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A nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) do Recife foi sancionada pelo prefeito João Campos (PSB) no sábado passado (04). Com 207 artigos, a lei estrutura o Recife em duas macrozonas e suas subdivisões, incluindo Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH). Cada zona tem parâmetros específicos, como regras para parcelamento dos lotes e gabaritos (a altura das edificações).
Mas a principal função da nova lei é facilitar as construções habitacionais no Recife, principalmente as chamadas Habitação de Interesse Social (HIS). Isso inclui empreendimentos financiados pelo programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), da Caixa Econômica Federal, a atual galinha dos ovos de ouro do mercado imobiliário brasileiro – em um cenário de juros altos, é o modelo que mais tem atraído investimentos e consumidores.
Capitaneada pelo secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento, Felipe Matos, o mesmo que conduziu a concessão à iniciativa privada de quatro parques recifenses, a LPUOS foi recebida com aplausos pelas construtoras e imobiliárias pernambucanas. O presidente da Ademi-PE, Rafael Tenório Simões, afirmou nas redes socias que “veremos Minha Casa, Minha Vida onde não se via, novos edifícios ocupando áreas abandonadas do centro, uma nova fase para a zona sul, lojas ativas nos térreos, calçadas mais largas e mais vida nas ruas”.
Na Câmara de Vereadores, o projeto recebeu 112 emendas, das quais 42 foram aprovadas ou adicionadas. A votação só contou com um voto contrário, da vereadora Jô Cavalcanti (PSOL), unindo tanto a base do prefeito João Campos quanto a direita e a extrema direita.
Em almoço nesta semana promovido pelo Sinduscon, o secretário de habitação, Felipe Cury (PT), afirmou, segundo o Jornal do Commercio, que “a gente tem que começar a pensar diferente e verticalizar (os empreendimentos do MCMV). Estou convencido que, ou vamos verticalizar ou não vamos atacar nosso verdadeiro déficit habitacional, que é o ônus excessivo com o aluguel”, disse. Recife, porém, já é uma cidade bem verticalizada: tem 30,4% da população morando em apartamentos. No Nordeste, fica atrás apenas de João Pessoa (38%). Fortaleza, cidade com o maior PIB do Nordeste, tem pouco mais de 21% de sua população em residências verticalizadas.
Na tese da prefeitura, o Recife perdeu 48 mil habitantes entre os Censos de 2010 e 2022 por não ter habitações acessíveis o suficiente. Porém, o último Censo também mostra que o número de domicílios em Recife cresceu 25,1% entre 2010 e 2022, mesmo com a população total encolhendo 3,17% no mesmo período. Ainda assim, 361.548 residentes – o que representa 24,28% da população do Recife -, moram em favelas.
Desde março a Marco Zero tem acompanhado a tramitação da LPUOS. Confira abaixo oito dos muitos pontos que vão mudar na cidade. Para quem quiser se aprofundar, a nova lei está disponível na íntegra no Diário Oficial.
Vários artigos da nova LPUOS têm como finalidade aumentar os empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida no Recife. As construtoras recebem subsídios e facilidades de financiamento pelo programa da Caixa Federal: mais área privada em um terreno significa mais apartamentos para vender. Um desses incentivos é que as HIS podem ser dispensadas do atendimento obrigatório à Taxa de Contribuição Ambiental (TCA) e aos parâmetros de qualificação do espaço público, como calçadas mais largas.
Outro benefício é que empreendimentos de HIS só serão classificados como de impacto – o que significa um licenciamento mais rígido – se a área total de construção for superior a 30.000 m², um limite superior à regra geral (>20.000 m²).
Nas reuniões públicas, o secretário Felipe Matos disse que queria atrair para essas novas moradias quem é “nem rico, nem tão pobre”. Única vereadora a votar contra a LPUOS, Jô Cavalcanti (PSOL) teme que o exemplo de São Paulo ocorra aqui também, com apartamentos teoricaamente para HIS sendo vendidos para quem quer lucrar com aluguel e revenda, e não para moradia.
A lei não estabelece limites fixos de renda na definição de quem deve ser atendido pelas HIS. Essas habitações são definidas apenas como “empreendimentos de iniciativa do poder público e/ou aqueles enquadrados como receptores de subsídio de programas sociais oficiais com o objetivo de prover moradias com condições adequadas de habitabilidade”. A emenda que estabelecia um limite de renda foi rejeitada na Câmara, de maioria governista.
“Contrariamente ao discurso oficial, a nova lei não valoriza efetivamente a Habitação de Interesse Social nem beneficia as camadas mais vulneráveis. Os incentivos previstos para que o mercado invista em empreendimentos no Centro, muito divulgados, têm como protagonistas as obras do MCMV das faixas 2 (até R$ 4,7 mil), (até R$ 8,6 mil) e 4 (até R$ 12 mil), fomentando uma reocupação do centro da cidade que pouco atende às demandas sociais reais dos grupos menos favorecidos”, afirma o arquiteto e urbanista Natan Nigro, coordenador executivo do instituto INCITI e doutorando em Desenvolvimento Urbano na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) .
Para a revitalizar o Centro, a aposta da prefeitura é em moradia. A lei traz o incentivo ao retrofit, a reforma com mudança de uso. “A cada metro quadrado reformado para moradia nessa área, o incorporador recebe o direito de construir área adicional equivalente em bairros mais valorizados, como Boa Viagem. Essa estratégia contribui para a reativação do estoque edificado ocioso e para a reinserção do uso residencial no centro da cidade, fortalecendo sua vitalidade urbana”, acredita o arquiteto e urbanista Zeca Brandão, professor titular do curso de Arquitetura e Urbanismo e da pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) da UFPE. Se a reforma no Centro for para Habitação de Interesse Social, o potencial construtivo em Boa Viagem e região é dobrado, passando de um para dois para metros quadrados.
Por meio de emenda, foi incluída a isenção do pagamento de contrapartida via Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) – quando o empreendedor paga para aumentar a área construída em um lote – por um período de cinco anos de vigência da lei, desde que a aquisição seja acompanhada de reforma (não especifica de que tipo) ou retrofit em imóveis inseridos na Boa Vista, Bairro do Recife, Santo Antônio e São José. A medida foi vista como uma transição, já que a outorga onerosa não existia na antiga lei.
Lei incentiva o retrofit nos bairros do centro da capital
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroO artigo 204 da nova LPUOS revoga a Lei dos 12 Bairros, que estabelecia limites para a pressão imobiliária em bairros da zona norte do Recife. “A substituição por novos parâmetros urbanísticos pode representar um retrocesso, como a perda de controle do gabarito e da limitação do remembramento de lotes, fundamentais para preservar a paisagem urbana e conter o adensamento excessivo desses bairros”, critica Zeca Brandão.
O urbanista Natan Nigro lembra que os novos parâmetros da LPUOS só foram questionados em plenário, quando se constatou que as informações inicialmente divulgadas não correspondiam à realidade. “A pressão de moradores resultou em emendas que atenuaram parcialmente os impactos da revogação da referida lei, mas a sensação é a de que houve manipulação do debate público, distraindo a atenção dos aspectos mais controversos da nova legislação. Assim, a atual gestão municipal parece reiterar práticas das anteriores ao promover uma participação meramente formal, restrita a encontros setorizados e audiências públicas com pouca representatividade social, envolvendo segmentos restritos da população”, afirmou.
Saiba mais aqui: Lei dos 12 bairros: a morte de uma conquista civilizatória
Com a nova lei, o Recife aumenta a área de três Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) e ganha mais 16 outras. Zeis são áreas destinadas à população de baixa renda, onde se busca urbanização, melhorias ambientais e regularização fundiária. O reconhecimento de comunidades em Zeis é uma ação importante para proteger os territórios ocupados por famílias pobres diante das pressões do mercado imobiliário. “O reconhecimento dessas 16 Zeis na nova LPUOS não foi uma dádiva ou uma benesse, mas uma conquista alcançada por meio da luta pelo Direito à Cidade no âmbito dos espaços institucionais de participação”, diz a professora de arquitetura e urbanismo da UFPE Danielle de Melo Rocha, representante da UFPE no Concidade e no Fórum do Prezeis. As Zeis que ampliaram área foram Vila Esperança/Cabocó, Aritana e Caranguejo Tabaiares. Entre as novas Zeis estão Santa Luiza, na Torre, e Vila Sul, em Afogados.
Leia mais aqui: A utopia nos move a caminhar! A Legislação urbanística do Recife sob a disputa pelo Direito à Cidade
A lei propõe uma série de soluções que podem ajudar a tornar o caminhar no Recife mais agradável, como a proibição de muros fechados, o aumento das calçadas a depender do tamanho da construção e faixa de amenização (ajardinamento) entre o prédio e calçada, com solo natural e arborização. Essas medidas, no entanto, valem somente para novas construções e não há na lei a previsão de mudanças para construções já existentes.
“Embora positivos em teoria, esses requisitos poderão elevar o custo dos imóveis, pois impõem soluções construtivas que fogem do padrão atual, restringindo o acesso a esses benefícios às populações de maior renda. Isso agrava a situação numa cidade que já detém o terceiro custo da moradia mais alto entre as capitais brasileiras, fato reconhecido pela própria gestão ao promover a nova lei”, comenta Nigro.
Em prédios comerciais, a fachada ativa, quando há lojas nos térreos, será obrigatória em vias arteriais, as mais importantes da cidade. Nos empreendimentos onde a fachada ativa não é obrigatória, a implantação dela vai conferir benefícios urbanísticos ao empreendimento. Em uma cidade quente como o Recife, outra boa notícia é que estacionamentos descobertos com área superior a 100 m² devem ter uma árvore a cada quatro vagas ou estrutura aérea com vegetação para sombreamento.
Uma novidade da nova lei é a Taxa de Contribuição Ambiental (TCA). São soluções ambientais que podem se somar à Taxa de Solo Natural (TSN) de um empreendimento. São coisas como piso permeável (a partir de 70% de permeabilidade) , telhado verde (que pode ser só com 60% de vegetação) e jardins verticais.
Para Natan Nigro, a TCA é um instrumento urbanístico inovador que pode contribuir, ainda que parcialmente, para mitigar os efeitos das mudanças climáticas na cidade. “Apesar dessa inovação na legislação urbana local, é importante destacar que tais parâmetros não terão impacto significativo sobre a cidade já consolidada nem sobre os efeitos do modelo de expansão urbana herdado do século XX, um desafio até agora insolúvel pelos instrumentos legais vigentes”, disse.
Moradores da zona norte conseguiram reverter parte da diminuição da Taxa de Solo Natural das áreas nas margens do rio Capibaribe que estava na minuta da lei
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroUm ponto controverso da TCA é que ela pode “abater” a porcentagem da Taxa de Solo Natural de um lote em algumas situações. Uma delas é que cada metro quadrado de um jardim de chuva, por exemplo, corresponde a 1,30 m² de área exigida de solo natural. Para Norma Lacerda, professora titular da UFPE, as soluções da TCA não se equiparam à permeabilidade do solo natural e não deveriam ser usadas em uma cidade tão propensa a alagamentos como o Recife. Há ainda a dificuldade em se fiscalizar a continuidade dessas ações após a entrega dos edifícios.
Para terrenos que margeiam os rios, a prefeitura quer fazer permutas com os proprietários para as áreas mais próximas da água. No discurso oficial, a intenção é fazer parques lineares e outras obras públicas nesses trechos dos terrenos. Mas há rios e rios. Enquanto moradores da zona norte conseguiram diminuir os retrocessos da minuta da lei, que reduzia a Taxa de Solo Natural nos terrenos que margeiam o rio Capibaribe, uma emenda que limitava a 24 metros a altura de prédios em lotes às margens dos rios Beberibe e Tejipió – que costumam transbordar nas chuvas– foi vetada na Câmara de Vereadores. Ou seja, a altura dos prédios nessas áreas está liberada. O argumento para o veto foi de que habitacionais verticalizados poderiam ser construídos nessas áreas.
Seguindo o Plano Diretor de 2021, a lei desobriga a exigência de um mínimo de vagas em novas edificações. É uma forma também de baratear os custos de edificações para o MCMV, que não faz essa exigência. O professor da UFPE Zeca Brandão considerou que o artigo se alinha a diretrizes urbanas que desestimulam o uso do automóvel. “A medida pode induzir práticas de mobilidade mais sustentáveis. No entanto, sua efetividade depende da qualificação da infraestrutura urbana, como calçadas acessíveis e transporte público eficiente. Sem esses avanços, a demanda por garagens persistirá, e o mercado imobiliário continuará a ofertá-las”, pontua.
Saiba mais aqui: Nova lei elimina exigência de vagas de garagem em edifícios no Recife.
A triplicação das áreas de preservação histórica, que passam de 5 km² para 17 km², com a criação de novas Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH) é um dos grandes trunfos da nova lei. Agora, são 47 áreas reconhecidas, como Morro da Conceição e Sítio do Pai Adão, classificados como Patrimônio Imaterial, e a Vila dos Comerciários, na Tamarineira, classificada como conjunto. Porém, ao redor da Vila dos Comerciários a limitação de gabarito caiu – antes, a área fazia parte da Lei dos 12 Bairros, que foi revogada. Com a nova lei, espigões poderão ser construídos da rua Guimarães Peixoto em diante, sentido Tamarineira, inclusive com a junção de várias casas.
A nova lei também aumenta para 277 os Imóveis Especiais de Preservação (IEP). São imóveis isolados, que possuem características únicas e não podem ser alterados ou demolidos. Entre os que entraram na lista estão o edifício Oceania, no Pina, cenário do filme Aquarius; a Casa Rosada, no Rosarinho; seis postos salva-vidas em estilo art déco das praias do Pina e de Boa Viagem, implantados na década de 1940; e a pousada Rosa e Silva, um exemplar do ecletismo do início do século 20.
Na lista há também imóveis que mal dão para serem apreciados por quem passa nas ruas, como a casa tipo Amorim – projetada pelo arquiteto português Delfim Amorim em 1963 – da rua Ageu Magalhães, no Parnamirim, que hoje tem muro alto e cerca de arames. A inclusão de novos imóveis também chama a atenção para a degradação sem qualquer ação da Prefeitura do Recife de edificações que já são IEP há décadas, como as casas modernistas da avenida Rosa e Silva e a bela casa na esquina da praça Doutor José Vilela, no Parnamirim, todas elas desfiguradas e depredadas.
Vila dos Comerciários agora é uma Zona Especial de Preservação Histórica
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroJornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org