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Nunca mais

Samarone Lima / 02/04/2023
Foto preto e branco de rapaz de camisa branca e calça comprida grafitando as palavras abaixo a ditadura em uma larga coluna de um prédio, sendo observado por outras pessoas. Todos estão de costas para a câmera.

Crédito: Domínio público

Este texto estava programado para ser postado ontem (sábado, 1º de abril), o que acabou não acontecendo porque o site ficou fora do ar por mais de 48 horas em razão de graves problemas nos equipamentos da empresa que abriga a página. Oficialmente, segundo os responsáveis técnicos da empresa, os “clusters de cloud servers (ou seja, a infraestrutura querealiza o armazenamento do processamento de informações e de aplicativos) precisaram ser substituídos.

O golpe militar de 1964 teve início na madrugada de 1º de abril, quando o Forte de Copacabana foi ocupado, como provam os registros do fotógrafo Evandro Teixeira, o primeiro a chegar lá, levando por um oficial do Exército amigo. Deslocar a data em um dia livrou os generais do incômodo de celebrar os aniversários da ditadura junto com o Dia da Mentira. Por isso, a Marco Zero decidiu que os 59 anos do golpe seriam abordados hoje, o contrário seria ratificar uma pequena e imerecida vitória aos golpistas.

Para marcar esse dia, convidamos o jornalista, poeta e escritor Samarone Lima, um dos fundadores da Marco Zero. Samarone está imerso na pesquisa do tema desde que era estudante universitário. De lá pra cá, publicou dois livros reportagens (e Clamor) e um livro de poesia (Cemitérios clandestinos) sobre personagens, circunstâncias e episódios daquele período.

***

Em 1993, eu era um estagiário magricela do Diário de Pernambuco, portador de uma timidez brutal, estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e terminando o curso de Educação Artística na “Federal”, como sempre chamamos a UFPE. Tinha passado na seleção do estágio, e creio que contou a meu favor a habilidade com o teclado das velhas Remington, que ocupavam todas as editorias do Diário.

Era realmente delicioso trabalhar com aquela sinfonia de teclas, e o famoso reeeeec, quando alguém puxava a folha que estava sendo batida, com papel carbono, irritado por algum erro grave. Cigarros estavam sempre no bico de alguns editores e eu achava aquilo tudo o máximo.

Nos meus 23 anos de idade, o tema Ditadura no Brasil não era uma grande preocupação. Durante os vários anos de colégio, o tema nunca me foi apresentado. Meu pai, funcionário bem colocado no Banco do Brasil, era transferido com rara facilidade, mas em nenhuma delas das escolas das cidades por onde passamos tinha professor que falasse do tema. Meu pai nunca falou sobre o assunto. Nem minha mãe. Na oitava série, um professor de Moral e Cívica poderia até falar do assunto, mas sempre chegava de óculos escuros, com uma ressaca memorável (as aulas eram na segunda-feira), ele queria tudo, menos falar.

Um belo dia, apareceu um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais lá em casa, e comecei a ler e fiquei chocado. Estava com 16 anos. Depois, meu irmão Paulo, que tinha ido para um seminário em Carpina, ser padre, chegou em casa com outro livro, Batismo de Sangue, e fiquei ainda mais impressionado com a violência da repressão;

Até que tive uma pauta com Amparo Araújo, líder do Grupo Tortura Nunca Mais em Pernambuco. Era sobre o Monumento Tortura Nunca Mais, que estava sendo construído, às margens do Rio Capibaribe. Ela começou a falar de sua vida, a militância contra a ditadura, os amigos e amores que perdeu, e a militância por justiça e memória, que fiquei impressionado. Ela era um arquivo vivo dos 21 anos dos militares no poder.

Saí de lá com cinco ou seis crimes cometidos pelos militares, que jamais tinham sido publicados, e a pauta sobre o Monumento rendeu um bela matéria numa edição de domingo do Diário. Vários familiares de mortos e desaparecidos e pessoas que lutaram contra a ditadura deram um abraço coletivo em torno do Monumento, ainda cercado por tapumes.

Como estava perto de concluir o curso de Jornalismo, e teríamos a famosa “Banca de Conclusão do Curso”, resolvi fazer uma boa pesquisa sobre uma das histórias mal contadas do período para uma série investigativa. O tema, portanto, seria a ditadura. Vários colegas da turma ficaram surpresos.

“Mas a Ditadura? Por quê? Teve alguém da tua família que foi preso?”

Que eu soubesse não, mas o que me motivava era ir em busca das vozes dos que viveram aquele período. Amparo me deu vários contatos. Eu já tinha um gravador que usava nas minhas entrevistas.

Fiz algumas entrevistas com pessoas que ela me indicou. Fiquei impactado, comovido, e impressionado por saber que aquelas pessoas nunca tinham dado depoimento sobre o que viveram. Prisão, torturas, exílio, perdas de amigos, de trabalhos, projetos, sonhos.

Até que surgiu o nome do mineiro José Carlos Novais da Mata Machado, militante da Ação Popular, que teria morrido no Recife, em 1973, num tiroteio com os companheiros da organização.

Segundo a ditadura, foi uma morte causada por tiroteio entre os pares. Amparo me alertou que era comum no período criar situações que incriminasse as próprias vítimas da violência.

“Ele foi morto no DOI-CODI do Recife, em 28 de outubro de 1973”, disse. “Você precisa encontrar provas ou testemunhas disso”, alertou Amparo, me dando alguns nomes.

Fui à luta.

Encontrei pessoas que tinham visto o Zé chegar vivo ao DOI-CODI do Recife, naquele terrível outubro de 1973, e que nunca tinham falado. Um silêncio de 20 anos, difícil de desatar.

Descobri que tinha paciência e empatia. Nunca fazia a entrevista no primeiro encontro. Falava das pesquisas e do meu propósito, de resgatar memórias de quem viveu no corpo e na alma uma ditadura. Encontrei uma mulher guerreira, a advogada Mércia Albuquerque, que conseguiu localizar a cova clandestina onde o Zé foi enterrado, ao lado do companheiro de AP (como era conhecida a organização Ação Popular), Gildo Lacerda.

E na metade da pesquisa, recebi um telefonema de Amparo, com uma frase que jamais esqueci:

“Samarone, um ‘cachorro’ abriu, em João Pessoa. Estamos indo para lá agora. Quer ir com a gente?”

Falei com meu editor, expliquei o caso, precisava viajar.

“Pode ir, mas mande uma matéria de lá para o jornal”, disse.

No carro, perguntei a Amparo o que era aquela expressão.

“Cachorro é gente que trabalhou para a repressão, levando companheiros à prisão, tortura e morte”, respondeu.

Chegamos à OAB de João Pessoa. Gilberto Prata, cunhado de José Carlos da Mata Machado, iria fazer uma declaração pública.

Para um auditório perplexo, revelou que, em 1973, trabalhou para a repressão, como infiltrado na Ação Popular. Sua missão foi localizar o próprio cunhado.

Ao final do evento, o entrevistei e perguntei o motivo de ter passado para o lado da ditadura.

“Covardia ou medo”, respondeu.

O corpo de José Carlos Novais da Mata Machado foi devolvido à família, em Belo Horizonte, com a condição de que o caixão, lacrado, não fosse aberto. Só 20 anos depois a família fez uma exumação e confirmou que eram mesmo os restos mortais dele.

De 1993 a 1997, entrevistei mais de 50 pessoas, entre militantes da AP, amigos e parentes do Zé.

Sempre que eu me despedia de cada pessoa entrevistada, voltava pra casa com o Nunca Mais orientando a caminhada.

Em 1998, lancei, em Belo Horizonte, meu primeiro livro, Zé: José Carlos Novais da Mata Machado, reportagem biográfica.

Ano passado, o livro teve roteiro adaptado pelo cineasta mineiro Rafael Conde, e virou um longa-metragem.

Chegará aos cinemas no segundo semestre.

Será a chama do Nunca Mais tremulando novamente.

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AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.