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“O que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de ser salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu”.
(Ariano Suassuna. A Pedra do Reino”)
Estamos no dia 18 de julho de 2014, uma sexta-feira. Ariano chegou com sua trupe de artistas para a Aula-Espetáculo Tributo a Capiba, no Festival de Inverno. A duas horas do início, descobrimos algo importante. Adriana Victor, gerente de gestão da secretaria de assessoria ao governador, que sempre fazia a abertura e o convidava para subir ao palco, tinha saído alguns dias antes para novos desafios profissionais. E agora?
Fui encarregado de realizar o improviso.
Fui ao hotel, tomei um banho, troquei de roupa e escrevi algumas coisas, um balanço do número de aulas, coisas desse tipo. Costumo dizer que sou um tímido raçudo, mas em certas ocasiões, a demanda é muito grande. Quando cheguei ao teatro, estava lotado, com gente do lado de fora. Respirei fundo, fiz a abertura, Ariano já estava na coxia. Entrou e foi ovacionado. Cheguei perto, disse um “boa aula, professor” e desci para a primeira fila. Por sorte tinha levado uma pequena câmera, e gravei toda a aula, que foi monumental. Aos 87 anos, ele passou mais de duas horas no palco, levando o público ao riso, à emoção, ao espanto.
Encerrou falando sobre a raça humana. É o texto que aparece nesta postagem. É que ele tinha falado sobre a questão racial no Brasil. Sempre que podia, citava a beleza plástica e criativa de um de seus bailarinos prediletos, o Mestre Meia-Noite, que é negro. Disse que falava em raça nega mais por uma questão de comunicação, mas tinha a plena convicção de que só existe uma raça – a raça humana.Foi ovacionado. Encerrou pedindo desculpas pelo desarrumado das conversas e disse um “até a próxima vez”.
Mas foi a última. A aula de número 166, desde 2007. Junto com o Grupo Arraial, Ariano apresentou diferentes espetáculos em 98 municípios do estado.
Compartilho um pequeno trecho desta filmagem caseira, deste último encontro dele com o grande público. Após sua morte, alguns canais de TV me perguntaram se tinha gravado algo, mas preferi guardar em silêncio, pois aquela havia sido uma iniciativa pessoal, imagens produzidas com minha própria câmara caseira, já obsoleta. Gravá-las não era uma das minhas tarefas como assessor de imprensa. Não havia motivos para nenhuma emissora de televisão ter acesso à gravação.
Essas geometrias do acaso me fascinam.
Em julho de 2008, a então assessora de imprensa da Secretaria Especial de Cultura, Diana Moura, convidou vários jornalistas para acompanharem Ariano e sua trupe de artistas (músicos, bailarinos e cantores) em uma longa viagem pelo sertão de Pernambuco. O objetivo era mostrar o projeto das Aulas-Espetáculo, que o secretário estava levando para todo o estado.
“É um esquema simples, de viajar com o grupo e ficar no mesmo hotel”, explicou Diana.
Como adoro uma aventura, aceitei na hora. Propus uma matéria para a revista Continente e nem imaginava que estava fazendo uma mudança de itinerário na minha própria vida. Fui o único jornalista nesta empreitada.
Assisti à primeira aula em Araripina, em nove de julho de 2008. Fiquei impressionado com a beleza do espetáculo “Nau”. Entre uma música e outra, Ariano falava sobre temas os mais diversos, levando a multidão (tinha mais de 1.200 pessoas na quadra da Fafopa) ao riso, à reflexão, à alegria. Me impressionou também a vitalidade dele, com 82 anos.
Ao final, o fenômeno das fotos e autógrafos. Para sair do palco e chegar ao carro, Ariano demorava uns 40 minutos. Era cercado por uma multidão ávida. Adolescentes, jovens, velhos, policiais militares, pipoqueiros, todos queriam guardar uma lembrança.
Em oito dias, assisti aulas em Triunfo, São José do Belmonte e Quixaba. Percorremos cerca de 1.500 quilômetros.
Como eu teria tempo para ver outras aulas, preferi não molestar Ariano com entrevistas. Uma ou duas conversas rápidas. Lembro que na segunda, ele escreveu um trecho de um poema em que fala do seu “espelho de cristal”, uma referência à sua arte. Tenho comigo, esta relíquia.
Mas já naqueles primeiros encontros, havia algo em Ariano que chamava atenção.
Aliás, várias coisas.
Uma absoluta dignidade, uma simplicidade livre de complicações. Um dos maiores escritores do país, reverenciado em qualquer feira literária, ovacionado nos maiores teatros, andava pelo interior de Pernambuco acompanhado de uma humildade que parecia ser sua própria sombra.
Uma das poucas exigências que fez, ao iniciar as viagens, foi a de que o grupo de artistas ficasse hospedado sempre no mesmo hotel que ele. E um copo de água de coco na mesa, durante as aulas. Nos demais, uma gentileza no trato, uma elegância nas conversas, a animação com a vida. Ou, uma frase que gostava de dizer:
“Sou um velho animoso”.
Acompanhei várias aulas e acalentei o sonho de escrever um livro sobre as Aulas-Espetáculo. Para isso, comecei a acompanhar a trupe de Ariano. De alguma forma misteriosa, estava me embrenhando em seu mundo, sua mitologia. Me aproximava com cuidado, com uma certa timidez, e não sabia que a vida preparava uma surpresa – dessas que mudam roteiros para sempre.
Fui informado por Adriana Victor (gerente de gestão), que Diana Moura tinha sido convidada para retornar ao Jornal do Commercio, e a vaga dela ficara aberta. que tinham sugerido meu nome para seu lugar. Fiquei aliviado porque não era nenhum problema com o espaço, mas ainda não tinha entendido se era uma sondagem ou uma ótima notícia.
Em seguida, ela disse que Ariano tinha aprovado.
Mesmo sendo jornalista de ofício, às vezes sou lentíssimo para processar informações. Ela foi mais objetiva e disse que dentro de dois dias, quando meu nome saísse no Diário Oficial, começaria o trabalho.
Saí de lá sem entender direito o que estava acontecendo. Fui falar com Luciana Azevedo, então presidente da Fundarpe. Eu precisava pedir demissão do cargo. Ela ficou eufórica, me deu abraços efusivos e antecipou que seria uma experiência de vida inesquecível. A ficha começou a cair.
Aos poucos fui me adaptando à nova rotina. – era receber as dezenas de pedidos mensais de entrevistas, documentários, teses de mestrado, doutorado, tudo que envolvesse o mundo de Ariano, das Aulas-Espetáculo etc.
Fora isso, preparar e enviar para os municípios, o material de divulgação das aulas no interior do estado. E o melhor – acompanhar todas as entrevistas e aulas. Acho que posso chamar isso de sorte, mas deve ter outro nome.
Adriana Victor e Josafá Mota (chefe de gabinete) foram me dando orientações sobre como encaminhar as coisas com Ariano, levando em conta sua agenda, que era muito movimentada.
Eu imprimia as demandas, marcava um dia e despachávamos. Havia o pequeno ritual de ligar antes, dizer que era Samarone, da Secretaria, Ariano vinha, atendia e agendávamos. Eu só o chamava de professor, ele me chamava de Sama.
Ariano, na verdade, já não queria mais dar tantas entrevistas. Sua agenda nacional era repleta de convites, viagens, e ele também percorria o estado, precisava de tempo para terminar seu derradeiro romance, O jumento sedutor, um projeto de muitos anos.
O despacho dos pedidos, portanto, era rápido e simples. Aceitava uma ou outra coisa, que fizesse sentido. Aceitava, por exemplo, dar uma longa entrevista à revista Ocas, que é feita por uma ONG e vendida por moradores de rua em São Paulo.
Depois dos temas burocráticos, bastava perguntar qual o livro que ele estava lendo, que Ariano abria imediatamente um cenário literário com as palavras. Falava de Tolstói com rara felicidade. Era capaz de citar trechos inteiros dos seus livros prediletos.
Graças à influência dele, comecei a ler Tolstói e outros autores que não tinham entrado na minha biblioteca. Mas a convivência acabava se espalhando por outros aspectos da vida. Ariano era um homem da palavra, mas ele influenciava muito pelos pequenos e silenciosos gestos.
E a cada viagem (quando podia conviver um pouco mais com ele), surgia aquele homem simples, que parecia irradiar uma onda energética de mansidão. Um respeito perpétuo e irrevogável pelo outro, de qualquer classe social. Uma gentileza nos mínimos gestos, com as pessoas mais simples. Jamais recusava um pedido de foto, um autógrafo (sempre com o nome da pessoa, um texto e a data, com enorme paciência).
Ao avistar os artistas de rua se apresentando em algum semáforo, imediatamente dizia:
“Meus amigos artistas”.
Então tirava uma cédula de vinte, às vezes cinquenta reais.
Com o passar dos anos, Ariano parecia cada vez mais feliz, realizado. Vivia num estado de espírito elevado, como se estivesse cheio de júbilo. Uma mansidão animosa. Um homem que gostava de rir e de fazer os outros rirem. E o profundo amor por sua mulher, Zélia Suassuna, era exaltado em cada espetáculo que ela estava.
“Eu namoro com esta mulher desde vinte de agosto de 1947. Não acabou ainda e não vai acabar nunca”, dizia ele sempre. E acrescentava – “Nem com a morte”.
Acredito nisso.
Era já tardinha, quando minha amiga Bebeth, que é médica e sobrinha de Ariano, passou por mim e disse:
“Acabou de morrer, Sama. Um infarto. Estava segurando na mão dele”.
Não tive tempo de assimilar a informação. Meu celular começou a tocar alucinadamente. Jornalistas de todo o Brasil queriam a confirmação da notícia, que acabara de ser anunciada na Globo News. Desde o dia 21, quando Ariano teve um AVC hemorrágico, todos esperavam ansiosos por alguma notícia boa. Mas a Onça Caetana, como ele costumava dizer, passou.
São essas coisas estranhas da vida. Nunca imaginei que um dia estaria num hospital, encarregado de dar a notícia da morte de um dos maiores escritores da língua portuguesa, um dos maiores homens que já conheci.
“Sim, ele morreu. Infarto. Agora há pouco”.
Eu parecia um autômato. Repeti a frase inúmeras vezes.
Depois desci para o saguão do hospital, onde um batalhão de repórteres, cinegrafistas, fotógrafos, esperavam a confirmação. Depois voltei para junto dos familiares e amigos. O celular continuou a tocar por mais de duas horas.
Quando parei, procurei um café e respirei. Tive uma nítida impressão que naquele 23 de julho de 2014, com a Morte de Ariano Suassuna, algo estava terminando. Eu não sabia ainda o que era.
Ainda não sei, um ano depois.
Mas deixo o jornalista descansando e falo sobre o que sinto.
É sempre uma memória da alegria, a de ter participado durante cinco anos de uma aventura literária, artística, humana, percorrendo todo o estado, ao lado de um dos grandes homens da humanidade.
No mural que tenho com meus antepassados, aqui em casa, há várias molduras.
Numa delas, estou com Ariano, em alguma das dezenas de cidades que estivemos. Ele, com aquele sorriso terno de sempre. Talvez, por não ter conhecido meus avós paternos, ele tenha ocupado algum espaço ancestral.
No meu coração, há saudade e gratidão – e uma imensa e irrevogável alegria.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.