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Alice ZivicherStauber, a “Miss Baby” era uma cantora austríaca. Chegou ao Recife em 1944, para se apresentar no Grande Hotel. No final do ano, podia ser vista no Teatro Santa Isabel, com sua charmosa faixa branca no cabelo, em homenagem aos negros cultivadores de algodão do Missisipi. Foi fichada pelo DOPS-PE (Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco) em fevereiro de 1945, e aparentemente investigada, sob suspeita de “colaboracionismo” (a Áustria fora anexada à Alemanha nazista). Como era refugiada, a suspeita foi descartada. Seu prontuário é o de número 9635.
Alda Bogoslowa, bailarina russa. Esteve no Recife pelo menos três vezes entre 1929 e 1934. Na última, a possível “primeira bailarina da Ópera Imperial de Petrogrado” ganhou do DOPS o prontuário número 3641 e uma rigorosa sombra à sua presença. Os agentes sabiam de sua procedência, quem a havia contratado (em 1933, pelo lendário Cassino Taco de Ouro), para onde viajava, onde se hospedava (Hotel Central, depois o Palace Hotel) e a a suspeita de que tinha um amante paraense.
Roserny Rondelli Fayão, carioca, cantora e vedete famosa. Se apresentou no Recife, mas foi somente em 1954 que o DOPS a alcançou. Foi fichada ao ser contratada para atuar no Teatro de Revistas da Festa da Mocidade. Estrelava a revista Pernas Provocantes, e foi citada pelo Diario de Pernambuco como a “coqueluche do momento”.
Sara Olga Estela Ginorio y Murgado, cubana. Integrava a Companhia de Mágicas e Maravilhas Fu-Manchú, que fazia uma turnê pela América Latina. Em 1948, ao passar pelo Recife, a companhia inteira foi fichada. Quatro artistas mulheres, das centenas que passaram pelo Recife, entre 1934 e 1958, que mesmo sem nenhum tipo de militância política evidente, foram alcançadas pela obsessiva e azeitada máquina repressiva do DOPS, que parecia ter um absoluto pânico de tudo o que fosse diferente. E elas tinham uma diferença: eram todas artistas.
Parte tinha apenas uma ficha, com informações sobre a origem e dados pessoais, com foto. Os que mais preocupavam, ganhavam prontuários, com tudo o que os agentes conseguissem: notícias de jornal, bilhetes, contas em bar, relatos de informantes etc. São essas vidas, corpos, rostos, histórias, numa Recife Cosmopolita, que a pesquisadora e jornalista Clarice Hoffmann vai apresentar oficialmente nesta terça-feira (24), com o lançamento de uma exaustiva, delicada e amorosa pesquisa, intitulada “Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”.
São 403 fichários e 28 prontuários, que ficaram guardados pelo Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje), após a extinção do DOPS, em 1990. Trata-se de uma parcela importante do que restou da ação repressiva e paranóica do Departamento, que concluiu seus trabalhos deixando um índice onomástico com mais de 125 mil nomes.
O recorte da pesquisa é a palavra “Artista”.
Talvez, a motivação inconsciente tenha a ver com uma história familiar. “Cresci com minha mãe dizendo que a minha avó, Gusta Gamer, uma atriz judia vinda da Ucrânia, tinha sido fichada pelo DOPS na ditadura de Vargas”, diz Clarice.
A história começou em 2004, quando ela foi pesquisar, nos prontuários do DOPS, imagens para o livro “Mulheres negras do Brasil”, da Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh). Num pequeno conjunto de fichas, ficou impressionada ao ver a imagem de Marguerite Marie Henri, uma artista francesa, de aproximadamente 30 anos, que tinha chegado ao Recife em 1936, para se apresentar no cassino Taco de Ouro.
Sabiam tudo dela. Onde se apresentava, onde morava. Foi fichada e fotografada dia 2 de junho de 1936. A imagem ficou marcada na pesquisadora, que esbarrou nas limitações da legislação para continuar uma pesquisa de maior fôlego sobre essas mulheres-artistas fichadas.
“A legislação não permitia isso. Só consultava quem era da família ou alguém autorizado”, conta.
Em maio de 2012, com a sanção da Lei de Acesso à Informação, a vida de pesquisador ficou mais fácil. Clarice não dependia mais de autorizações, e decidiu “retomar essa história”.
A ação do tempo, que geralmente sai apagando vestígios do passado, desta vez foi benéfica. Oito anos depois, o acervo estava muito mais organizado. Passou três meses sozinha, pesquisando fichas e prontuários, lendo, estudando sobre o período. Estava nascendo algo que ainda não tinha nome.
O resultado é um vasto panorama de duas décadas do Recife – 429 pessoas, mulheres e homens, brasileiros e estrangeiros -, que protagonizaram uma movimentação ainda não explorada com atenção, no campo das artes e diversões. Bailarinas fantasistas e sapateadores excêntricos, cantores de rádio, vedetes, cossacos russos, transformistas, pugilistas, telepatas, ilusionistas, artistas teatrais e telepáticos. Não era a questão política que importunava o DOPS de Pernambuco – era a diferença.
“Percebi que tinha nas mãos o cenário cultural daquele período. Uma cena do Recife que foi negada”, diz.
Era um Recife cosmopolita, intenso, num período que o Brasil viveu o Estado Novo, II Guerra Mundial e pós-ditadura Vargas. Quando sentiu que tinha algo mais denso, convidou o professor e escritor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, atualmente professor convidado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para fazer parte do projeto. Ele aceitou de imediato. Estava nascendo o “Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”. Clarice inscreveu o projeto solitário no Rumos, do Instituto Itaú Cultural.
Quando soube que o edital teve 15 mil inscritos, pensou o que geralmente todo mundo pensa nessas coisas enormes. “Não vou passar nunca”. Mas passou. Meses depois, em setembro de 2014, também conseguiu financiamento através de edital do Funcultura, do Governo do Estado de Pernambuco. Montou e coordenou uma equipe, com a orientação e assessoria da pesquisa histórica de Durval Muniz, além de mais três pesquisadores.
O que é viver sob um regime ditatorial
Na primeira semana de novembro, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), notório defensor da Ditadura Militar (1964-1985), veio ao Recife para uma série de atividades. No convite para sua presença na Assembléia Legislativa do Estado, um trecho revelava o perfil do deputado: “Ele (Bolsonaro) defende a ditadura, considera tortura uma prática legítima e é conhecido por suas posições nacionalistas e conservadoras de extrema-direita”.
Foi recebido com festa por dezenas de pessoas, já no aeroporto. Fotografado, tratado como “mito” pelos que defendem uma “intervenção militar” no Brasil. Talvez uma visita ao Obscuro Fichário ajude a refletir mais sobre o que se pede.
“Nesses dias em que muitos saem às ruas do país para pedir a volta dos tempos de sombras das ditaduras, trazer à luz esses registros é fundamental, para que se saiba o que significava viver sob um regime ditatorial e de exceção”, afirma Durval Muniz, no rigoroso ensaio que situa, discute e reflete as várias dimensões do projeto.
Ele se refere às “geografias do medo e da suspeita”, onde corpos e espaços, nomes e práticas, discursos e idéias “metiam medo” ou “causavam suspeitas”, entre aqueles que compunham as elites econômicas, política e intelectual de cada período. Não só as pessoas eram fichadas – até casas, edifícios e fachadas que “miravam” o grande porto internacional do Recife, eram fichadas.
Pelos fichários, avalia Muniz, é possível se inteirar de “quais corpos se tinha medo”, quais eram “motivo de repulsa ou de recusa de nossa sociedade”. Com este material, é possível, portanto, traçar uma “cartografia dos corpos desviantes”, entre os anos 1930 e 1950.
O corpo, naquele Brasil de Vargas e de um período de Guerra Mundial, era pensado como “masculino, rígido, militarizado, higienizado e moralizado”, conformado “pelo trabalho e pela disciplina”.
Os que chegavam eram corpos que se contorciam, que voavam ou se despedaçavam, que flutuavam, dançavam, que rebolavam. Corpos sensuais, que se travestiam, de gente que se divertia, que se embriagava, mais noturnos que diurnos. De performances e disfarces. Ou seja, “corpos femininos”, que, segundo Durval, “não seguiam, rigorosamente as normas e códigos definidos para seu gênero, nesse momento da história brasileira, pois não eram corpos de mulheres domésticas, devotadas ao lar ao papel de mães e de esposas”.
Informação, o “prato principal” do DOPS
“Esse é um fichário artístico-cultural. São dissidências. Que tipo de crime é esse? É algo contra os costumes, à norma, à ordem. Eles tinham um quê de mistério, de sedução”, avalia a especialista em arquivos e professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Marcília Gama. Ela, que pesquisou exaustivamente o funcionamento do acervo do DOPS e compreendeu toda a sua lógica, retratada no livro Informação, repressão e memória, trabalhou no projeto como pesquisadora, ao lado do também professor e pesquisador Alexandre Figueirôa. No próximo semestre, eles publicarão artigos sobre o fichário.
Mais que isso. Esses artistas ditavam um novo rumo à vida da cidade, com farras, movimentos que não estavam no “script” e uma sociedade que normatizava e controlava. “A atitude deles escapava ao controle. Dormiam durante o dia. À noite, saíam. Seus corpos serviam para tudo. Usavam perucas, roupas diferentes, maquiagem. Nos relatórios, eram registrados como ‘dissimulados’. Esse grupo era muito preocupante para a Polícia. Eram voláteis, volúveis, nada era estável, não havia um padrão”,
Ela cita o caso de uma mulher que foi convocada a ir ao DOPS após dar gargalhadas, num local cheio de autoridades. Se tratava de Anita Palmeiro. Ela deu o azar de ter sido tão livre na frente do interventor do Estado, Agamenom Magalhães.
Seria fácil resgatar a história de Anita, com apenas um “click” em cima de seu nome, no Obscuro Fichário, mas todas as fichas relacionadas a pessoas com nome iniciado entre as letras A e L foram perdidas. Em 1958, eram aproximadamente 1.100 verbetes.Na tentativa de encontrar os nomes perdidos, a equipe chegou a abrir 12 mil prontuários do DOPS. Foi assim que a história de Anita surgiu.
Cartografias
A ideia inicial de Clarice acabou se transformando em um trabalho coletivo de impressionante fôlego. Ao logo do trabalho, 24 pessoas trabalharam no projeto, e 12 se concentraram na pesquisa e edição dos textos. Foi graças a este grupo, que a pesquisa ganhou outras ramificações.
A partir de um mapa de 1952, que também pertence ao acerco cartográfico do Arquivo Público Jorão Emerenciano, foi possível criar uma série de “cartografias” deste período: Das delícias, das Artes, do Nomadismo e da Paranóia. No segundo semestre de 2016, entrará no ar a “Cartografia da Política”.
Cassinos, bares, cinemas, teatros, hotéis, pensões, casas de diversão, festas, espaços e eventos. Teatros, dança, galeria, exposições. A modernidade do rádio, do cinema e da publicidade. Os locais de vigilância e suspeição, a partir do ponto de vista do DOPS/PE. Serão necessários muitos cliques para conhecer todo este universo, as “noites visuais e musicais de uma cidade que se modernizava”.
A pesquisa encerra-se nos registros de 1958, quando o conjunto de verbetes dedicado aos artistas chegou ao fim. Seis anos depois, em abril de 1964, o DOPS faria a segunda parte do seu trabalho, com a chegada dos militares ao poder, após um Golpe de Estado. As fichas e prontuários foram imediatamente acessadas, levando centenas de pessoas às prisões.
O órgão trabalhou com notória eficiência, repassando informações que resultavam em prisões, torturas, mortes. Desta vez, não eram os artistas que precisavam ser monitorados, acompanhados e fichados. Era qualquer pessoa que fosse contrário à nova ideologia dominante. E eram muitos.
Do dia 24 de novembro até 24 de janeiro de 2016, o Obscuro Fichário estará com uma convocatória aberta para quaisquer criações que dialoguem com o fichário e questões correlatas a ele.
“Buscamos artistas, escritores, cineastas, programadores, pesquisadores ou quaisquer outros interessados em pensar crítica e sensivelmente as dimensões históricas, culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciem a história desse fichário do DOPS/ PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados”, informa o site.
Serão selecionados de três a cinco projetos inéditos, que terão uma verba de R$ 5 mil a R$ 10 mil (valores brutos), para realizar sua produção. O desenvolvimento dos projetos será acompanhado pela equipe curatorial do Obscuro Fichário. Serão aceitas inscrições de interessados de qualquer localidade.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.