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“Vê dois latão aí pra gente…”
“Você quer dizer dois latões, não é”?
“Ôxi, tu não é daqui não, né?”
Diante da confirmação do vendedor, que disse ter vindo de outro estado para faturar uma renda extra no carnaval, Amanda Menelau explicou em pleno carnaval: “aqui só varia o número, o substantivo fica igual: um latão, dois latão, três latão…”
A então estudante universitária e o amiga que a acompanhava, pegaram os dois latão, digo, latões, e sentaram-se na mureta do adro da igreja da Misericórdia, no Alto da Sé. “A gente ficou viajando nessa história do jeito do recifense falar, passamos tanto tempo listando as formas de plurais, que acabamos esquecendo de ir atrás dos blocos”.
Essa cena aconteceu quando Amanda tinha 20 anos e cursava Rádio e TV na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em meados da década passada. De lá pra cá, ela virou atriz, assistente de produção e até locutora do canal GNT por alguns anos, mas a variedade dos plurais recifenses nunca lhe saiu da cabeça. Tanto que gravou um vídeo curto sobre o assunto em formato de uma bem humorada aula.
Gravou, mas não havia postado em canto nenhum. Até que, assistiu um galã da Globo forçar o “sotaque nordestino” daquela maneira ridícula que só se escuta nas novelas globais. Foi a gota d’água. Amanda resgatou o vídeo inédito e o publicou em seu perfil no Instagram, até aquele momento uma página modesta, com pouco mais de dois mil seguidores, usada mais para se apresentar profissionalmente e captar eventuais empregadores ou contratantes.
“Eu andava preocupada com a possibilidade do nosso sotaque se perder. Escuto minha filha pequena falar e fico com esse receio, principalmente depois que, durante uma seleção de elenco para um comercial da prefeitura do Recife, avaliei 50 crianças e só cinco tinham nosso sotaque”, recorda Amanda.
O vídeo dos plurais viralizou, passando de 17 mil curtidas em poucos dias, e a atriz passou a ter status de celebridade nas redes sociais. Um ano depois, sua página está perto de alcançar 32 mil seguidores. As “aulas” sobre o modo de falar recifense têm engajamento muito superior às postagens “normais”, cada vez mais raras.
“Não sou influencer porque não ganho dinheiro com isso, mas tem pernambucano que mora longe dizendo que me segue para matar a saudade de casa, um paulista me abordou no elevador para dizer que meus vídeos tinham ajudado a melhorar o relacionamento com a esposa recifense”, conta.
“Eu não imaginava que a relação da língua com nossos afetos fosse tão intensa, tão mobilizadora”, comenta Amanda, ou Amandinha, como é mais conhecida tanto offline quanto online.
Por meses, ela alimentou um receio: como os linguistas, os estudiosos da linguagem, iriam encarar uma atriz que nunca assistiu uma aula do curso de Letras dando lições na internet. Até que um encontro na padaria perto de sua casa desfez o medo: “uma professora da universidade puxou conversa comigo, elogiando o perfil, dizendo que eu falava com simplicidade e ajudava as pessoas a entenderem coisas complexas da língua”.
Talvez alguns leitores mais atentos tenham percebido que, a essa altura, não foi usada a expressão “sotaque pernambucano” neste texto. Não é por acaso, afinal o conteúdo das postagens de Amandinha e o foco desta reportagem é o dialeto recifense.
Sotaque, ou seja, a maneira como se pronuncia as palavras, é apenas um dos componentes daquilo que linguistas chamam de dialeto. Os outros aspectos são o vocabulário (léxico), a forma das palavras (morfologia) e a organização das palavras em orações (sintaxe).
Como assim o Recife tem um dialeto próprio? A professora de fonética e fonologia da UFPE, Siane Gois Cavalcanti Rodrigues, explica que bastam algumas diferenças sutis para uma variação linguística ser considerada um dialeto. “A maioria das pessoas considera que é um dialeto é uma mudança muito grande em uma determinada língua, uma mudança maior do que aquilo que os linguistas consideram como dialeto”, afirma Gois, que é pós-doutora pela Universidade de Aveiro, em Portugal.
Siane Gois explica que bastam pequenas mudanças para caracterizar um dialeto
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Como as diferenças não precisam ser tão grandes, os especialistas consideram que existem no Brasil 16 dialetos. Três deles são falados em territórios restritos a regiões metropolitanas de capitais: além do recifense, há o carioca, no Rio de Janeiro, e o florianopolitano, em Florianópolis. Os demais se distribuem em áreas geográficas bem maiores, a exemplo do nortista, o sertanejo, o caipira, o baiano e o nordestino.
Essa distribuição foi definida a partir de estudos realizados em várias universidades brasileiras a partir dos mapas das zonas dialetais brasileiras elaborados por um pesquisador chamado Antenor Nascentes.
Essa história quem conta é outro especialista da UFPE, Cleber Alves de Ataíde, presidente da Associação Brasileira de Linguística (Abralin). “Na primeira versão, de 1922, Nascentes registrou apenas os dialetos nortista, fluminense, sertanejo e sulista. Em 1953, já eram seis zonas com os falares amazonense, nordestino, baiano, fluminense, mineiro e sulista”.
O som marcante do falar dos moradores do Recife é o chiado, similar ao dos cariocas, mas bem menos intenso. “O chiado acontece quando vocês pronunciam o que a gente chama consoantes fricativas em posição final de sílaba”, explica Siane Gois, que, daqui a algumas linhas, volta a este texto para dar um exemplo.
Antes, é preciso explicar que as tais consoantes fricativas são aquelas cujo som resultam da fricção do ar ao passar pelo sistema articulatório, que é formado por faringe, língua, nariz, palato, dentes e lábios. Ou, nas palavras da professora da UFPE, “são essas que causam uma fricção quando a gente as pronuncia”.
As consoantes “z”, “s”, “v”, “f” são fricativas. O “j” de janela e o “ch” de chamar também se enquadram nessa classificação.
Agora, vamos ao exemplo da professora Siane Gois pra ficar mais fácil de entender:
“Conheço um meme em que uma pessoa do Recife vai à padaria e diz assim ‘Me dê seis pães mais três pães’. Então, o padeiro pergunta por que ela não pede logo nove pães. ‘Porque eu quero chiar e nove não chia’.” Se ainda tiver uma dúvida, repare como os recifenses ao seu redor costumam falar a palavra “mesmo”.
Cleber Ataíde, que é doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, acredita que, além do chiado, há outras características importantes do dialeto dos recifenses: “A gente tem que se referir a marcas fonológicas, porque são realizações diferentes de outra região, e também marcas lexicais. É no léxico que essa variação vai se manifestar mais, ou seja, é nas palavras que a gente vai se ver diferente de outros”.
Ataíde cita alguns termos bem específicos. “’Camulesta’, ou a expressão ‘ôxi’, por exemplo, que vem de ‘oxente’, presente em todo o Nordeste”. Isso sem falar em fuleiro, morgado, tabacudo, malamanhado, mungangas e empiriquitar (os leitores de fora do Recife podem ficar sossegados, pois colocamos um glossário no finalzinho deste texto.
Há também as palavras-coringa, aquelas que são usadas para tudo quanto é situação, um recurso comum em outras regiões. Ataíde lembra de “troço” e de “coisa”, que se transforma no adjetivo “coisado”, sem um significado claro e que, por isso, é de uso polivalente.
As diferenças sintáticas não são assim tão significativas. A sintaxe, segundo Ataíde, não muda muito entre os falantes do nosso dialeto. A ausência do artigo definido antes do substantivo é a mais notável. Ao contrário da maior parte do país, no Recife e em porções da Paraíba e Rio Grande do Norte, as pessoas não dizem “o João” ou “a Maria”, nem “vou na casa do fulano ou da beltrana”, mas sim “na casa de fulano”.
Não é só a chiadeira. Nós, recifenses, temos uma tendência a monotongar os ditongos. Gostou dessa? Parece complicado, mas quando a professora Siane explica fica mais fácil. “Falantes de outros estados fazem isso. Na monotongação, a gente não diz caixa, faixa, peixe, queijo. A gente diz caxa, faxa, pexe, quejo, ou seja, a gente transforma um ditongo em monotongo”.
Amanda Menelau, inclusive, já fez postagem sobre isso em seu Instagram:
Tem mais. O recifense (ainda) tem uma tendência a falar as consoantes oclusivas plenas, sem transformá-las em africadas. Siane Gois explica novamente: “Na pronúncia dessas consoantes, o ar expelido pelos pulmões encontra na boca uma obstrução plena, completa. Por isso, o recifense fala tia e dia, com as letras tê e dê bem definidas, como em tã e dã”. Na maior parte do país, entretanto, se diz “tchia” e “djia”, com uma leve fricção. Ou seja, começa a se falar com uma obstrução e termina-se com uma fricção, como acontece quando se diz a palavra “Tchecoslováquia”.
Mas por qual razão o “ainda” veio entre parênteses no parágrafo anterior? Essas oclusivas plenas estão com os dias contados, segundo a professora de fonética. As pesquisas apontam que a inclinação das pessoas é friccionar, pois esse um processo fonológico que acontece para facilitar a fala.
Não é uma mera opinião da professora. O professor Cleber Ataíde concorda com a colega. “Essa pronúncia está se apagando, principalmente nas periferias das grandes cidades”, afirma.
O eventual desaparecimento da pronúncia oclusiva plena do “tê” e “dê” não significa que o dialeto do Recife está em risco. Não é bem assim que as coisas funcionam com o idioma.
“A língua é um sistema heterogêneo, variável e mutável por natureza, mas também é regular e estável”, define Ataíde. Por isso, “dialetos não somem de uma hora para outra, a língua se movimenta porque os falantes que se movimentam, têm acesso a outras culturas, têm contato com outros falantes e isso vai fazendo com que a língua se transforme”.
Nesse processo de transformação, os dialetos vão acumulando traços, apagando, transformando outras expressões. “Vamos dizer assim, a gente vai acrescentando outras expressões nesse dialeto”, conclui o linguista.
Para Cleber Ataíde, dialeto recifense não corre risco de sumir, mas pode se transformar
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Ataíde chama a atenção, porém, para uma possibilidade real de apagamento de um dialeto: “é quando na escola só ensina um tipo de variedade e expressão linguística. Se a escola ensina só um tipo de variedade ou só um tipo de gramática, aí sim há o risco de fazer desaparecer as demais variedades”.
Para Cleber Ataíde, todas as variedades da língua precisam ser valorizadas. “A gente precisa entender que existem as várias manifestações e isso não vai descaracterizar nenhuma gramática, não vai descaracterizar nenhuma língua, não vai fazer o idioma português morrer. Por isso, a escola precisa adotar uma metodologia que valorize a diversidade linguística e quando eu falo em diversidade linguística, estou falando da diversidade cultural”.
Cleber imagina uma maneira de ensinar a língua portuguesa capaz de fazer as futuras gerações de brasileiros serem “poliglotas no próprio idioma”. Talvez assim Amanda Menelau não tivesse de recusar propostas de trabalho de contratantes que exigem o uso de um tal “sotaque neutro” na locução ou na interpretação de papéis.
“Não existe isso de sotaque neutro. Quando mencionam isso, na verdade estão se referindo a uma mistura do sotaque paulistano com o carioca, soa neutro apenas para as pessoas que falam desse jeito”, ironiza a locutora e atriz.
Ela não esconde que o tema a incomoda, tanto que um react a um vídeo da cantora Juliette comentando sobre o mesmo assunto está fixado em seu perfil:
O presidente da Abralin concorda com Amanda. “Há a tendência da nossa fala ser padronizada por uma fala do sul-sudeste, que é marcada como uma norma adotada como a única correta. Isso faz com que as pessoas que usam outras variedades da língua sintam que seu falar é menos prestigiado, que é errado e, em consequência, sofram mais violência, sofram mais preconceito”.
O peso e a intensidade do preconceito, no entanto, não é igual para todos os falantes da variedade mais estigmatizada do idioma. Por isso, há quem perca seu sotaque e há quem o mantenha e até o reforce. A sociolinguística, o ramo da linguística que estuda a relação entre a língua e a sociedade, explica isso.
“Isso depende muito do grau de instrução, da posição social do falante. Se a pessoa faz parte de uma camada social menos prestigiada e se desloca para São Paulo para se arriscar, como muitos nordestinos fizeram e ainda fazem, esse migrante vai ser bastante estigmatizado e vai ter a tendência de apagar ou neutralizar as marcas dialetais próprias do falar recifense, cearense ou paraibano, por exemplo”, detalha Ataíde.
No caso de pessoas de outros grupos sociais que se deslocam as cidades do sudeste, as coisas são bem diferentes. “Uma pessoa que tem certa identidade cultural e poder aquisitivo um pouco mais alto, mediano mesmo, a exemplo de um jornalista, um artista, um músico, faz um esforço para preservar sua modo de falar. Por quê? Porque essa é uma marca que vai diferenciar aquela pessoa dos outros grupos”, explica o professor da UFPE.
1. Empiriquitar – Enfeitar-se excessivamente ou vestir-se com extravagância.
2. Fuleiro – Algo sem valor, sem qualidade. No português, a palavra fuleira dizia respeito a algo frívolo. O recifense diz fulêro.
3. Malamanhado – Termo formado pelas palavras mal e amanhado, que vem de manha. Refere-se a alguém mal arrumado, desajeitado, de aparência descuidada.
4. Morgado – Apático, sem graça. No português europeu, era um título nobre usado para designar o filho mais velho que herdava as propriedades da família.
5. Munganga – Careta exagerada. Palavra vinda do idioma quimbundo, falado no atual território de Angola, para se referir a disfarce cômico.
6. Tabacudo – Esse é um clássico das ruas recifenses para se referir ao sujeito tolo, babaca, abestalhado, abilolado (outro clássico local, aliás).
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.