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Morro da Conceição sai do azul para o bege e pintura causa discórdia na comunidade

Maria Carolina Santos / 13/10/2025
A imagem mostra uma vista aérea de um bairro urbano com muitas casas e alguns prédios altos ao fundo. Em destaque, no centro da foto, está um monumento bege com detalhes brancos e batentes azuis, em formato de torre pontiaguda que lembra uma pequena igreja ou capela gótica. O monumento fica em uma área circular cercada por um muro baixo e grades metálicas. Ao lado direito, há um prédio moderno de dois andares, com painéis solares no telhado e cercado por palmeiras. Em volta, é possível ver ruas com carros estacionados, algumas pessoas caminhando e barracas pequenas na calçada. O céu está azul com poucas nuvens e a iluminação indica que a foto foi tirada em um dia ensolarado.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Quem passa pela avenida Norte e sobe o olhar em direção ao Morro da Conceição pode achar que está faltando algo. O topo pontiagudo da capela apontando para o céu ainda está lá, mas quase não dá para ver. Há pouco mais de duas semanas a pequena capela começou a ser pintada: agora em um tom de bege opaco substituindo o azul vibrante que, por tantos anos, marcou a identidade visual da comunidade. Combinando com as linhas retas e as cores sóbrias da igreja recentemente reformada, a capela já está quase toda pintada no tom mais sem graça da paleta, faltando apenas uma pequena parte do batente que a circunda.

No Morro da Conceição, zona norte do Recife, a mudança da cor virou motivo de conversas nas calçadas, posts nas redes sociais e pode até parar no Ministério Público de Pernambuco (MPPE).

O pátio do Morro da Conceição é um Imóvel Especial de Preservação (IEP) desde 1997 e, por lei, as mudanças físicas na capela do santuário de Nossa Senhora da Conceição deveriam ser acompanhadas pela gerência de preservação do patrimônio cultural da Prefeitura do Recife. Não se sabe ainda se isso ocorreu, mas há indícios que não.

Na comunidade, a mobilização pela volta do azul e branco está sendo feita pelo coletivo Casa Amarela é O bairro. “A cor azul já faz parte da identidade do Morro da Conceição. Pelo período de construção, de 1907, a primeira cor da capela certamente era branca. Mas, ao longo do tempo, ganhou esse azul, que tem uma representação muito forte dentro da comunidade”, afirma a arqueóloga Pollyana Calado, moradora à frente do coletivo.

A foto mostra uma avenida movimentada em um bairro urbano. Na pista, passam um caminhão branco, um carro prata e uma motocicleta conduzida por um homem de capacete. À direita e à esquerda da via há calçadas, postes e fios de energia. As construções ao longo da rua são simples, com fachadas desgastadas e coberturas de telha, abrigando pequenos comércios, como uma loja chamada “JP Veículos” e outra com o letreiro “Peniel”. Ao fundo, em uma encosta, aparecem muitas casas amontoadas, formando uma comunidade densa, e ao centro do horizonte se destaca a ponta branca de uma torre de igreja. O céu está azul com algumas nuvens, e a luz do sol é forte, indicando um dia claro e quente.

De longe, cor opaca não favorece a visualização da capela

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Para ela, a atual gestão do santuário – há três padres, sendo um hierarquicamente superior, intitulado de reitor – não tem diálogo algum com a comunidade. “Já fizeram barbaridades como gradear a praça para as crianças não jogarem bola. A comunidade tem tido vários problemas desde que essa gestão chegou. É uma forma, inclusive, de tentar apagar o que foi construído politicamente dentro da própria igreja. Para você ter noção da disputa política, quando o padre Reginaldo morreu em 2022, por exemplo, não permitiram que ele fosse velado dentro da igreja”, conta a arqueóloga. “Tem que haver sensibilidade (dos padres) para entender que a imagem que está ali, a santa, tem uma representatividade que ultrapassa a fronteira do catolicismo, porque é um bem da comunidade. Os padres passam, a comunidade fica”, pontua.

Além da mobilização online nas redes sociais do coletivo, Pollyana Calado fez um pedido formal de informação para que a gerência de preservação do patrimônio cultural da Prefeitura do Recife explique como foi o estudo para essa mudança de cor. Mas ela acredita que a Emlurb, órgão da prefeitura que está fazendo a reforma, não enviou o pedido de autorização da obra para a área técnica de patrimônio da prefeitura.

“É uma prática rotineira. Nos bens da prefeitura que são protegidos, via de regra, a Emlurb toma decisões sobre eles sem consultar a gerência de patrimônio. E eu digo isso com muita segurança, muita tranquilidade. O mercado de Casa Amarela, que é uma ZEP (Zona Especial de Preservação), foi reformado e não tinha sequer um profissional de patrimônio para fazer uma fiscalização. Quem dirá decisões”, denuncia.

O coletivo também pretende acionar a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), que em 2022 colocou a festa do Morro como patrimônio imaterial do Estado. “Apesar de não proteger as edificações em si, do ponto de vista da imaterialidade, alguns elementos, como a cor, fazem parte da constituição simbólica e por isso também deveriam estar no inventário e no plano de salvaguarda da festa”, acredita.

A preocupação de Pollyana é de que, quando a festa do Morro começar, tudo ainda esteja bege. “A depender da resposta que receberemos da prefeitura, iremos fazer uma denúncia ao Ministério Público de Pernambuco para reverter a descaracterização da capela”, avisa.

Foto de paroquiano é usada como justificativa

Nem todos os moradores concordam com o coletivo Casa Amarela é O bairro. O pintor de paredes Josiel Carias da Silva mora há mais de 50 anos na comunidade – a vida toda – e gostou tanto da nova cor que fez questão de vasculhar as fotografias que tem em casa à procura de uma prova daquilo que sua mente lembra. “Essa capela já foi de outras cores, foi amarela e já foi até rosa. Estão querendo fazer confusão com o padre”, reclama. Encontrou uma foto em que ele uns amigos posam na frente da capela. Está lá: a capela pintada de amarelo ovo.

Josiel não perdeu tempo: pegou a foto, a protegeu em um plástico, e a deixou na secretaria da igreja para quem fosse reclamar do fim do azul. Ele deixou um recado na secretaria para que não deixassem tirar foto da foto, mas generosamente abriu uma exceção para a reportagem da Marco Zero. “Os jovens querem fazer confusão sem saber da história daqui”, reclama. “Mas o azul também era bom, era a cor da santa”, admite.

Apesar de Josiel não lembrar o ano exato da foto, há uma pista de que se trata do final dos anos 90 ou começo dos anos 2000: a presença ao fundo de um orelhão da não muito saudosa Telemar – empresa de telefonia criada em 1998. Fato curioso é que há uma foto um pouco mais antiga (de 1996), dos arquivos da prefeitura, com a capela em cor azul, que está na dissertação de mestrado do arquiteto e urbanista José Nilson de Andrade Pereira sobre os IEPs do Recife.

Na lanchonete colada ao bar da Geralda, dois amigos de Josiel, também moradores da vida toda no Morro, reclamam das reclamações. “Você bateu na porta certa”, dizem Rildo Umbelino da Silva e Ademir Barbosa. “Aqui a gente é tudo morador antigo e sabe que já teve outras cores. Quem chega criticando (a mudança de cor), pega um time desse aqui e aí fica sem saber o que dizer”, ironizam. Apesar de gostarem da nova cor bege, o tom preferido da dupla é o amarelo bem forte, igual ao da foto que repousa na secretaria da igreja. Ambos, porém, concordam que o azul se destacava mais na paisagem. Já Josiel discorda: diz que dá para ver a capela, mesmo toda bege clarinho, até de São Lourenço da Mata. “Fui lá essa semana e vi a ponta, de longe”.

A foto mostra dois homens em um pequeno comércio de paredes pintadas de rosa. O homem à esquerda está de pé, encostado em um balcão, usando boné vermelho, óculos escuros e camiseta preta com estampa de tigre. Ele olha para a câmera com expressão calma. O homem à direita está sem camisa, usa um cordão com crucifixo e está atrás do balcão, dentro do espaço do comércio, onde há prateleiras com garrafas e sacos plásticos empilhados. A iluminação natural vem da rua, destacando os tons claros das paredes e do piso branco.

Rildo e Ademir dizem que a capela já foi de várias cores e defendem nova pintura

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Para a arqueóloga Pollyana Calado, o que está acontecendo também tem a ver com o perfil do padre Emerson Borges, o responsável pelo santuário. Jovem, ordenado padre em 2015, o reitor natural de Escada (PE) chegou no Morro da Conceição há aproximadamente três anos e estaria dando mais atenção aos turistas e visitantes de fora do que à comunidade. “Se você chegar no Morro num dia domingo, vai ver que os carros que estão lá estacionados para a missa são de um outro lugar”, diz Pollyana.

Tendo esse perfil mais voltado, digamos assim, para a burguesia, o padre estaria privilegiando cores e formas mais amenas aos olhos, agradando esse novo público. A Marco Zero não conseguiu falar com o padre Emerson Borges, pois ele está em Portugal acompanhando fieis em uma romaria.

Há quem veja uma questão política na troca de cores, já que o azul estaria mais associado à governadora Raquel Lyra (PSD) – o que teria incomodado a base do prefeito João Campos (PSB), apegada ao amarelo. Existe, ainda, uma hipótese mais prosaica. Pollyana notou que o bege opaco é o mesmo usado pela Emlurb na pintura da igreja de Santo Amaro há algum tempo. Ou seja, segundo essa tese a tinta que sobrou teria sido aprovada pelo padre e usada na capela. Uma questão de economia.

A foto mostra o Largo do Morro da Conceição, no Recife, em 1996. Em destaque, no centro da imagem, está o monumento da torre pontiaguda de cor bege, com detalhes brancos e azuis nas molduras e janelas em arco, típico do estilo neogótico. O monumento fica em uma área cercada por muro baixo e grade branca. À direita, há uma construção ampla com telhado escuro e muros claros. Na frente do largo, o chão é de terra batida e uma rua pavimentada passa ao lado. Duas crianças caminham próximas ao monumento, e o céu está azul com nuvens brancas espalhadas, indicando um dia ensolarado.

O DPSH é o nome anterior da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural.

Crédito: acervo DPSH/José Nilson de Andrade Pereira

Com o reitor viajando, a Marco Zero tentou saber o motivo da mudança de cor pela assessoria de comunicação do santuário. Não conseguimos a resposta, mas nos foi encaminhada uma nota da Emlurb confirmando que a alteração foi um pedido da paróquia, “mas que não houve descaracterização do bem, posto que o Santuário já apresentou, historicamente, cores diversas, conforme atesta a foto em anexo”. E qual a foto que veio como atestado, com um aviso de “encaminhada frequentemente”? A de Josiel.

Ou seja, a justificativa para a mudança de cor usada pela prefeitura e pela paróquia parece ter sido arranjada depois da celeuma instaurada.

Prefeitura não responde sobre acompanhamento técnico

A Marco Zero também questionou a prefeitura do Recife sobre o acompanhamento técnico da equipe de preservação, já que se trata de um IEP. A prefeitura não respondeu, encaminhando apenas a nota da Emlurb, novamente anexando a foto do paroquiano Josiel — o que não deixa de ser estranho, já que a antiga Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural, que virou gerência ano passado, teoricamente possui um acervo de fotos e documentos sobre todos os IEPs da cidade.

A nota da prefeitura também lembra que “além da preservação já existente como IEP, por ocasião da nova LPUOS, sancionada no dia 03 de outubro, sua preservação em nível municipal foi ampliada como sítio histórico na nova categoria de Patrimônio Imaterial das Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH)”. A nova LPUOS, porém, só começa a valer 60 dias a partir da sanção.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org