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O dia em que uma assembleia numa escola pública virou caso de polícia

Samarone Lima / 10/11/2016

Há uma semana, estudantes da Escola de Referência Dom Sebastião Leme, no Ibura, um dos mais pobres do Recife, estão se organizando para realizar uma ocupação, na batalha contra a PEC 241 (agora, chamada PEC 55). Um grupo de jovens que já estudou no Dom Sebastião, e que continua mantendo vínculos, estava dando suporte com diálogos, informações, oficinas e aulas de filosofia: Pedro, Diogo, Tânia, Cícero e Tássia.

Nessa quinta, 10, no começo do turno da manhã, os alunos foram à casa de Tânia Gabriela, magrinha, de cabelo curto, baixinha. Ela aparenta 16 anos, mas tem 20. Queriam eles juntos numa assembleia, que seria realizada no estacionamento da escola. Tânia chamou os amigos e foram todos juntos. Chegaram ao local, se encontraram com outros estudantes, começaram a discutir, surgiram as palavras de ordem, o “vamos ocupar”, que se espalha por todo o País.

O diretor da escola, Givaldo Bastos Lopes acionou a Polícia Militar, que chegou rápido. Uma viatura. O grupo mais velho começou a conversar, explicando que se tratava de uma discussão sobre uma Emenda Constitucional, mas logo chegou o reforço. Cerca de 10 carros com policiais armados e furiosos.

Não houve tempo nem havia disposição para conversa. Balas de borracha, spray de pimenta, correria, confusão, gritos.

Cícero da Silva Lima, estudante de Filosofia da UFPE, pode ser visto numa filmagem que foi postada nas redes sociais, sendo arrastado por quatro policiais, jogado ao chão, enquanto várias pessoas gritam desesperadas. Uma voz de mulher pede: “Calma! Calma! Pra quê isso minha gente?”. O PM responde: “Ele está agitando a população contra a polícia, minha senhora, e por isso está sendo preso”.

Pedro Lucas Silva, de 21 anos, foi tentar conversar com os policiais, foi dominado e preso, após ser agredido. Diogo Alves, de 20, pegou seu celular e começou a filmar. Um PM tomou seu aparelho e passou a espancá-lo, inclusive nos órgãos genitais. Tássia Seabra escutou gritos e palavrões de uma PM, e também apanhou. Tânia escutou ameaças de um policial armado com um fuzil, dizendo que não tinha “problema nenhum” bater em mulher.

O grupo de jovens é um esboço de movimento social e se autodenomina Movimento Democrático Igualitário (MDI). Dele, só Tânia não foi levada da escola presa. Ela acredita que isso só aconteceu por aparência. Não acreditaram que ela tivesse mais de 18 anos. A escola ficou esvaziada e o clima de revolta tomou conta dos estudantes, com mensagens na página do Facebook da Erem Dom Sebastião.

No final da manhã, os jovens estavam recolhidos em uma das inúmeras salas do labirinto chamado Central de Flagrantes da Polícia Civil, cercados pelos PMs que comandaram a ação, para a burocracia dos Boletins de Ocorrência, onde sofreriam as tradicionais acusações – baderna, agitação, desacato, impedimento do trabalho da polícia, até agressão aos policiais.

Mas a maré virou.

Rede de proteção

A informação da prisão dos estudantes se espalhou rápida e logo a Central de Flagrantes começou a mudar de cara. Os jovens, que só viam policiais por todos os lados, passaram a ser cumprimentados por gente que nem conheciam – advogados, militantes de direitos humanos, integrantes de movimentos sociais, do Sindicato dos Professores Estaduais. A presença de jornalistas e fotógrafos começava a retirá-los da solidão – e do medo inerentes.

A ocorrência foi registrada, mas os hematomas nos jovens e a falta de elementos que comprovassem qualquer atividade criminosa por parte dos jovens, resultou na liberação de todos.

Mas a história não ficou por aí. O grupo fez exames de corpo de delito e se dirigiu à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital, que tem à frente o promotor Maxwell Vignoli, para abrir uma representação contra a violência do Estado e a contra o diretor a escola, que teria agredido um dos jovens.

“O que aconteceu foi uma simples reunião, uma assembleia para discutir uma PEC”, observou o advogado André Barreto, do grupo Juristas pela Democracia.

“A gente está vivendo no Brasil um estado de exceção. A cada dia as garantias constitucionais estão sendo colocadas em cheque”, observou.

Mudança de paradigma?

Em três dias, o Governo do Estado mudou radicalmente a orientação no tratamento ao tema “ocupação de escolas”, envolvendo jovens estudantes. Na ocupação da Erem Cândido Duarte, na Zona Norte da cidade, dia oito, a PM também foi convocada, cercou o prédio, proibiu a entrada e saída dos jovens, houve uma tensão que se estendeu até o final da manhã, mas houve espaço para negociação. No final da manhã, os policiais foram embora, e os estudantes entraram cantando. A Cândido segue ocupada.

“Eis a repressão”, diz o advogado Augusto Evangelista, do Juristas Pela Democracia, que acompanhou a mobilização da Cândido Duarte. Hoje, junto com vários representantes de outras entidades, foi à Central de Flagrantes para oferecer ajuda jurídica aos grupo.

“Isso pode significar uma pressão do Governo Federal em cima do Governo do Estado. Mas as ocupações vão continuar, cada vez mais fortes. Vamos ver como o Governo do Estado vai se posicionar”, observou.

Seja como for, a cada prisão, os estudantes vão poder contar com a retaguarda jurídica. Só em Pernambuco, os Juristas Pela Democracia tem cadastrados 100 advogados. No Brasil, são mais de três mil.

O problema vai ser se acontecer como no Golpe Militar de 1964. Com o tempo, só encontraram um jeito para surrupiar a Lei – passaram a prender os próprios advogados.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.