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Novo Ensino Médio criou novos problemas nas escolas públicas do interior de Pernambuco

Marco Zero Conteúdo / 27/04/2023
Grupo de alunos reunidos em semicírculo ao redor de uma professora no pátio de uma escola

Crédito: Coletivo Acauã

por Maryane Martins, em parceria com o Coletivo Acauã

Crédito: Coletivo Acauã

O diálogo é um dos maiores pilares das relações humanas. É através dele que o “eu” e o “outro” se constroem e se reconhecem. E, sendo palavra, torna o ensinar-aprender possível. Educar pressupõe o diálogo que, no ambiente escolar, se faz de uma troca mútua entre professores e alunos. A ausência desse pilar, explica o nascimento de descompassos como o que estabeleceu o Novo Ensino Médio (NEM) no Brasil.

No papel, algumas mudanças foram a ampliação da carga horária e das escolas em tempo integral, assim como a possibilidade dos estudantes escolherem caminhos de aprofundamento. Na vida real, professores, especialistas e alunos por todo o país alegam a falta de participação social na construção da Reforma.

Nas escolas públicas do agreste pernambucano, região que é o reduto eleitoral do deputado federal José Mendonça Filho (União Brasil), o ex-ministro da Educação do governo Temer que fez a Reforma do Ensino Médio, a rejeição à nova metologia é alta. Ao menos entre estudantes, professoras/es e gestores/as de escolas entrevistados pela equipe do Coletivo Acauã, em parceria com a Marco Zero, ninguém elogiou ou fez a defesa da reforma.

“Um dos principais personagens do processo, o professor, teve uma participação pequena nessa construção, a forma como tudo se deu, dá margem para a não aceitação. Vejo uns buracos enormes lá na frente”. Galba Cristiane, de 50 anos e há 12 gestora da Escola de Referência em Ensino Médio (EREM) de Belo Jardim, aponta lacunas no NEM que entrou em vigor nas escolas no ano letivo de 2022. Apesar da suspensão do cronograma de implementação da reforma durante 60 dias, decidida pelo governo Lula, o NEM continua em funcionamento nas escolas.

O que muda é que a implementação não deve ser concluída em 2024, como o previsto inicialmente. Além disso, não é mais necessário que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se adapte ao novo currículo no próximo ano. “Algumas matérias são essenciais, mas tenho apenas uma aula por semana, é muito complicado. E, principalmente com esse debate recente, nos perguntamos: ‘como é que vai ser o Enem?’”. Maria Wanessa, de 16 anos, demonstra preocupação com o exame a ser realizado ano que vem, ela é estudante do segundo ano do Ensino Médio no mesmo colégio gerido por Galba.

Essa inquietação é mais um sintoma do descompasso, pois os estudantes irão realizar a prova em um formato que não é diretamente relacionado ao conteúdo visto na escola. A ideia inicial seria que os primeiros alunos a concluírem o ensino secundário já reformado, realizassem o Enem de acordo com suas escolhas ao longo dos três anos.

Essas escolhas têm relação direta com as referências que fazem parte da Lei nº 13.415, responsável pela Reforma. Ela promove a reestruturação do currículo do Ensino Médio em duas etapas obrigatórias: uma composta pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e a outra por Itinerários Formativos.

A BNCC é responsável por direcionar as 5 áreas do conhecimento a serem oferecidas pelas escolas em linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional. As quatro primeiras compõem a formação básica e a última, os Itinerários Formativos. Ao final dos três anos, a expectativa é de que o estudante tenha completado 1800 horas de formação básica e 1200 horas de Itinerários Formativos, organizados em três componentes: trilhas de aprofundamento, matérias eletivas e projeto de vida. O tempo mínimo exigido de horas/aula passou de 800 horas para 1000 horas por ano.

As transformações vão muito além do número de horas. Para o aluno, as escolhas podem começar muito cedo. Em algumas escolas é no primeiro ano que o estudante decide em qual (ou quais) trilha de aprofundamento quer direcionar o Ensino Médio. Por isso, a disciplina “Projeto de Vida” teria sido pensada para oferecer suporte pedagógico para o aluno tomar decisões e construir sua própria trajetória profissional. Porém, a experiência prática revelou que aquilo que foi formulado pelos autores não tem se aplicado dessa maneira. A escolha das áreas do conhecimento em que os alunos desejam se aprofundar acaba sendo inviabilizada por fatores como a oferta de apenas um ou dois Itinerários Formativos em alguns colégios.

Trilhas dos Itinerários formativos são diferentes a cada escola. Crédito: Acervo EREM Belo Jardim

“A maioria dos estudantes ainda não entendeu bem como funcionam os Itinerários. Além disso, a oferta de disciplinas eletivas têm sido bastante limitada em algumas escolas, o que dificulta ainda mais a escolha. Há casos em que os estudantes escolhem um caminho por falta de opção, e não por interesse na área, o que pode levar à desmotivação e ao abandono escolar.” Marcos Roberto, 46 anos, mestre em Matemática, matéria que leciona na Escola Técnica Estadual Edson Mororó Moura em Belo Jardim há sete anos, pontua que além das dificuldades do aluno entender os Itinerários, há outras questões estruturais e formativas.

A falta de salas de aula e equipamentos, a sobrecarga dos professores e a dificuldade de acesso à formação continuada têm levado a um cenário de desorganização e desânimo. “O período de adaptação do novo ensino médio está sendo um verdadeiro caos. Parece que o Novo Ensino Médio é mais uma iniciativa frustrada do governo, que acaba prejudicando ainda mais os estudantes e os profissionais da educação”, completa.

De volta Escola de Referência em Ensino Médio de Belo Jardim, a quatro quilômetros do colégio em que Marcos trabalha. O lugar é outro, mas o sentimento parece ser o mesmo: angústia. “Tá todo mundo feito cego em tiroteio, tentando acertar, mas sem rumo. É tudo muito novo, estranho e solto”, desabafa a gestora Galba.

Trilhas” sem rumo

E, se não há rumo, como o aluno escolhe as trilhas? Estas, que deveriam direcionar o seu aprendizado ao longo dos últimos dois anos de Ensino, parecem seguir por um caminho tortuoso e cheio de obstáculos.

Galba conta que não pode pedir ajuda aos colegas de profissão, pois as escolas oferecem trilhas diferentes. Onde Marcos leciona, as trilhas oferecidas são Tecnologias Digitais; Diversidade Cultural e Territorial; Desenvolvimento Social e Sustentabilidade; Saúde Coletiva e Qualidade de Vida. Já onde Galba atua, são três: Matematização, Design e Criatividade; Saúde Coletiva e Qualidade de Vida; Modos de Vida, Cuidado e Inventividade. Essa falta de uma padronização nos Itinerários Formativos, que dialoguem nacionalmente e em todas as redes, bem como as eletivas, acaba deixando um desalinhamento entre as escolas, secretarias e estados.

Essas complexidades não foram consideradas ou melhor, dialogadas, quando tudo começou a ser pensado. Para o professor e doutor em História Adauto Guedes, 43 anos, o NEM “foi enfiado de goela abaixo” por medida provisória no Governo Temer e corresponde a um modelo que reflete a inserção cada vez mais presente das empresas privadas no controle da educação. O historiador é colega de trabalho de Galba e após 13 anos lecionando, atualmente a coordena a biblioteca da escola.

A cidade de Belo Jardim, foi fundamental não só para a formação de Galba, Adauto, Marcos e Wanessa, como também para o início da carreira política de um personagem que participou e foi responsável direto da Reforma, o então Ministro da Educação, José Mendonça Filho.

“O Governo Temer entendeu a urgência da mudança e tomou a decisão política de criar o Novo Ensino Médio, tão desejado por educadores e jovens”, escreveu Mendonça na sua conta do twitter, em 2016. Esse desejo parece ter existido apenas na realidade do então ministro. Numa consulta popular realizado pelo site do Senado Federal, de 78.105 pessoas participantes 94,17%, responderam não concordar com a Reforma. Enquanto 5,83% dos indivíduos disseram sim. 

Reprodução Twitter

O especialista sobre o NEM no Agreste Pernambucano e doutorando em educação Almir Bezerra conta que “mesmo com todo empenho do governo na época em vincular nas mídias (digitais e tradicionais) fortes propagandas na perspectiva de persuadir os brasileiros, a grande maioria se mostra contrária a reforma.” Em outro tuíte, desta vez em 2020, Mendonça afirma ter orgulho do “legado transformador” que deixou para a educação.

Infelizmente, o ex-ministro não atendeu ao nosso pedido de entrevista para que respondesse à pergunta: qual legado?  

O atual ministro da Educação Camilo Santana (PT) diz estar enfrentado problemas devido às lacunas deixadas pelos governos anteriores, principalmente com relação ao Enem. “Não se muda o ensino por decreto, por lei. Se muda por diálogo, porque quem executa são os estados, eles são responsáveis pela implementação dessa política. É preciso fazer um amplo debate, identificar as deficiências, ouvir os professores, os alunos.” afirmou o ministro em audiência na comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Para ouvir a população e definir melhores estratégias, o governo optou pela suspensão do programa. Afinal, a ausência de escuta, nos governos anteriores, foi a causadora de reformulações curriculares que desconsideram as subjetividades contextuais, tanto do professor, quanto do aluno.

Aprender para ensinar é mais difícil

Com disciplinas que nunca trabalharam, os professores passaram a lidar com a redução da carga horária das matérias em que se especializaram e pensar em eletivas interdisciplinares que não dominam. É um reaprendizado. Mas aprender leva tempo e aprender para ensinar, mais ainda. Profissionais que lutaram para obter uma formação acadêmica em uma área específica como Geografia, História, Filosofia, Sociologia, Biologia… são obrigados a completar sua carga horária com disciplinas como ‘educação financeira’, ‘projeto de vida’, ‘empreendedorismo’ e tantas outras disciplinas fora da sua área de formação.” Quem afirma isso é Tony Santana, 40 anos,  licenciado em Ciências Sociais, atua há 18 anos  como professor da educação básica e, há cinco, é professor na EREM Professora Elisete Lopes de Lima Pires, em Caruaru, maior município do Agreste de Pernambuco. 

Tony também conta que os itinerários “profissionalizantes”, que poderiam (e deveriam) ser um ponto interessante não funcionam, pois de nada adianta um “cardápio” de eletivas se não há formação específica e continuada dos professores e, sobretudo, condições de materialização das ações. Ou seja, mais uma ideia que na prática não se efetiva.

“A carga horária é um dos maiores impactos na vida de professores e estudantes, sobretudo, para os estudantes filhos de trabalhadores e trabalhadoras que são maioria na escola pública. Muitos desses estudantes estão abandonando a escola para trabalhar como jovem aprendiz e/ou ajudar seus pais e responsáveis no orçamento da família”, completa o docente.

Nessas circunstâncias, os estudantes acabam tendo uma carga horária menor do que o necessário para o aprofundamento dos conteúdos. “A maioria tem essa opinião que não gosta da carga horária reduzida. Minha trilha é de exatas, temos duas aulas por semana, mas de biologia e química, apenas uma. O professor fala que tem muito assunto para dar mas não tem como, porque não tem tempo”, detalha Ilanna Vitória, de 16 anos, relatando sua experiência no segundo ano do Ensino Médio na Escola Técnica Estadual (ETE) Ministro Fernando Lyra, em Caruaru.

Além do novo ensino médio, o ETE conta com as aulas técnicas. Atualmente Ilanna tem oito aulas de base técnica distribuídas ao longo da semana. “É bem complicado escolher uma área já no primeiro ano do ensino médio, às vezes a gente nem sabe qual o nosso sonho.”

A pressão citada pela estudante, também preocupa a gestora do ETE Fernando Lyra. Eligivânia Macêdo, 46anos, reconhece que os alunos não têm a maturidade para fazer essas escolhas no ensino médio: “muitas vezes, áreas tão importantes para a formação crítica do estudante, como filosofia e sociologia, vão reduzindo o número de horas e desaparecendo. Como foi dito por Paulo Freire, a educação é um ato político. Quis-se implementar naquele momento a formação de técnicos apenas para ingressar no mercado de trabalho, dificultando a chegada do pobre à universidade”.

Professor André Melo. Crédito: Acervo pessoal

Dessa forma, a acentuação das diferenças entre o ensino público e o privado, também podem ser uma consequência da Reforma do Ensino Médio, pois ao centralizar a educação com o desenvolvimento econômico, desconsidera questões sociais. A flexibilização curricular e a possibilidade de escolha de Itinerários Formativos podem ser mais acessíveis para alunos de escolas particulares, que possuem mais recursos financeiros e infraestrutura adequada para oferecer essas opções. 

Enquanto as escolas públicas, que muitas vezes enfrentam problemas de falta de recursos, podem ter dificuldades para oferecer itinerários formativos variados e com qualidade. “O problema também se tornou estrutural, pois ampliamos a carga horária de 2400 para 3000 horas, sem mudança na estrutura física ou no número de profissionais da cozinha e da limpeza, por exemplo. Quanto mais tempo o aluno passa na escola, mais vai ser preciso o trabalho de outros profissionais.” Cristina Martins, 51 anos, é pós graduada em História e há 26 anos trabalha na Escola de Referência em Ensino Fundamental e Médio Presidente Kennedy, na cidade de Cachoeirinha, também no Agreste.

Além disso, ainda falta material tecnológico. “Sinto que estamos em uma escola que precisa de mudanças estruturais, mas querendo trazer uma nova base. É necessário que as duas forças avancem, a  pedagógica e a estrutural-tecnológica”, comenta André Melo, 37, graduado em história, pedagogia e educação física. Professor da Presidente Kennedy, ele conta que acredita que, antes de tudo, o jovem precisa compreender qual o propósito dessa “Nova Escola”, para que isso gere valor e significado na sua vida.

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