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Os diários de Mércia Albuquerque, advogada de mais de 500 presos políticos

Samarone Lima / 28/08/2023
Mulher idosa, de cabelos loiros, fotografada do busto para cima, usando casaco sobre blusa preta e colares no pescoço, sorri para a câmera.

Crédito: Acervo DHNET

Em 1993, quando fazia as pesquisas sobre o assassinato do militante mineiro José Carlos Novais da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI do Recife em outubro de 1973, recebi uma informação importante da família Mata Machado:

“Procure a advogada Mércia Albuquerque. Ela conseguiu localizar o local onde o corpo foi enterrado, conseguiu fazer a exumação e mandou para Belo Horizonte”.

Parecia um delírio, uma advogada conseguir uma façanha como aquela, no auge da ditadura. Entrei em contato, agendei uma entrevista e fui recebido em um apartamento simples, no centro do Recife, onde tivemos três longas conversas.

Chamava a atenção o pouco espaço para móveis e coisas de sua vida pessoal, e a grande quantidade de pastas, repletas de documentos, cartas, relatos, que ela foi guardando, do período em que se especializou em defender presos políticos durante o regime militar. Além de material da advogada, havia seus escritos, diários que certamente tinham muito do que ela viveu e sentiu na pele, porque se tornou amiga de muitos de seus “clientes”, que muitas vezes não tinham como pagar por seu trabalho. Muitas vezes, ela era que dava alguma ajuda. Muitas vezes, sequer a família sabia onde eles estavam presos. Foi ameaçada de morte muitas vezes.

Acervo no RN e a força dos diários

Após a morte da advogada, em 2003, uma notícia pegou de surpresa os pernambucanos que conviveram com ela, ao longo de tantos anos. Seu marido, Otávio Albuquerque, por motivos afetivos, resolveu doar todo o material para o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, do Rio Grande do Norte, dirigido pelo economista Roberto Monte.

É um material valioso, que já rendeu dissertação de mestrado, tem inspirado uma peça teatral no Rio de Janeiro, e resultou no livro Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974, publicação da Editora Potiguariana, sob a coordenação do próprio Monte. O lançamento será hoje, às 18h30, na Universidade Católica de Pernambuco, durante o 8° Encontro de Comitês e Comissões da Verdade.

O livro tem 182 páginas, com inúmeras fotos do acervo da advogada. Na orelha do livro, o militante político pernambucano Marcelo Mário de Melo, que passou quase dez anos preso, resume a importância da advogada naqueles anos de repressão e prisões arbitrárias, muitas vezes sem qualquer notificação judicial: “Ela era um pronto socorro jurídico permanente”.

Só nos diários de 1973-1974, são citadas 100 pessoas, entre torturadores, delegados, carcereiros e pessoas conhecidas. “O material jurídico do acervo é imenso. Ela defendeu seguramente mais de 600 pessoas. Toda a sua atuação na Justiça Militar está registrada. Mas ela guardou muitas cartas bilhetes, telegramas, um material de toda a vida”, diz Monte.

Em 1998, lancei o livro , sobre a vida do mineiro José Carlos Novais da Mata Machado. Um dos capítulos, “A luta pelo corpo”, é todo sobre a batalha da advogada para encontrar o corpo do Zé, a pedido do pai do militante, o respeitado jurista mineiro Edgar de Godoy da Mata Machado. O militante foi assassinado sob torturas no DOI-Codi do Recife, em 28 de outubro de 1973, e enterrado como indigente no cemitério da Várzea.

Mércia conseguiu encontrar a vala, fazer a exumação do corpo e mandá-lo para Belo Horizonte, numa luta feroz com os agentes da repressão e da Justiça Militar.

Foi a pessoa mais corajosa que conheci. Se tinha medo, era segredo seu.

Leia alguns trechos do livro:

23 de abril de 1974 – “Gostaria de voltar a ser criança porque criança não tem passado. É maravilhoso não ter o que recordar por melhor que seja lembrança, deixa sempre aquela pontinha de saudade.”

19 de maio de 1974 – ”Sinto-me tão mal como se fosse morrer. E não pretendo por enquanto. Meu coração é um desgraçado está sempre me pregando peças. Odiarei a pessoa que suspeita do meu mal. Não quero viver respeitada por uma saúde delicada. Todos têm vindo a apressar os meus dias. Quero ser gente, não um vaso rachado em uma vitrine que ninguém se atreve a tocá-lo para não despedaçá-lo”.

24 de janeiro de 1974 – “Não sei se pare, não sei se recue, não sei se avance. Parar é deixar a luta, é covardia . Covardia maior, é recuar. O que me resta então a fazer? É avançar . Avançar pode trazer a morte, matar o que importa se certa estou eu da minha luta? Lutar e morrer, lutar é viver, viver é lutar. Muitas vezes é melhor morrer do que viver.
Conheço mortos vivos e vivos mortos. Serei morta-viva, não serei viva morta. Estou presente com meus amigos ausentes, em lembranças ternas, que ressuscitarão”.

  • O lançamento em Recife acontece nesta segunda-feira, dia 28 de agosto, às 18h30min, durante o 8º Encontro Norte e Nordeste de memória verdade e justiça, dia 28 as 18:30 na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), na rua rua do Príncipe.

Capa do livro publicado pela Editora Potiguariana. Crédito: Divulgação

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AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.