sempre me ajudou. Estou aqui para defendê-lo e apoiar Lucilene. Sentimos muito a falta dele aqui. Mas tenho fé que ele vai voltar. Foi um choque para mim saber dessa prisão.”, completa Simone.

“A gente sempre vê ele aqui caminhando. De casa pro trabalho. Gente boa. Não podemos acreditar no que está acontecendo. Ele e a irmã podem contar com a gente. Estamos esperando que ele seja libertado”, diz Maria de Fátima Ramos, 64.

A maior angústia vivida por Lucilene é não ter tido nenhum contato com o marido desde que ele foi preso. Por conta da pandemia da Covid-19, o Governo do Estado suspendeu as visitas de familiares e até dos advogados. Alexandre sofre de pressão alta e a esposa soube que ele está sendo medicado na prisão.

Lucilene tem arrecadado alimentos com os amigos e familiares para levar ao marido no Centro de Observação e Triagem Everardo Luna (Cotel), em Abreu e Lima. “Hoje não tenho nem passagem pra ir lá. Quando consigo, levo as coisas. Miojo, biscoito, bolacha, manteiga, leite. Me angustio em saber que meu marido está ali na cadeia. Deixem ele provar a inocência dele aqui, solto. É o que peço”.

É difícil para Lucilene falar do marido sem se emocionar. A bicicleta guardada no canto do quarto é uma lembrança que mexe com ela. “A maior alegria dele é andar de bicicleta. Colocou até um motor, mas só conseguiu dar uma volta de teste antes de ser preso. Ele pegava a bicicleta e ia visitando as casas da minha família”. Ela sente especial saudade dos passeios que fazia com o marido nos finais de semana no shopping Tacaruna.

Em busca da liberdade

A primeira tentativa de soltar Alexandre se deu por meio de um habeas corpus impetrado pelo advogado Pedro Diogo Marques Guerra, contratado por indicação de um pastor ligado à família.

Na peça, o advogado apresenta a carteira de trabalho de Alexandre comprovando que ele vivia e trabalhava em Olinda durante o período do flagrante e os cinco meses em que o “Alexandre” de Bataguassu esteve preso.

Alexandre de Pernambuco foi motorista com carteira assinada de abril de 2000 até janeiro de 2002 na empresa Edna M. da Silva Construções ME, na Vila Popular, em Olinda. Voltou a trabalhar lá entre outubro de 2002 e março de 2003.

O dono do Armazém Popular, nome fantasia do estabelecimento que vende material de construção, confirma a informação: “Lembro dele, sim, trabalhou comigo aqui. Muito bom funcionário. Era motorista. Pessoa correta. Não lembro de nenhuma viagem pra fora que ele tenha feito nessa época não”, afirma José Carlos Gonçalves da Silva.

Documento comprova que Alexandre Dias Bandeira estava trabalhando com carteira assinada em Olinda no período em que o homem preso em flagrante esteve detido na cadeia pública de Bataguassu

No pedido de habeas corpus, o advogado de Alexandre chama atenção para a diferença de caligrafia nas assinaturas dos documentos dele em relação aos documentos apresentados pelo homem que dirigia o Santana Quantum apreendido pela Polícia Rodoviária Federal em 2001. Num sistema de justiça que, em tese, apregoa o direito à ampla defesa, é importante ressaltar que o advogado não teve a chance de manter nenhum contato direto com o cliente enquanto trabalhava por sua liberdade.

Analisado pela desembargadora Elizabete Anache, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, no dia 5 de junho, o pedido de habeas corpus foi negado. Ela considerou juridicamente inadequado o pedido de habeas corpus, em se tratando de causa transitada em julgado, alegando que o instrumento legal cabível é o da revisão criminal, quando a defesa pede a reavaliação do processo judicial.

Sem condições financeiras de manter o advogado no caso, Lucilene contou com a ajuda de amigas para fazer o caso chegar ao Observatório Popular de Direitos Humanos. A advogada Thaísi Bauer, do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – Gajop, uma das entidades que compõem o Observatório, assumiu o caso em Pernambuco e está preparando o pedido de revisão a ser encaminhado ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.

Para Thaísi, o habeas corpus deveria ter sido concedido porque houve um erro evidente da Justiça: “Estavam ali já todas as provas necessárias. As imagens das carteiras de identidade deixam evidente que são pessoas diferentes. O homem preso em flagrante no Mato Grosso do Sul não é o mesmo preso agora em Pernambuco. Tá lá no habeas corpus também todo o esforço dele para regularizar sua situação no TRE, reclamando da suspensão do título de eleitor e se defendendo”, critica.

O problema, segundo Thaísi, é estrutural: “Não é só esse caso. A verdade é que, em plena pandemia, tantos os tribunais de justiça quanto o STJ (Superior Tribunal de Justiça) têm negado habeas corpus a rodo sem levar em consideração o que está sendo protocolado ali”.

Ela defende, inclusive, que a prisão de Alexandre deveria ter sido evitada pela própria polícia. “Chegou lá e viu que a foto das identidades eram diferentes, tinha que levar isso em consideração, mas o que a polícia quer é prender, especialmente agora na pandemia, quando o número de apreensões por tráfico de drogas aumentou de forma gigantesca”.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República