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Polícia Federal recebe denúncia de carga de cocaína no porta-aviões fantasma

Inácio França / 03/11/2022
Navio porta aviões no centro da foto soltando uma fumaça escura. Ao fundo, em segundo plano, a vista de uma cidade

Crédito: Wikimedia Commons

Existe a possibilidade de haver algo mais do que substâncias cancerígenas e resíduos radioativos no casco do porta-aviões que permanece próximo ao litoral pernambucano. A Polícia Federal e as autoridades portuárias pernambucanas receberam denúncias, realizadas por meio de canais oficiais, de que o navio-fantasma, vendido pela Marinha do Brasil para uma empresa turca, pode estar sendo usado para traficar cocaína da América do Sul para a Europa.

As denúncias foram anônimas, mas tanto a PF quanto o Governo de Pernambuco chegaram a responder dando ciência do encaminhamento dado. A Marco Zero, porém, teve acesso aos e-mails repassados por meio da pessoa autora da denúncia e está em contato com ela, porém manterá seu nome em sigilo por questões de segurança. Ao longo deste texto, com sua autorização, será usada a inicial “M”. É possível revelar, porém, que se trata de profissional integrante de uma rede de jornalistas turcos independentes que investigam, há anos, os problemas ambientais causados pela indústria do desmanche de navios na Turquia.

Recentemente, as relações dos estaleiros que desmontam navios em “fim de vida” e de integrantes do governo turco com o tráfico internacional de drogas veio à tona.

A denúncia foi formalizada junto aos gestores do porto de Suape e da ouvidoria do Governo de Pernambuco no dia 5 de outubro, data em que o navio chegou à costa do estado e foi impedido de atracar no porto de Suape. O motivo para ser barrado foi o mesmo que o impediu de passar pelo estreito de Gibraltar, porta de entrada do Mar Mediterrâneo, e de ser recebido pelos portos turcos: não possuir um inventário de contaminantes por laboratório reconhecido internacionalmente.

O texto da denúncia feita por M. vai direto ao ponto: “se você permitir que este navio seja ancorado em seu porto, por favor, faça uma busca adequada por narcóticos”. Mais adiante, a explicação: jornalistas investigativos na Turquia estão discutindo se as empresas de demolição de navios usam embarcações em fim da vida para o tráfico de drogas. Não são apenas rumores. Algumas testemunhas, trabalhadores no estaleiro de sucatas de navio, relataram isso”.

No final, M. pede que a informação seja levada a sério e acrescenta um argumento bastante lógico: “uma vez que o navio é extremamente perigoso, ninguém realmente quer entrar e por isso seria uma escolha para esconder drogas”.

O texto original está em inglês. A tradução acima é por nossa conta.

No alto, a resposta do Governo de Pernambuco à denúncia feita por M. (abaixo)

No dia 19 de outubro, a ouvidoria respondeu informando que encaminhou o caso para a Capitania dos Portos e a Polícia Federal. Enquanto isso, o jornalista também fez contato com a Polícia Federal em Brasília, insistindo na necessidade de se realizar uma busca por drogas, além de enviar links de reportagens publicadas por jornalistas e veículos turcos.

A Marco Zero entrou em contato por Whatsapp com o assessor de comunicação da Polícia Federal em Pernambuco, Giovanni Santoro, pedindo confirmação se há alguma investigação em andamento, porém não houve resposta. Extraoficialmente, autoridades do governo de Pernambuco confirmaram a veracidade dos documentos exibidos nesta reportagem.

O que se diz na Turquia

O primeiro a tornar pública a informação de que navios levados para desmonte são usados para levar grandes quantidades de cocaína para a Europa foi o jornalista Erk Acarer (a partir de agora vamos mencionar vários nomes desconhecidos do leitor brasileiro), em setembro de 2021. Acarer, âncora de um programa de TV e à frente de um canal de YouTube, talvez seja o mais respeitado repórter investigativo da Turquia. Mas foi em sua conta no Twitter que ele escancarou o assunto.

Escancarar é a palavra certa. Ele não apenas apontou o que estava acontecendo, como revelou os nomes dos empresários e políticos à frente do esquema criminoso. Sua fonte foi o mafioso Sedat Peker, sujeito condenado por dezenas de crimes diferentes, e que fugiu para os Emirados Árabes depois de receber a última sentença de prisão. Longe da Turquia, ele se tornou uma celebridade em seu país ao criar contas nas redes sociais e YouTube onde passou a contar os podres da elite do país.

O esquema foi revelado com detalhes. A cocaína seria escondida sob placas de aço soldadas de maneira a criar novos compartimentos, específicos para esconder a droga. O desmonte desses locais não seria feito pelos operários comuns, que cortam o restante dos cascos das embarcações. Uma turma de desmanche “especial” é levada a bordo para retirar a carga de cocaína. Muitas vezes, essa equipe realiza a extração da droga antes mesmo da embarcação atracar no porto de Aliaga, pois é comum os navios a serem sucateados passarem alguns dias aguardando a vez no mar Egeu, numa área de “piscinas”.

De acordo com os relatos de Erk Acarer, quem estaria por trás do tráfico seria Erkam Yildirim, filho de um ex-ministro dos Transportes, e seus cúmplices e sócios, os irmãos Adem e Osman Simsek. Eles são donos do estaleiro Simşekler Gemi Söküm, onde acontecem os desmanches. O grupo enriqueceu contrabandeando petróleo da Venezuela para a Turquia durantes os anos de bloqueio econômico ao país latino-americano, interrompido após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Durante o processo, perceberam que o negócio de comprar e rebocar navios desativados na América do Sul poderia ser ainda mais lucrativo com outro tipo de carga.

Após a denúncia, Yildirim iniciou um processo judicial contra Peker por injúria e calúnia, que respondeu avisando que iria liberar novas fotos e informações sobre as ligações do empresário com o crime organizado.

Outro jornalista turco, o criador de conteúdos e youtubber Cevheri Güvein faz uma ligação direta entre o casco do porta-aviões São Paulo e Erkam Yildirim, o chefe da quadrilha, segundo Acarer e sua fonte, o mafioso Peker (só para lembrar, caso você tenha se perdido).

De acordo com Güvein, foi Adem Simsek quem fez a compra do navio e forneceu garantias ao governo turco de que o negócio seria seguro e o “país ganharia muito dinheiro com ele”.

Em nossa troca de mensagens, Güvein recomendou à Marco Zero a leitura dos artigos do veterano jornalista Ertugrul Barka, do portal Izgazete, da região metropolitana de Izmir. Em um dos seus textos, Barka explica que não faltam imagens e declarações que comprovam que, por trás da aquisição do porta-aviões brasileiro, estaria o mesmo Yildirim, acusado de tráfico internacional de drogas.

Sabendo que o mafioso Sedat Peker costuma lidar bem com a imprensa, tentamos entrevistá-lo para verificar se ele possuída informações específicas sobre o porta-aviões São Paulo, mas recebemos a informação de que ele está hospitalizado e que, por isso, seu perfil no Twitter está sendo usado apenas para retuitar conteúdos de terceiros. Erk Acarer, contudo, informou que o governo dos Emirados Árabes estaria controlando suas interações nas redes sociais.

Desmonte de navios no porto de Aliaga, Turquia. Crédito: reprodução CNN

Reação popular contra o São Paulo

Em Aliaga e no distrito metropolitano de Izmir, a reação à possibilidade do porta-aviões brasileiro ser desmontado na área portuária começou com uma reunião de representantes da sociedade civil. No dia 3 de agosto, engenheiros, Médicos e Advogados se juntaram a ativistas pela democracia e ambientalistas para pressionar o governo a cancelar a permissão para receber o navio. Àquela altura, a sucata do porta-aviões já havia saído da base da Marinha no Rio de Janeiro. A notícia de que um “navio de amianto” estava a caminho inflamou a região.

Os “navios de amianto” são embarcações de guerra construídas numa época em que não se sabia que a substância poderia provocar câncer e outras doenças mortais. O material era utilizado no isolamento térmico do casco e de vários componentes dos navios: caldeiras, turbinas, válvulas, bombas, sistemas de vapor, sistemas de aquecimento, motores e geradores.

Por isso, há, no mínimo, pouco menos de 10 toneladas de amianto nos porões do São Paulo. Cevheri Güvein menciona cálculos de que pode haver pelo menos 77 vezes mais em seu casco e em suas peças, o que daria mais de 750 toneladas de um material extremamente tóxico e cancerígeno a ser descartado sabe-se lá onde.

A esse risco é preciso somar a possibilidade, levantada por Ertugrul Barka, de existirem resíduos radioativos, pois quando a embarcação pertencia à marinha francesa e se chamava FS Foch, foi utilizado durante anos no transporte de materiais radioativos e bombas nucleares entre a França e o Atol de Muroroa, no oceano Pacífico.

Por causa disso, em dois dias a resistência contra o navio se tornou um “movimento de massas”, com direito a comícios e manifestações de rua com milhares de pessoas, como noticiou um jornal local. O prefeito metropolitano de Izmir juntou-se aos protestos. A palavra de ordem que mobilizou multidões foi “Izmir não é a lixeira do mundo”.

Dias depois, o ministério do Meio Ambiente, Urbanização e Mudanças Climáticas cedeu e cancelou a autorização, o que fez o navio ser barrado no estreito de Gibraltar e obrigou o rebocador a dar meia volta em direção ao Brasil. A embaixada brasileira na Turquia foi informada de que o casco do porta-aviões não seria bem vindo naquele país.

Comício em Izmir contra a chegada do porta-aviões brasileiro. Crédito: OzenRay Media

Do Rio para Suape

Quando estava se aproximando do Rio de Janeiro, a tripulação do rebocador recebeu mais uma ordem que, até hoje, as autoridades portuárias e ambientais de Pernambuco tentam entender: o navio deveria ser levado para o porto de Suape, onde seriam realizados os testes de seguranças e o obrigatório inventário de produtos contaminantes a bordo. No dia 5 de outubro, a Agência Pernambucana de Meio Ambiente recomendou que Suape não permitisse que o casco do navio atracasse no porto pernambucano.

Sem ter para onde ir, o São Paulo está há um mês sendo puxado pelo rebocador Alp Centre perto do litoral sul do estado, numa trajetória de inúmeros vai-e-vem no sentido sul-norte-sul, de 12 a 20 quilômetros da costa.

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AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.