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por Aluísio Câmara*
Vivemos em loop, definitivamente. Uma gripe epidêmica volta com nova roupagem 100 anos depois, vitimando milhares de pessoas. Encontra ainda um enorme despreparo de nossa sociedade em cuidar de si mesma e avança em terreno fertilizado pela desassistência do poder público. Como se não bastasse, o cenário político é incerto e extremado, como se estivéssemos caminhando célere para um confronto não consensual e nada democrático. Mas afinal, nesse percurso e ritmo que estamos seguindo, com polarizações tão antagônicas e conflituosas, quem poderá encontrar uma alternativa não violenta e totalitária?
Na cíclica roda da história é
comum vermos tensões que se repetem porque uma medida radical não foi tomada.
Não falo de uma medida extrema, por mais que possa parecer, mas de uma atitude
concernente ao âmago da questão, que toque na raiz do problema e possa extirpar
suas vicissitudes. Nas lutas políticas históricas desse vilipendiado país
jamais conseguimos atingir os objetivos mais proeminentes, muitas vezes
existentes apenas na retórica, porque nada havia na disputa, ao fim e ao cabo,
além da tomada do poder. Nunca investimos em uma educação libertadora, afora
alguns lampejos isolados, capaz de dar autonomia reflexiva à sociedade, para
que ela pensasse por si, compreendesse o seu papel e soubesse exigir o que lhe
é de direito.
Na década de trinta, o mundo inteiro, incluindo o Brasil, passava por um momento turbulento de disputas acirradas, sobretudo entre comunistas, fascistas e nazistas. Os Estados Unidos se recuperavam da quebra da bolsa de 29, Mussolini e Hitler avançavam e Stalin seguia os planos desenvolvimentistas da Gosplan. Os opostos se atraiam, para a guerra. E antes da eclosão da Segunda Grande Guerra alguns movimentos antifascistas foram covardemente massacrados, sendo o mais paradigmático exemplo disso o bombardeio da cidade de Guernica, em 1937, feito por aviões da esquadra nazista, cedidos por Hitler em apoio a Franco. A cena rendeu o famoso quadro de Picasso (fragmento na foto acima), de nome homônimo à cidade devastada, feito para a exposição universal daquele ano em Paris (A Exposição Internacional de Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna). Guernica era uma das cidades antifascistas do país Basco, alvo constante de Franco, que pretendia “restaurar” a Espanha pré-republicana, impondo o regime autocrata e prometendo respeito às leis (de cima pra baixo) e aos valores católicos tradicionais.
No Brasil nascia a Aliança
Nacional Libertadora, em 1935, que teve o nome de Luís Carlos Prestes aclamado
enquanto Presidente de Honra, para se insurgir, em defesa das liberdades
públicas, diante da Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado,
criada em 1932. Era um tempo de grande avanço do “Partidão”, mesmo na
clandestinidade, inserido na ANL, que difundia o programa anti-imperialista, anti-latifundista
e democrático, que chegaria aos levantes armados de novembro daquele ano, em
Natal, Recife e Rio de Janeiro. Os Integralistas eram numerosos e Vargas os via
enquanto aliados táticos. O mito do golpe parece ser algo arraigado no DNA do
Brasil.
Hoje, assistimos atônitos ao
avanço do fascismo declarado, com discurso genocida, abertamente indiferente à
saúde da nação. Vemos uma performática apologia à tortura e, quem diria(?), a
mesma corrupção repugnada pelos seus, capaz de derrubar ministro venerado para
livrar a cara do filho. Não! Não há loucura nem inocência nesses gestos. Eles
são muito bem parametrizados por alguém que parece, como já ameaçou diversas
vezes, estar disposto a romper a barreira do democraticamente aceitável, parece
estar mais preparado para o “tudo ou nada” do que os que hoje se manifestam
contra ele.
A antítese nunca foi tão clara, nessa
grotesca obra barroca de péssima qualidade, a inquietação e a inconformidade
com o atual estado das coisas, a disparidade entre a razão e a sandice nunca
estiveram tão em evidência: a religião que nega a ciência, o nacionalismo e o
militarismo acima de tudo e o abstrato acima de todos. O atual cortejo verde e amarelo
é um remake mal-acabado e insipiente
dos Integralistas de 34. Nas palavras de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, a
Ação Integralista Brasileira “era o primeiro partido político de massas do
Brasil, com capacidade de inserção nacional, crença corporativa, culto à
liderança política e ao domínio do Estado, e disposição para fazer ecoar o
discurso antissemita uma oitava acima do que já era corrente na sociedade
brasileira”.
Sobre a ameaça pandêmica não
sabemos mais se advém do vírus que se espalha no toque e no ar ou aquela que
cresce através da falsificação mitológica pelas redes sociais e congrega seres
patologicamente afetados pela negação das vias democráticas. Uma enorme onda
robotizada nas redes sociais que se apequena nas ruas, se configurando como
imagem estapafúrdia e extemporânea de pessoas sem discernimento da realidade. O
que me faz duvidar se é hora de aceitarmos a provocação e nos jogarmos nesse
confronto inócuo, porque talvez seja exatamente isso que dê mais propósito aos
desvairados seguidores que bradam pelo fechamento das instituições que
alicerçam a nossa democracia. Estou achando que, ao menos por enquanto, esperar
é saber.
Vejo hoje que a ação “Antifa” não
é nem um pouco articulada, como fora a Aliança Nacional Libertadora, que tinha
tenentes politicamente ativos, “que viviam a luta contra o fascismo como a
única opção realista”, e uma bandeira concreta com pautas concretas, que se
constituiu como “uma frente de massas atuando dentro da ordem constitucional,
com quatrocentos núcleos espalhados por todo país, capaz de promover grandes
campanhas em favor dos direitos de cidadania e comícios que reuniam milhares de
pessoas”. Combatiam o fascismo sim, mas, sobretudo, lutando pela nacionalização
dos serviços públicos, pela reforma agrária, aumento dos salários, garantia dos
direitos e das liberdades individuais, incluindo a liberdade religiosa e o
combate ao racismo. “Pão, Terra e Liberdade!” Era este o lema da ANL.
O que representa então esta
profusão, ainda pouco articulada no campo, mas que virtualmente se manifesta
contra o fascismo? Parecemos muitos, “Somos 70%” e bradamos! “Estamos juntos”
também. Mas queremos e estamos prontos para o verdadeiro combate? Na minha vã
pirueta intelectual dois opostos extremamente definidos se insinuam, mas entre
esses polos há ainda uma grande massa cinzenta que não consegue tomar partido
por discordar das disparidades que ora estão postas. Movimentos generalistas
com um único foco podem ajudar nesse momento, mas logo precisarão negritar suas
especificidades. Por que nesse embate que se anuncia não se aceita a postura
balanceada? Por que não se pode ser Ulisses, que na volta à Ítaca precisava
navegar entre o Cila e o Carídibis? Nem mais nem menos, porque fugir
demasiadamente de um perigo o aproximava de outro. Onde fica a sensatez? Perdemos
a nossa capacidade de conciliação?
A certeza na frente, a história
na mão, quem somos afinal diante desse embate insano? Somos soldados armados,
amados ou não? Somos os filhos da Revolução? Somos a geração Iphone,
virtualmente implacáveis, mas parcamente ativos? Como acontecerão os nossos
atos? Saibamos, por fim, que levantar a bandeira Antifa e exigir que o outro
campo se declare fascista nos posiciona no ponto onde não há mais retorno.
Doravante somos nós ou eles? Traçamos uma linha e forçamos aqueles que nem
sequer sabem o que significa o fascismo a se virem obrigados a defendê-lo, como
acredito ser a maioria do minguado grupo que ainda insiste em apoiar o atual
presidente.
As inspirações fascistas,
armamentistas, totalitárias e intolerantes exigem sim uma resposta da sociedade
e das instituições democráticas. Talvez não tenhamos mesmo mais espaço para o
diálogo. Talvez a nossa falta de memória nos conduza aos mesmos erros do
passado. Isolados, e em grupinhos verde e amarelos, ou mesmo trajando fantasias
alusivas aos supremacistas brancos, eles não causam nada além de
constrangimento. Mas a nossa abordagem impositiva, além de acirrar o possível
confronto, pode acua-los e, pior, agiganta-los, levando-os a um patamar que
sozinhos jamais alcançariam. E o que faz o fascista acuado? Não se pode
desdenhar da capacidade de reação de um presidente, mesmo que paulatinamente venha
perdendo apoio, como fizera a ANL em relação a Vargas. Espero que tenhamos
força emocional e disposição política para não vermos emergir um “Novo Estado
Novo”, tal qual o monstro da lagoa.
Mesmo diante da nítida e
assustadora sensação de que o pior estar por vir, ainda precisamos acreditar na
consolidação de nossa democracia e de nossos valores constitucionais, conquistados
após muita luta e sangue derramado, com a união de diversidades, participação
popular e perseverança, período que se consolida em nossa “Constituição Cidadã”.
Um sonho que pode ser apenas uma centelha de esperança de alguém que ainda acredita na flor enquanto o nosso mais forte refrão.
*Museólogo, historiador e artista plástico
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.