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Moura Dubeux repete em Salvador modo de atuar que cobriu de sombras a praia de Boa Viagem

Maria Carolina Santos / 23/09/2021

A engenheira civil Aline Prado estava passando pela orla de Ondina, em Salvador (BA), quando estranhou a construção de três prédios. “Um deles estava já muito alto. A obra subiu muito rápido durante a pandemia, quando as coisas estavam muito paradas”, conta. Sem celular para tirar uma foto na hora, ela fez um tweet que viralizou: questionava se seria possível uma construção tão alta, na beira mar de Salvador. A capital baiana tem um plano diretor que proíbe construções altas na orla e que façam sombra na praia em determinado horário.

Aline não ficou apenas na rede social. Abriu uma reclamação no setor de urbanismo do Ministério Público da Bahia. “Disse que o prédio já estava bem alto, mais alto que a média dos prédios ao redor. E mandei também um print do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador (PDDU). Aquela altura ali, pelo que entendo, ultrapassa o limite do PDDU”, conta.

Os prédios que chamaram a atenção de Aline e de outros moradores de Salvador são os condomínios Beach Class e Undae Ocean, da construtora pernambucana Moura Dubeux, conhecida no Recife pelos prédios de luxo e pelos imbróglios judiciais e urbanísticos do Cais José Estelita e das chamadas Torres Gêmeas, ambos na área central do Recife.

A Moura Dubeux chegou em Salvador há, mais ou menos, uma década. Mas nos últimos três anos é que começou a intensificar os negócios na capital, aproveitando a brecha deixada por grandes construtoras, como a OAS e Odebrecht, que perderam espaço após a operação Lava Jato.

Aline não foi a única que estranhou a obra na orla de Ondina. O Instituto de Arquitetos do Brasil, departamento da Bahia (IAB-BA), fez uma notícia de fato para o Ministério Público da Bahia (MPBA), solicitando uma apuração sobre os prédios.

Um antigo hotel de luxo

Por 35 anos, a Avenida Oceânica, em Ondina, foi o endereço do Salvador Praia Hotel. Com térreo e sete andares, o hotel era um ponto de luxo na capital baiana, mas foi desativado em 2009. Nos dez anos seguintes, era usado apenas como camarote no disputado carnaval de Salvador.

Boa parte das brechas na legislação que o empreendimento da Moura Dubeux aproveitou foi possível porque o prédio do hotel foi considerado como abandonado ou degredado. A construção, que, vale salientar, não estava condenada, foi demolida no segundo semestre de 2019. Mas, desde 2012, a Moura Dubeux já anunciava que iria demolir o hotel e erguer prédios no local.

Foi somente com as aberturas do plano diretor de 2016 e da atualização da Lei de Ordenamento e Uso e Ocupação do Solo, aprovada em 2017, que a Moura Dubeux passou a investir no projeto das três torres no terreno de 12 mil metros quadrados de frente para o mar. Em 2019, com pompa e circunstância, anunciou um investimento de R$ 300 milhões nos condomínios Undae Ocean (dois prédios) e Beach Class (um prédio).

Em um fato incomum, o então prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto entregou pessoalmente, no próprio Salvador Praia Hotel, as licenças municipais necessárias para os sócios Marcos e Gustavo Dubeux. A imprensa toda noticiou: “as contrapartidas para a cidade somam R$2,8 milhões”. Ou seja, nem 1% do total do investimento.

“Não é comum toda a prefeitura se mobilizar para a apresentação de um projeto privado. Mas estamos aqui exatamente pelo simbolismo que esse investimento tem, pelo impacto que tem em nossa capital”, afirmou na ocasião ACM Neto ao jornal Correio, que pertence à sua familia . Apesar de reconhecer o impacto, as obras foram aprovadas e licenciadas sem que houvesse uma audiência pública sobre o projeto, como é comum em empreendimentos de impacto.

Entre as “contrapartidas” da construtora estão, além de pagamentos à prefeitura, um mirante com vista para o mar, reforma das calçadas (chamadas de “boulevard”) e da rua lateral, por onde se dará o acesso ao futuro mirante. Antes da construção, a prefeitura fez uma revitalização na área, inaugurada antes do carnaval de 2020. Para o presidente do IAB-BA , Luiz Antônio de Souza, são medidas que privilegiam muito mais os futuros moradores dos prédios e valorizam os apartamentos no mercado imobiliário do que necessariamente oferecem algo à cidade. É mais ou menos o que acontece com o deque à beira d’água das Torres Gêmeas, no Recife, que pouco foi incorporado ao dia a dia do recifense, servindo muito mais aos próprios moradores dos prédios.

Como prédios tão altos estão sendo construídos na orla?

Assim como algumas cidades brasileiras, Salvador tenta limitar a altura dos prédios que são construídos à beira-mar. Isso acontece para evitar que as praias por lá se tornem como Boa Viagem ou Balneário Camboriú (SC): um imenso paredão que projeta sombra na praia e tira o sol dos banhistas, beneficiando apenas alguns poucos privilegiados que moram na beira-mar.

O plano diretor de Salvador estabeleceu um limite de 36 metros (algo entre 11 e 12 andares), na primeira linha da praia. Com 17 e 21 andares, os prédios da Moura Dubeux ultrapassam esse limite. Mas há instrumentos, no próprio plano diretor, que ajudam a esticar essa altura.

De acordo com a própria construtora, foram usados dois instrumentos: o uso do gabarito (altura) mais permissivo para projetos que visam a requalificação da borda atlântica (e, nesse ponto, o abandono do hotel fez diferença) e a outorga onerosa. Pelo primeiro, a Moura Dubeux pagou aos cofres municipais R$ 783.485,34. Pelo segundo, R$ 1.202.251,65. A outorga onerosa se dá quando o proprietário paga a mais para construir acima do permitido em determinada área. O plano diretor do Recife, aprovado neste ano, tem como uma das novidades a inclusão desse instrumento.

Juntos, os dois pagamentos mal cobrem um dos 68 apartamentos das duas torres do Undae Ocean, cujo preço de mercado beira os R$ 2 milhões. Com quatro quartos e plantas de 245m² ou 303m² o empreendimento já é anunciado com todas as unidades vendidas. O preço do m2 partia dos R$ 8,5 mil. O Beach Class tem a metragem bem mais reduzida, de 29m2 a 67m2, com um ou dois quartos. É um colosso: são 235 unidades, sendo 178 apartamentos de um quarto e 57 com dois quartos. Também consta como 100% vendido no site da construtora. O apartamento mais barato saiu por cerca de R$ 250 mil.

Projeção dos edifícios da Moura Dubeux na praia de Ondina, Crédito: divulgação Moura Dubeux

Leis para atender o mercado imobiliário

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) afirmou em nota à MZ que a “o empreendimento é regular e foi licenciado pela Prefeitura de Salvador, através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), atendendo todas as exigências legais vigentes”.

Alguns trechos do plano diretor parecem, inclusive, mirar bem no empreendimento da Moura Dubeux. Para o presidente do IAB-BA, isso não é mera coincidência. “A gente chama de lei de encomenda. É dirigida para privilegiar uma operação imobiliária. O nome é Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e deveria envolver todas as variáveis que interferem no desenvolvimento urbano. Mas não sei se é porque certos interesses afloram mais que outros ou porque cada vez mais as equipes que elaboram os planos diretores são menos interdisciplinares, mas acaba o plano diretor focando na dinâmica do circuito imobiliário. Não se discute educação, saúde ou bases econômicas. E dentro do circuito imobiliário fica focado no submercado da moradia. E não é o da moradia com mais demanda. Mas o produto imobiliário de quem tem renda para pagar. Essa é a lógica presente em boa parte das cidades brasileiras, como Salvador e Recife”, comenta.

Vai fazer sombra na praia?

Quando foi discutido em 2016, um dos pontos mais polêmicos do plano diretor de Salvador foi a permissão de sombra na praia dos prédios, desde que não ocorresse no intervalo entre 9h e 15h. Era algo proibido pelo plano anterior, mas nem sempre respeitado.

“Sol e praia são complementares. Os turistas procuram Salvador para tomar sol e banho de mar. Se você cria sombra na praia, e aqui já estamos cheios de prédios assim, você está matando a galinha dos ovos de ouro do turismo. Você está tendo um grupo social que, para se sentir privilegiado, tem que determinar o horário que o sol bate na praia. Com essa prática você acaba prejudicando aspectos até da saúde pública. Quem vai para a praia para ficar levando vento frio?”, questiona Luiz Antônio.

Com 21 e 17 andares, a pergunta se os prédios da Moura Dubeux vão fazer ou não sombra na praia entre à 9h e às 15h segue em aberto.

A Sedur afirmou que não houve exigência de estudo de sombreamento para o empreendimento.
Isso porque, segundo a prefeitura, há uma brecha na lei que isenta os prédios desse estudo. A prefeitura afirma que o licenciamento do empreendimento foi feito considerando o artigo 103 da LOUOS – Lei 9148/2016. Os condomínios se encaixariam no artigo 111, que, de acordo com a interpretação da prefeitura de Salvador, “prevê o incentivo à regeneração urbana por meio da substituição de edificações deterioradas, e não se aplica a exigência do estudo de sombreamento”. E aí voltamos para a situação do antigo Salvador Praia Hotel. De acordo com a nota da prefeitura, o imóvel estava “em estado de abandono, desde que encerrou suas atividades em 2009”.

À Marco Zero, porém, a construtora Moura Dubeux deu outra informação, afirmando que foram elaborados todos os estudos, inclusive o de sombreamento. “…dentre as quais EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança), RIT (Relatório de Impacto de Trânsito), RIV (Relatório de Impacto de Vizinhança) e Estudo sobre Projeção de Sombra”, diz trecho da nota.

O Ministério Público da Bahia está de posse de um estudo preliminar que mostra que os prédios da Moura Dubeux vão sim fazer sombra na praia, inclusive no horário que não seria permitido pelo plano diretor. Em nota, o MPBA afirmou à Marco Zero que a Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e Habitação e Urbanismo da Capital tem um procedimento que apura as construções da Moura Dubeux, no bairro de Ondina.

A investigação, porém, está ainda na Central de Apoio Técnico do MP (Ceat), que realiza as análises dos estudos relacionados ao empreendimento. Segundo a nota, o MPBA, “aguarda a conclusão das análises para adotar as providências cabíveis”. Tanto o Beach Class quanto o Undae Ocean ultrapassaram em setembro os 90% das obras de fundação e 78% da estrutura. Nas imagens do acompanhamento das obras, da própria construtora, o três prédios já formam um paredão entre a praia e a cidade.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org