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Obra da ponte Jaime Gusmão expulsa comunidade encravada em bairro nobre na zona norte do Recife

Giovanna Carneiro / 24/08/2023
Foto colorida de mulher parda de meia idade, com blusa de alças azuis, segurando cartolina com a frase Enquanto há vila, há esperança. Ela está no meio de uma avenida, onde ao fundo se vê a fumaça escura de pneus queimando no asfalto.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Na manhã desta quinta-feira, 24 de agosto, por volta das 6h30, moradores da Zeis Vila Esperança Cabocó, fecharam a avenida Dezessete de Agosto, próximo à Escola Silva Jardim, no bairro do Monteiro. A ação foi realizada em protesto contra as ações de despejo realizadas pela Prefeitura do Recife para viabilizar construção da ponte Engenheiro Jaime Gusmão, que ligará as zonas oeste e norte da cidade.A manifestação e o bloqueio da avenida duraram uma hora, mas foram os últimos atos de um impasse de 11 anos.

“O prefeito tá barateando a obra da ponte tirando a casa do povo!”; “Zeis é lugar de moradia não de ponte”; “Destruindo sonhos construindo pontes”. Frases estampadas nos cartazes carregados pelos manifestantes demonstraram a revolta dos que foram intimados a deixar suas casas e, agora, convivem com a insegurança de não saber para onde ir.

A luta dos moradores da Vila Esperança teve início em 2012, quando o projeto da obra da ponte foi anunciado. Na época, 24 famílias que viviam às margens do rio Capibaribe foram retiradas das propriedades. Dessas, 16 moram em um conjunto habitacional construído pela Prefeitura, na própria Vila Esperança, e as demais recebem um auxílio moradia, que antes tinha o valor de R$ 200, mas foi reajustado para R$ 300 graças a um projeto de lei sancionado no início de junho.

A construção da ponte foi interrompida e retomada algumas vezes nos últimos anos, mas, na gestão de João Campos, a obra deslanchou e deve ser concluída ainda este ano. O problema é que a construção da ponte, que promete melhorar o tráfego na zona norte da cidade, resultará na extinção da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) Vila Esperança, reconhecida como tal desde 1994.

O protesto fechou as duas vias da avenida Dezessete de Agosto, na zona norte do Recife. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

O fim de uma luta

“Eu me sinto em fim de luta e vencida pela prefeitura”. Chorando bastante, a líder comunitária Maria Helena Vicente, foi protagonista na luta de resistência da comunidade, mas agora sente que não há mais solução e a saída é deixar a sua casa: “O engajamento da comunidade foi perdendo força por conta da força do poder público. Os que continuaram resistindo foram judicializados e nós estamos com ordem de despejo, apenas aguardando o oficial de Justiça”.

No dia 15 de junho de 2022, a Marco Zero visitou a Vila Esperança Cabocó e o clima já era de tensão. Os moradores estavam se sentindo ameaçados pela abordagem dos agentes da Autarquia de Urbanização do Recife (URB) que, de acordo com eles, estavam intimidando as pessoas para que aceitassem um acordo de compra dos imóveis para que a área fosse desocupada. Maria Helena foi nossa anfitriã naquela ocasião.

Nascida e criada em uma Zeis, Maria Helena Vicente é uma das vítimas da política de despejo e agora sofre para conseguir uma nova moradia. “Desde criança eu escuto que nós estamos em um território protegido e olha o que está acontecendo na Vila Esperança. Sempre me senti segura na minha comunidade e, em plena pandemia, nós tivemos que lidar com a retomada dessa obra. Estou procurando uma nova casa. tenho pedido a Deus que me apresente esse novo lugar para chamar de lar, mas tem sido muito difícil”, declarou a moradora aos prantos.

Maria Helena Vicente, presidente do Conselho de Moradores da ZEIS Vila Esperança Caboco. Crédito: Arnaldo Sete / MZ Conteúdo

Durante a produção daquela primeira reportagem, a Marco Zero entrou em contato com a assessoria da prefeitura, que repassou para a URB a responsabilidade de dar a posição oficial. A autarquia informou que “todas as deliberações estão sendo conduzidas em comum acordo com os proprietários dos imóveis”.

Desde de então, alguns moradores aderiram ao acordo de compra e indenização proposto pela Prefeitura do Recife e outros preferiram permanecer na comunidade e lutar pela permanência no local. Reuniões com moradores e representantes da URB, manifestações, parceria e apoio de organizações da sociedade civil – a exemplo do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) – e até tentativa de defesa no Ministério Público de Pernambuco, foram ações realizadas ao longo desse período.

Porém, pouco mais de um ano depois, ao retornar a Vila Esperança, a sensação é de luto. Muitas casas já foram demolidas e aqueles que ficaram convivem com os destroços das construções, que não foram removidos pela PCR. Além disso, todas as famílias já receberam a ordem de despejo e, de acordo com os moradores, diariamente recebem a visita de representantes da prefeitura pressionando para acelerar a desocupação. “Eles ameaçam mesmo, dizem que se a gente não sair a polícia vem tirar a gente ou o trator vai passar por cima”, revelou a moradora Givanilda Lopes.

“É uma forma deles mexerem com a nossa saúde e o nosso psicológico, porque é muito triste acordar todo dia e dar de cara com essa destruição toda. Fora que isso junta bichos, né? Começa a aparecer escorpião, rato, e a gente tem que viver com isso agora”, contou a moradora Raquel Dalzy. No momento da nossa conversa, Raquel, de 65 anos, que é professora aposentada e nasceu na Vila Esperança, se preparava para ir procurar uma nova casa.

“A gente já esperava, o problema é que quando a coisa se concretiza fica tudo mais difícil, você diz assim ‘eu tô preparada’, mas não tá. Eu tenho que encontrar um lugar de aluguel, porque o valor que a prefeitura está oferecendo é muito baixo, um lugar que caiba minhas coisas, meu cachorro, enfim, eu vou levar toda minha vida para outro lugar”, lamentou a moradora ao mostrar as caixas que já estão na sala de sua casa, preparadas para guardar os utensílios que serão transportados para a nova moradia.

Indenizações baixas expulsam moradores do bairro nobre da zona norte do Recife. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Os baixos valores das indenizações

Sabendo que não terão mais saída e que não há mais a possibilidade de permanecer em suas casas, os moradores da Vila Esperança agora lutam para ter pelo menos uma indenização que proporcione a compra de um imóvel em boas condições, porém, esse direito também está ameaçado e não se concretizou.

“O advogado veio aqui dizendo que se eu não desocupar a casa a polícia vem me tirar e com o dinheiro que estão me dando eu não tenho como sair. São quatro famílias dentro do meu terreno, como é que eu vou comprar uma moradia digna com R$ 50 mil? Eu vou acabar morando em uma ocupação”, afirmou a moradora Givanilda Lopes.

Localizado em uma área nobre do Recife e cercada por prédios e construções luxuosas, a Vila Esperança está encravada numa região bastante valorizada pela especulação imobiliária. Por isso, os moradores contestam os valores que estão sendo oferecidos pela Prefeitura do Recife que, de acordo com eles, não chega nem a R$ 100 mil.

“Você vê a minha casa, ela é enorme, tem quintal, tem piscina, tem área de lazer. Onde é que eu vou encontrar uma casa parecida com essa por menos de R$ 200 mil? Com o dinheiro que a prefeitura está me oferecendo eu vou ter que viver de aluguel durante muito tempo e ir economizando até conseguir comprar uma casa própria. Fora que eu vou ter que ir para um bairro distante daqui se quiser comprar, porque no entorno é tudo muito caro”, declarou Raquel Dalzy.

De acordo com dados da nota técnica elaborada pelo mandato do vereador Ivan Moraes, em parceria com a Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) e o Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), a partir de informações cedidas pela própria Autarquia de Urbanização do Recife, no período de junho de 2013 até junho de 2023, a URB removeu 1.697 famílias com o pagamento de indenizações. Neste mesmo período, o órgão entregou 770 unidades habitacionais.

O levantamento identificou ainda que, entre 2013 e 2023, nas gestões do PSB, 396 famílias receberam indenizações em dinheiro para execução de obras relacionadas ao Projeto Capibaribe Melhor. Desse quantitativo, 144 imóveis foram indenizados com quantia abaixo de R$10 mil reais, o que corresponde a 36% do total.

Neste mesmo período, 147 desapropriações pagas com indenização em dinheiro foram realizadas nos bairros do Monteiro e da Iputinga, com o valor total gasto superando 15 milhões de reais. De acordo com os dados da URB, 308 casas foram removidas da Zeis Vila Esperança Cabocó sem qualquer alternativa de moradia para essas famílias, além do pagamento de indenização de baixo valor.

Em 2021, a PCR prometeu construir 76 unidades habitacionais em um terreno próximo a comunidade. Porém, a demora da execução do projeto, que ainda está em fase de licitação, e a insatisfação com o padrão dos apartamentos ofertados – com uma média de 40m² por cada unidade de dois quartos – fez com que muitos moradores da vila negociassem seus imóveis por indenizações de valores reduzidos. Estima-se que 24,94% dos moradores de Vila Esperança receberam uma indenização abaixo de R$ 10 mil.

Procuramos a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) para questionar os valores das indenizações que estão sendo pagas aos moradores da Vila Esperança e também para saber mais informações sobre os impactos da obra da ponte Engenheiro Jaime Gusmão, mas até o fechamento da matéria não obtivemos retorno.

Recife em estado crítico na política habitacional

Na última terça-feira, 22 de agosto, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Fórum Nacional de Direitos Humanos (FNRU), Campanha Nacional Despejo Zero, Habitat para a Humanidade Brasil e outras entidades da sociedade civil que estão realizando a Missão Denúncia para ouvir a população sobre violações do direito à moradia, visitaram a Zeis Vila Esperança Cabocó.

Em reunião realizada na sede do conselho da comunidade, os representantes das entidades puderam ouvir as denúncias dos moradores, que serão incluídas no relatório que irá traçar um panorama nacional sobre as políticas públicas de habitação e o direito à moradia.

Na quarta-feira, 23, dia em que a Missão do CNDH e da campanha Despejo Zero visitou a Vila Esperança, a prefeitura disparou pelo SMS uma mensagem de propaganda da obra da ponte, mal disfarçada em pesquisa de opinião. O “torpedo” foi direcionado para cidadãos que usaram algum serviço público da prefeitura por meio da ferramenta Conecta Recife.

“O que acontece em vários lugares do Brasil é uma dificuldade muito grande das comunidades emter acesso a informações de projetos que dizem respeito a elas. Então, a gente percebe que, além de não haver diálogo qualificado do poder público com os moradores, há uma perseguição e criminalização das lideranças comunitárias que tem atuado para garantir o direito da sua comunidade”, declarou Getúlio Vargas Júnior, coordenador da Comissão do Direito à Cidade do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

De acordo com a Campanha Despejo Zero, em Pernambuco mais de 34 mil famílias vivem ameaçadas de despejo e mais de duas mil já foram despejadas.

“Nós viemos para Recife porque é uma das cidades onde há uma grande incidência de violações de direitos humanos e um grande número de tentativas de despejo nos últimos anos. Porém, a gente percebe também que aqui há muita organização e muita resistência na construção coletiva e isso também é um fator determinante para a missão”, concluiu o coordenador.

Dados da nota técnica elaborada com informações da URB revelam que, nos últimos dez anos, pelo menos 52 Comunidades de Interesse Social (CIS), algumas delas inseridas em 13 das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) do Recife, foram impactadas com obras que resultaram em desapropriação via indenização.

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.