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O sonho de um país bom para todas as pessoas passa por um país construído por mulheres

Marco Zero Conteúdo / 19/07/2022

Crédito: Manú Castro / Casa da Mulher do Nordeste

Por Myrella Santana*

Nesta última semana, eu participei de um encontro no Rio de Janeiro que reuniu mais de 200 mulheres, em sua mais complexa diversidade e de todos os cantos do Brasil. Nele, por ser a mais jovem, fui inúmeras vezes questionada: onde seu ativismo começou? Eu não sabia exatamente como responder essa pergunta, eu sou uma mulher negra bissexual de 20 anos e moradora de uma periferia na Zona Oeste da cidade do Recife. Me perguntei: nós, mulheres negras, temos de fato a escolha de sermos ou não ativistas?

Atualmente, muito se fala de uma crise política e econômica no Brasil, mas me questiono: essa crise em algum momento deixou de existir? “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”, disse Simone de Beauvoir. Quando trazemos essa citação para o conceito de interseccionalidade desenvolvido por Patrícia Hill Collins, visualizamos que esses direitos que serão questionados e logo retirados, atingem principalmente as mulheres negras, indígenas, quilombolas, LBT+, pobres e com deficiência. Ou seja, se nós mulheres, somos as primeiras a ter nossos direitos questionados e retirados, constantemente violados, qual escolha temos a não ser lutar?

A crise desencadeada pela pandemia do coronavírus agravou uma crise que sempre existiu. Em alguns momentos mais, em outros menos, o povo preto e favelado sempre conheceu a fome. Carolina Maria de Jesus falou há uns bons anos atrás que o maior espetáculo do pobre da atualidade é comer, tantos anos de Brasil e nada mudou. Para algumas pessoas, essa crise que não é só econômica, mas também social, estrutural e política, não começou agora, e também não terminará tão cedo. Mulheres negras, indígenas, quilombolas, LBT+, com deficiência, pobres, sempre conheceram a crise no seu mais violento cerne, porque nós não apenas analisamos a conjuntura, nós a vivenciamos.

Eu poderia trazer dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou de qualquer outra fonte estatística do Brasil ou do mundo, mas esses números só seriam necessários para convencer os homens, porque nós mulheres sabemos e conhecemos à violência no nosso cotidiano. Em algum momento da vida já fomos violentadas de alguma forma. Todas nós, sem exceção. Seja verbalmente, fisicamente, moralmente, seja com olhares perversos e constrangedores ou seja dentro de casa por familiares. Seja na escola, no ambiente de trabalho, na política, ou até mesmo dentro de um hospital no momento que deveria ser um dos mais acolhedores e seguros para aquelas mulheres e pessoas com útero que desejam ter um filho: o momento do parto.

Todos os movimentos sociais e populares do Brasil e do mundo são constituídos majoritariamente por mulheres. São as mulheres indígenas e quilombolas que estão na linha de frente na luta pelo território. Pelo direito à terra, por uma vida digna e de qualidade. São as travestis que fizeram o movimento LGBTQIA+ no Brasil ser o que é. São as mulheres negras e faveladas que estão na linha de frente defendendo a juventude negra da guerra às drogas e gritando para pararem de nos matar, sendo as principais mãos que construíram e constroem o movimento negro brasileiro.

O Brasil está na 96° posição de países que possuem o maior percentual de igualdade entre homens e mulheres, de acordo com o último levantamento feito pelo Fórum Econômico Mundial, que utiliza os indicadores de saúde, educação, economia e política como critérios para o ranking. Essa posição reflete diretamente o parlamento brasileiro, em que atualmente temos 15% de mulheres na Câmara dos Deputados e 14% no Senado, ocupando a 140° posição no ranking de representação feminina nos parlamentos, de acordo com o Mapa das Mulheres na Política 2020 da ONU. Quando fazemos uma análise interseccional considerando o quesito raça/cor, esse percentual diminui consideravelmente.

Desde 2008, Ruanda se tornou o país com mais mulheres no parlamento no mundo, reflexo de um projeto político pós genocídio de 1994. Inúmeras políticas afirmativas foram implementadas para a garantia de maior equidade de gênero, que vão desde cota dentro do próprio parlamento, à incorporação da igualdade de gênero nas matrizes de formação do sistema educacional. Ainda assim, mesmo ocupando espaços de tomada de decisões nas ruas, dentro de casa as expectativas patriarcais ainda as cercam violentamente.

Isso é o reflexo de que apenas estar dentro dos parlamentos não é suficiente, se quando essas mulheres chegam em casa, o medo chega junto com elas. Construir uma política, um parlamento, uma sociedade que não seja apenas feminina, mas feminista. Em que não tenhamos apenas o direito de falar e decidir sobre os rumos de um país, mas de nossos próprios corpos. Que aqui no Brasil, o Estado fundamentalista religioso não coloque a mão sobre a cabeça abençoando os pastores que estupram e condenando as mulheres que abortam.

O sonho de um país bom para todas as pessoas passa pelas mãos de um país construído por mulheres. Esse é um projeto que já está em curso, é necessário condições para dar continuidade. Como militante do movimento de mulheres negras, a continuidade que acredito é da construção histórica e diaspórica do feminismo negro, onde trago um trecho do Manifesto da Marcha das Mulheres Negras de 2015, que diz:

“Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha inspiradas em nossa ancestralidade que nos fez portadoras de um legado capaz de ofertar concepções que inspirem a construção e consolidação de um novo pacto civilizatório. Buscamos fundamentos em paradigmas que se orientam por outra gramática política, responsável por uma reordenação sociorracial equilibrada, capaz de acolher saberes, práticas e experiências até então ignoradas pelas dominantes configurações do político. Não temos dúvida de que a adoção desse paradigma instaura, a uma só vez, a reconstrução de utopias onde as diferenças são compreendidas como um valor humano.”

Não cabe mais aqui a reconstrução de um país, que tem em suas bases o racismo, a homofobia, a transfobia, o machismo e o capacitismo. Não cabe mais. Restando a construção de um outro país pensado pela maioria da sua população: as mulheres.

Nas próximas duas semanas acontecerão as convenções partidárias, que é onde será decidido quem vai ou não de fato se candidatar. Esse ano, o Brasil teve várias alterações na legislação eleitoral, dentre elas, a criação das Federações Partidárias, em que partidos políticos se juntam pelos próximos quatro anos e a legislação será aplicada para os entes da federação como se fossem um único partido. Entretanto, a legislação vem também com um filtro muito perverso, que vai colocar como prioridade as candidaturas mais competitivas e com maior visibilidade (das quais já sabemos historicamente quem são). Invisibilizando e colocando no lugar da sub-representação cada vez mais as candidaturas de mulheres, principalmente, as negras, LBT+ e com deficiência. A baixa expressividade vai ser, mais do que nunca, argumento para limitar a participação política daquelas que corajosamente colocam a cara em um santinho ousando construir um Brasil melhor.

O Brasil melhor tem que começar agora. O foco do voto nessa eleição não deve ser apenas no Executivo, mas em ampliar as inúmeras bancadas de mulheres negras feministas LBT+, indígenas, quilombolas, faveladas e com deficiência. Em um país em que o presidencialismo de coalizão faz com que o Legislativo esteja, em sua maioria, debaixo das asas do Executivo, em que as pesquisas de opinião apontam a descrença nas casas legislativas e na política no geral, ousamos sonhar um Brasil e um Pernambuco diferente. Essa disputa começa desigual desde antes do período eleitoral, estejamos atentos e atentas às resposta que os partidos vão dar para as agendas feministas, antirracistas, antiLGBTQIA+fóbica e suas candidaturas comprometidas. O Brasil melhor tem que começar e ser para além da maratona dos 45 dias. Dias mulheres virão!

* Myrella Santana é graduanda em Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco. Integra a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Articulação Negra de Pernambuco. É Diretora Operacional e pesquisadora na Rede Internacional de Jovens LBTQIA+.

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