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Crédito: Rodrigo Baltar/Santa Cruz FC
por George Lucas*
As maiores torcidas organizadas do Náutico, Santa Cruz e Sport existem ou não? A resposta parece óbvia, mas não é assim tão simples, afinal para o Ministério Público, a Polícia Militar e as autoridades pernambucanas, a Torcida Jovem Fanáutico, a Torcida Organizada Inferno Coral e a Torcida Jovem do Sport simplesmente não existem. Isso porque tiveram seus respectivos CNPJs cancelados e foram oficialmente dissolvidas em 2020, depois de proibidas de ir para os estádios desde 2014.
Mesmo assim, as três têm sede, lojas, comercializam produtos, brigam entre si e ocupam setores específicos dos estádios, ainda que ninguém possa ir aos jogos usando camisas com seus símbolos ou nomes. No entanto, como elas “não existem”, o poder público não monitora esses grandes grupos de torcedores organizados, indiferença que contribuiria para a violência nos dias de futebol, impactando também os torcedores comuns, não organizados, que aos poucos também vão perdendo o direito de torcer.
Desde o começo da década passada, após a clara posição do Ministério Público Estadual favorável à extinção dessas três torcidas, artefatos utilizados por torcedores começaram a ser vetados nos estádios. Primeiro, foram as bandeiras de mastro, em seguida sinalizadores, esses proibidos nacionalmente, devido ao incidente da torcida do Corinthians na Bolívia, que vitimou um torcedor em 2012.
Até o rádio de pilha, usado por tantos torcedores nos estádios, foi vetado em 2022, pois, segundo a PM-PE, era necessária “prevenção à violência, devido ao risco de esses objetos serem arremessados ou utilizados em possíveis brigas de torcidas”. Após pressão da mídia, o rádio voltou a ser liberado. Antes do radinho, pela mesma razão durante seis anos (de 2009 a 2015) foi proibido tomar cerveja nos estádios pernambucanos.
Tantas restrições geraram mais protestos que resultados, a exemplo do movimento #liberaafesta. De fato, a festa foi liberada, mas de forma restrita. O Governo de Pernambuco, ao lado do Grupo de Trabalho de Futebol, que não inclui em suas reuniões torcedores, (apenas órgãos públicos, clubes, e a Federação Pernambucana de Futebol), liberou a volta das bandeiras com mastro e bateria, essa última autorizada desde o ano passado, mas com alguns limites a serem seguidos.
Curiosamente, há uma condição para a festa acontecer: não pode ser realizada nas gerais dos estádios (setor atrás do gol), onde ficam as torcidas organizadas, que, segundo as mesmas autoridades, sequer existem. Mais uma vez, o paradoxo.
Diretores da Torcida Organizada Inferno Coral, expressaram seu ponto de vista sobre essas restrições:
“Eles estudam tanto, mas só que quem vive é a gente. A gente sabe qual é a melhor forma de se fazer”, diz João Paulo, o JP, diretor financeiro. Em seguida, Cláudio BZC, presidente da torcida, Erivan, vice-presidente, e Raul, diretor, completam enumerando a série de artefatos presentes nos estádios que possuem potencial de perigo maior que um bambu (mastro da bandeira), como facas, espetos de churrasco e gás de cozinha, usados pelos comerciantes e gasoseiros em dias de jogo.
Os torcedores corais também criticam a “extinção fake” das organizadas: “Se um componente faz uma violência, Cláudio, que é o presidente, não pode responder, como fizeram no Rio. Eles fazem isso, excluem CNPJ, mas outros assumem ou se abre outro. Isso não vai acabar. A torcida organizada só se acaba se o clube acabar,”, fala JP.
Igor Moura, da Fanáutico, conta sobre os trâmites para conseguir entrar no estádio com materiais como bandeirão e faixas. “Sim, todo jogo, 48 horas antes a gente envia ofício com solicitação pro Choque (diz ele sobre enviar o documento real a ser enviado pela entidade “inexistente” para a Polícia Militar), mas só sabemos a resposta na hora do jogo. Cada um que se vire, sem diálogo”.
A falta de diálogo abre caminho para a violência por parte dos policiais em dias de jogos. Todos os dirigentes das três organizadas que falaram com este repórter – Igor, BZC, Erivan, Raul, JP, além de Carlos Renato, o Renatinho e Jefferson Moura, o Gel, da Torcida Jovem, responderam com bastante naturalidade quando perguntados se já sofreram violência nos estádios.
“O que eles fazem, não só com a organizada, mas com o povão, pai de família. Já começa na entrada do estádio, apertada”, conta BZC, da Inferno Coral, que também fala sobre agressões com spray de pimenta e intimidações por parte dos soldados da cavalaria. Renatinho, da TJS, demonstra posicionamento semelhante, afirmando que, atualmente, em todos os setores da Ilha do Retiro se vê cenas de truculência policial na entrada dos jogos.
Uma torcedora do Sport, sem vínculos com qualquer organizada do clube, ouvida pela reportagem, contou sobre tumultos causados pelo Batalhão de Choque no dia da final da Copa do Nordeste, disputada por Sport x Ceará. Na ocasião, a diretoria rubro-negra vendeu mais ingressos que a atual capacidade liberada de seu estádio, o que deixou vários torcedores do lado de fora.
“Todo mundo do lado de fora tinha ingresso, e tinha muita gente! A gente ficou espremido na entrada da arquibancada frontal e, quando deu 21h, simplesmente fecharam os portões e o Choque e a cavalaria começaram a ‘rebocar’ os torcedores para a Abdias de Carvalho, não deixaram ficar nem na pracinha. Além de que teve muita bomba e tiro a troco de nada”, conta a rubro-negra, que teve um amigo ferido por uma bomba de efeito moral no pé. Ela optou por não se identificar.
É claro que as três torcidas também têm sua parcela de responsabilidade. Não há como negar seus repertórios de provocações, estímulo à violência e sequência de ataques a rivais. “Não (sobre se essas músicas podem incentivar os componentes a brigar), e hoje em dia esses cantos estão proibidos dentro do estádio. Não pode falar o nome da torcida organizada. A gente preza por cantar pelo Náutico e incentivar o time em campo, esquecer os rivais”, diz Igor, da Fanáutico, também chamado de Iguinho. Ele completa: “Poxa, eu tento ao máximo esquecer o nome dos ‘alemão’ do outro lado. Meu negócio é apoiar o Náutico dentro de campo, a gente canta pelo time os 90 minutos”.
JP, da Inferno Coral, prefere relativizar o peso das as músicas. “Acho que não influencia, não. Os MCs de funk de São Paulo e Rio cantam o que vivem, por exemplo. Os das torcidas só estão cantando o que acontece. Cabe a cada um deixar se influenciar”. Raul, também da organizada tricolor, faz uma interpretação pragmática.”É um tipo de diversão. Eles lá fazem a mesma coisa e aí os daqui respondem. No mundo das organizadas isso aí existe. A violência não parte de uma música, já está impregnada”.
Um dos integrantes da Jovem do Sport explicou que as músicas são criadas por MCs querendo se promover, e que a diretoria da torcida não tem poder de veto. E também não parecem se importar em se ver associada à violência.
Se músicas com referências às entidades rivais não podem ser cantadas nos estádios, ninguém vê problemas nos gritos e músicas com versos homofóbicos. A exaltação da virilidade e masculinidade constante são características comuns a todas a quase todas organizadas do país, apesar de alguns dirigentes recifenses garantirem não fazer restrições ao público LGBTQIA nas arquibancadas ou na própria organizada.
“Independente da organizada, a gente respeita todas as classes, até porque isso é um crime. Já chegou gente aqui comprando material na loja e recebemos de forma normal, tratando com respeito”, é o que diz JP.
Pela TJS, Renatinho preferiu não adentrar ao tema, demonstrando indiferença, mas contou que, pessoalmente, não tem preconceitos, embora admita ser uma dificuldade impor um pensamento na torcida “por ser muito grande”.
Incomodado, Igor Moura, da Fanáutico, foi quem deu um posicionamento mais claro – e preconceituoso. Após pedir para a reportagem cortar a gravação e ter a pergunta reformulada, ele deu sua resposta. “Não mexendo com nós, tá de boa. Cada um no seu canto”.
É provável que a principal curiosidade a respeito das organizadas é entender o porquê de tantas brigas. O poder público parece nunca ter demonstrado preocupação em encontrar a raiz (ou raízes) do problema, mas, os próprios dirigentes das organizadas tentam demonstrar o caminho para se descobrir de onde vêm a natureza dos confrontos.
“Quando acabaram os bailes, eles se infiltraram nas torcidas, aí rolava muita briga. Mas nós mesmos, na torcida, intervimos nisso aí”, diz Erivan, da TOIC. De acordo com essa justificativa, no começo dos anos 2000, bailes funk eram populares nas comunidades do Recife, muitos bairros aproveitavam a ocasião para criar rivalidades e, assim, brigar. Tudo muito semelhante ao que acontece nas torcidas hoje.
As próprias representações de diferentes bairros no interior da Inferno chegaram a brigar entre si há alguns anos, o que exigiu intervenção da diretoria. De acordo com a versão desses torcedores, os protagonistas dessas brigas são jovens de periferia, sem acesso a espaços de lazer e cultura, que se identificam tanto com as organizações, que partem para violência para demonstrar superioridade. Algo que Raul, da torcida tricolor, define como o “ego da comunidade”.
Quais seriam consequências dessas brigas? A versão dos responsáveis pelas torcidas é diferente daquelas veiculadas pelas autoridades e pela mídia tradicional. Os dirigentes asseguram que, quando há confrontos, a diretoria contacta os monitores dos bairros, tentam entender o que aconteceu, e, se necessário punem os brigões. “A questão é que sem a ajuda das autoridades, que enxergam as torcidas como extintas, fica difícil prevenir”, afirma Gel, vice-presidente da TJS.
“A gente tem contato com todos os monitores de bairro. E isso é muito simples de resolver. A gente sabe de onde sai uma quantidade de pessoas muito grande, então o Choque pode fazer a escolta do bairro até o estádio. Mas não, eles só querem dar escolta a partir desse ponto (referindo-se à sede). A gente não vai acabar com a violência, mas tem ideias para minimizar ela”, explica o vice-presidente da torcida rubro-negra.
Entre os representantes das torcidas entrevistados, os torcedores do Santa Cruz e do Sport se mostraram mais dispostos a dialogar com os adversários, como já aconteceu no passado. Em 2015, Jovem e Inferno promoveram a campanha “Clássico da Paz,” com direito à música gravada pelos MCs das torcidas. Dois anos depois, foi a vez de Fanáutico e Inferno Coral protestarem juntas contra a Secretaria de Defesa Social e Federação Pernambucana de Futebol, por fazerem com que Náutico e Santa Cruz jogassem no mesmo dia na Arena de Pernambuco.
“Se for pro benefício da nossa entidade,nada mais justo que a gente sentar e conversar com Fanáutico e Inferno Coral, junto com a governadora, o Batalhão de Choque, os órgãos públicos”, diz Renatinho, da Jovem. “O diálogo, creio eu que se tiver a parceria entre as torcidas e os órgãos públicos vai melhorar muito. Porque o trabalho em conjunto ajuda a cada um dizer do que tá precisando […] A volta das entidades, o que for melhoria para Inferno, Jovem e Fanáutico, a gente tá disposto a se sentar com qualquer um”, conta BZC, da Inferno Coral.
O alvirrubro Igor foi reticente, dizendo que hoje não existe diálogo entre as três rivais, o que só ocorrer com intermediação da Anatorg (Associação Nacional de Torcidas Organizadas).
Durante as entrevistas, os dirigentes das organizadas guardam alguns ressentimentos. Um deles, repetidos por todos, seria o não reconhecimento da mídia aos projetos que tocam em suas respectivas comunidades. “Isso era um trabalho que deveria ser do governo, né velho? A gente já criou um projeto social para afastar a criançada da droga, que é o Timbu Fighters, onde damos aula de artes marciais. E aí a gente tá tirando as crianças da droga, até os próprios componentes, fazendo eles praticarem esportes”, diz o alvirrubro Igor, da Fanáutico.
“A TJS influencia a molecada a não ir para o crime por meio de ações sociais. A gente tem várias academias nos bairros, como no Ibura. Quando uma criança tá lá, são três, quatro horas de relógio ocupando a mente. A gente queria ser ouvido porque a sociedade e a mídia só mostram o lado da violência. Temos vários pontos que trazem recursos benéficos para a comunidade que não são divulgados, como ações sociais, treinamento, doação de sangue”, fala Gel.
“A mídia não mostra isso nunca. Ela vai mostrar simplesmente o lado negativo da torcida, que é um fato pequeno, mas que se torna grande e mancha o nome da entidade”, acrescenta Renatinho, presidente da TJS.
“O papel da Inferno Coral é o que a gente puder fazer, a gente faz. Como eu falei, a gente faz ação social. A gente sempre escuta pra ajudar, quem tiver precisando de ajuda em uma feira, qualquer coisa. Aqui a gente não tem essa de quem é rico ou quem é pobre. Aqui todo mundo é igual, aqui a ideia de todo mundo vale”, conta BZC.
O Ministério Público, instituição apontada como inacessível pelos torcedores, aceitou responder os questionamentos da nossa reportagem. Quem concedeu entrevista, por telefone, foi o promotor José Bispo, da Promotoria de Justiça do Torcedor. Ele relembra que a Promotoria de Justiça do Torcedor foi criada porque se fazia necessário um órgão que tivesse condições de exercer o Estatuto do Torcedor. “Tomamos medidas de cunho cível, como a proibição das organizadas, após clamor público. Todos acharam que seria a solução e percebemos que a sociedade queria isso, e o MPPE, com a ajuda do Governo Paulo Câmara e a SDS-PE, o fizemos em 2020””, explica José Bispo.
Ao ser perguntado se a exclusão do CNPJ das três maiores organizadas gerou efeito concreto na diminuição da violência e do porquê ainda existirem pessoas que dizem ser da TJF, TOIC OU TJS, visto que foram extintas, o promotor diz não entender “torcedores que ainda se dizem dessas entidades inexistentes”, e completa afirmando que os bons torcedores não sentem falta dessas torcidas, que, segundo ele, antes de serem dissolvidas, participavam de reuniões com o Ministério Público e demais órgãos.
O promotor também defende a eficácia das restrições impostas aos torcedores, não apenas aos organizados: Todo lugar requer regras de organização. Os maus torcedores arremessavam esses objetos no campo”, fala Bispo. Ele também completa, após ser questionado, que qualquer objeto arremessado no gramado rende punição. No caso, como prevê o Estatuto do Torcedor, prisão que varia de dois a seis anos.
A explicação dada por Bispo para o MP exigir do poder público o cadastramento biométrico dos torcedores organizados é de ordem financeira: “Em 2014, o Ministério dos Esportes ensaiou um plano para cadastrar todos de forma biométrica, mas não seguiu adiante pois chegou-se à conclusão que era muito caro”, informa o promotor, que também acrescenta que TJF, TOIC e TJS chegaram a enviar, antes da extinção, uma lista com seus membros associados para o Choque. O documento, segundos os policiais, não tinha nenhuma credibilidade.
No Brasil existe um estádio com reconhecimento biométrico: a Arena da Baixada. O Athletico Paranaense arca com as despesas do equipamento para todo seu estádio de 40 mil lugares. O clube também conta com o apoio logístico do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), Secretaria de Segurança Pública do Paraná (SESP), Instituto de Identificação do Paraná, Detran-PR e a Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar). Palmeiras e Goiás também arcam com a identificação de torcedores em seus mandos, utilizando reconhecimento facial.
A reportagem também tentou contato com o Batalhão de Choque para obter respostas a questionamentos sobre indisponibilidade para diálogo com as organizadas e vários relatos de truculência nos estádios, mas não obteve, até o momento, nenhum retorno.
*Jornalista
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