
por Gisele Meneses do Vale* e Júlia Sousa**
“(…) os vizinhos estavam brigando e ele bateu na mulher, eu não consigo ouvir isso e não sentir vontade de chorar, parece que eu sinto na pele tudo o que ela está sentindo”. É assim que relato de uma usuária de rede social nos salta os olhos e nos alerta para um pedido de socorro crescente nos últimos dias.
Não há dúvidas, pois, que para muitos a própria casa pode significar um porto seguro, um local de conforto e acolhimento. Mas, para diversas mulheres que sofrem violência doméstica, esse lugar pode configurar um verdadeiro pesadelo. Desde o início da pandemia desencadeada pela Covid-19, uma das recomendações prioritárias para impedir o avanço da doença é a quarentena e/ou o isolamento social.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a empresa Decode, houve um aumento em 431% de menções em redes sociais de brigas de casal, por vizinhos, entre fevereiro e abril de 2020. Isso referenda a tese de que há um crescimento da violência doméstica e familiar no período de quarentena, ainda que os registros oficiais de denúncias tenham decaído. Uma dúvida pode pairar sobre esse ponto: qual o motivo da redução dos registros de denúncias nos órgãos oficiais, haja vista o considerável aumento dos casos de violência doméstica?
Nessa questão, nosso alerta deve permanecer aceso já que muitas vítimas retomam o convívio com seus agressores, ficando expostas à toda sorte de violência. Noutro giro, nas atuais circunstâncias, se intensificam as dificuldades para uma vítima da violência doméstica acionar o sistema de proteção em casa quando ela tem, o tempo todo, a companhia do agressor sob o mesmo teto.
Some-se a essa dificuldade o fato de que se tiver de sair de casa terá de romper com o isolamento, expondo-se à doença e com menos acesso aos serviços públicos. Não é necessário muito esforço para imaginar o drama atual vivido em inúmeros lares brasileiros.
Assim, entre a cruz e a espada – em meio ao perigo de contaminação e à estada obrigatória no ambiente de violência – as iniciativas políticas e empreendedoras que utilizam as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) como instrumento de ação vêm se mostrando essenciais na frente de combate.
No que diz respeito à experiência internacional, a ativista chinesa Guo Jing contou à BBC que desde que as pessoas começaram a passar mais tempo em casa para prevenir a infecção por coronavírus ao longo da pandemia na China, mais mulheres noticiaram casos de violência que sofreram ou presenciaram. Inclusive, a hashtag #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic (#ContraViolênciaDomésticaDuranteEpidemia) foi usada mais de 3 mil vezes na rede social chinesa Sina Weibo com relatos de vítimas ou testemunhas.
Já na França, é possível que as mulheres em situação de violência façam a denúncia através de um canal online. Ademais, nesse mesmo país, há a opção de realização das denúncias em farmácias ou supermercados, a fim de facilitar o encontro de um ponto de apoio e acolhimento. Em casos em que não há acesso à internet, também é possível que a vítima envie uma simples e gratuita mensagem de texto (sms), com dizeres como cry for help, para os contatos disponibilizados pelo governo.
Essa última iniciativa, vale ressaltar, é de extrema importância visto que há um processo de alijamento de muitas mulheres em relação ao acesso à internet e às tecnologias da informação e comunicação em vários lugares do mundo. Esse fenômeno é conhecido como gender digital divide e somente replica a inequidade de gênero, que já conhecemos, para o ambiente digital. Ao contrário do que nos coloca o senso comum, a sociedade da informação, construída sobre a pauta da “Quarta Revolução Industrial ou Economia 4.0” não é tão democrática o quanto parece. Na verdade, enfrenta as mesmas questões que transversalizam e excluem diversos grupos sociais seja pelo gênero, pela raça ou pela condição econômica.
Insta pontuar, nessa linha, que os maiores números de casos notificados relativos à violência doméstica contra a mulher se concentram nos países de terceiro mundo e são relativos às mulheres negras. Sobre isso, há um direcionamento de esforços pautados no fomento das TICs pelos objetivos traçados na Agenda 2030 da ONU. Dentre eles, a disseminação tecnológica com vistas a promover a educação de qualidade (objetivo 4), a igualdade de gênero (objetivo 5) e a redução das desigualdades (objetivo 10).

Quanto ao Brasil, vários reflexos do isolamento já batem em nossas portas. De acordo com os dados fornecidos por uma corte estadual, o Tribunal de Justiça de Pernambuco, entre os dias 16 de março e 15 de abril, foram concedidas 898 medidas protetivas de urgência e no mesmo período foram recebidas 227 denúncias de casos de violência doméstica, inclusive, a orientação dada aos magistrados deste tribunal é a de que tais medidas protetivas devem ser prorrogadas a fim de que seja estendida a proteção a mulheres vítima de violência doméstica.
Notadamente, na escalada de violências contra a mulher por vezes o desfecho mais comum é o feminicídio. Pois bem, nesse ponto, basta apenas lembrar que, lamentavelmente, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio.
O outro sinal de alerta é que a violência doméstica não é somente uma violação às mulheres que são suas vítimas, mas também se configura como um problema de toda a sociedade em diversos aspectos.
As agressões atingem os direitos de crianças e adolescentes, que convivem com a violência dentro de suas casas. Não obstante, também se trata de um impasse econômico: aponta a UNICEF que a violência de gênero influencia diretamente nos valores de bens nos mercados de capitais. O custo global da violência contra as mulheres já havia sido estimado em aproximadamente 1,5 trilhão de dólares. Esse número só pode aumentar à medida que a violência aumenta agora e continua após a pandemia. Assim, reduzir a violência de gênero também é um investimento em estabilidade econômica.
Dessa forma e seguindo a experiência de alguns países que já enfrentam a disseminação do vírus há mais tempo, algumas iniciativas que se utilizam da tecnologia, no Brasil, para o combate ao vírus se mostraram de extrema importância.
Dentre elas, destaca-se a empresa Mete a Colher, que possui mais de 13.000 mulheres conectadas em 63 cidades do Brasil, por meio de um aplicativo de acolhimento e aconselhamento – jurídico e psicológico – voluntário. Além disso, a equipe dessa startup, fundada na cidade do Recife por um grupo de mulheres, também está trabalhando em uma base de dados para traçar o perfil dos casos de violência em todo o Brasil.
Outrossim, o renomado podcast Mamilos, presente em algumas plataformas de streaming, disponibilizou uma série de cinco episódios intitulada “Era uma vez”. Foram narradas algumas histórias e impasses de vítimas de diferentes perfis sociais e econômicos, de maneira anônima, como forma de difundir informações, reflexões e força para as ouvintes que estão passando por algum tipo de relacionamento abusivo e/ou violento.
Nessa linha, a rede de varejo Magazine Luiza, uma das maiores plataformas digitais de e-commerce no Brasil, também apoia diversas iniciativas empreendedoras e sociais no combate à violência doméstica, bem como possui um canal de denúncias através do seu próprio aplicativo, o Magalu. Essa funcionalidade pode ser acessada por qualquer pessoa e permite o contato direto com a Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal brasileiro.
No âmbito nacional, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, lançou recentemente o aplicativo Direitos Humanos BR para facilitar e fomentar os registros dos casos de violência doméstica contra a mulher e violência contra a mulher, preservando, sobretudo, o anonimato.
Cabe pontuar, ainda, que os canais de denúncia governamentais no tocante às violações contra as mulheres continuam em funcionamento nesse período de quarentena, a exemplo do Disque 180, bem como as Delegacias de Atendimento à Mulher para o devido registro e aplicação de medidas protetivas de urgência.
Nessa esteira, bom seria se também voltássemos nossos esforços para combater a violência contra a mulher com o mesmo empenho que nos prevenimos do coronavírus, já que a violência doméstica é também uma doença social presente nos lares de todo o mundo.
Posto tudo isso, a convergência entre aquilo que é privado e os valores coletivos se torna ainda mais necessária diante desse cenário. O setor público, a iniciativa privada, a academia e a sociedade civil organizada precisam, mais do que nunca, andar de mãos dadas no que diz respeito aos desafios acerca da violência doméstica. Precisamos ininterruptamente estar atentos e atentas às tantas vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres frente à essa pandemia, bem como quanto aos seus desdobramentos no tecido social.
* Advogada, mediadora Extrajudicial, pós-graduanda em Ciências Penais
** Mediadora de Conflitos, especialista em proteção dos direitos da Propriedade Intelectual