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Poluição e hidronegócios ameaçam tradição e sustento da pesca artesanal no Recife

Raíssa Ebrahim / 10/08/2022

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“Uma certa vez, eu fui para uma reunião e disseram que essa classe é muito invisibilizada. Como?! Porque quem passa pela Ponte do Pina vê ali os pescadores e as pescadoras pescando. Simplesmente eles é que deixam a gente invisíveis para não nos darem o que é nosso de direito”. Essa fala é Ana Mirtes Ferreira, da Ilha de Deus, comunidade tradicional pesqueira do Recife. Ela e tantas outras mulheres e homens das águas, junto a organizações da sociedade civil, realizaram, nesta terça-feira, 9 de agosto, uma barqueata para reivindicar políticas públicas neste Ano Internacional da Pesca e Aquicultura Artesanais.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) calcula que a pesca artesanal fornece até 85% do pescado consumido em alguns países da América Latina e do Caribe e é a base da segurança alimentar de milhões de famílias. Localmente, a atividade está bastante prejudicada pela poluição de rios e mangues, pelo avanço urbano e imobiliário e o cercamento das águas por parte dos hidronegócios.

Os movimentos locais estimam que, no Recife, esse percentual de participação da pesca artesanal no mercado gira em torno de 70%, embora as estatísticas pesqueiras tenham sido esfaceladas no Brasil nos últimos anos. Na Ilha de Deus, por exemplo, mais de 80% das famílias obtêm sua renda da pesca artesanal, estimando-se, segundo a pesquisa Morada de Peixe, de 2019, um movimento anual em torno R$ 2,4 milhões. Contraditoriamente, essa é uma categoria que praticamente não conta com políticas públicas direcionadas e sequer aparece no orçamento nem nos planos urbanísticos da cidade, que deu as costas aos rios e mangues, apesar de uma convivência marcante e histórica com as águas.

Pernambuco conta, desde 2015, com a Lei 15.590/2015, que institui a Política da Pesca Artesanal, e que, em 2017, teve aprovado o Decreto 45.396/2017, que regulamenta sua execução. No entanto, de lá para cá, poucas políticas foram efetuadas. As que foram, observam as comunidades e organizações, “parecem ser desenhadas sem observar as reais necessidades”.

A barqueata desta terça (9) se transformou numa passeata na Rua da Aurora, área central, com parada em frente ao Palácio do Campos das Princesas (sede do governo estadual), onde foram despejadas garrafas pet retiradas do rio como forma de chamar a atenção para a poluição. Como o governador Paulo Câmara (PSB) estava em agenda externa, no Sertão, a passeata seguiu para Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), onde terminou, após muita pressão e embate, com uma reunião e alguns encaminhamentos importantes (saiba quais no final da matéria).

Garrafas pet foram retiradas do rio e colocadas em frente ao Palácio do Governo para protestar contra a poluição das águas. Crédito: Arnaldo Sete/MZ

A pauta de pescadores e pescadoras artesanais de Pernambuco é bastante extensa e exige desde políticas de saúde para as mulheres até a liberação de interdições de acesso e proibições da pesca e navegabilidade na região do Cabanga Iate Clube e do Hotel Marina, que está sendo erguido no Bairro do Recife como parte do projeto Porto Novo Recife.

Essas áreas foram cercadas com estacas e estruturas rígidas impedindo o acesso de pescadores e pescadoras, acarretando, consequentemente, um prejuízo financeiro, além de simbólico. A categoria reclama que sequer foi previamente informada e consultada. A Marco Zero entrou em contato com a Prefeitura do Recife e a Capitania dos Portos para obter informações sobre essas interdições e aguarda o retorno.

Foto aérea mostra área cercada na região do Cabanga Iate Clube. Crédito: Rodrigo Lima/Ação Comunitária Caranguejo Uçá

A pescadora Ana Mirtes, comenta que a cada dia mais companheiras estão sendo acometidas por inflamações de pele e infecções ginecológicas. “A gente passa horas ali dentro daquela água poluída tirando pescado”, explica. “Mas muitas vezes a gente vai para um posto de saúde e dizem que é tipo virose ou qualquer outra coisa menos doença ocupacional”, reclama. Isso sem falar na falta de creche, gerando múltiplas jornadas para elas, e a exposição excessiva ao sol, entre outras questões, com efeitos diretos na aposentadoria dessas profissionais.

Confira o manifesto completo, assinado por várias mãos, e todos os pontos de reivindicações para os governo federal, estadual e municipal.

“A negação dos modos tradicionais de ser, viver e produzir das comunidades pesqueiras faz parte da estratégia que favorece o atual modelo econômico desenvolvimentista, fundamentado na obtenção de lucros para indústrias e megaempreendimentos e na exploração máxima da natureza, aprofundando as vulnerabilidades e desigualdades sociais nas vidas de povos e comunidades tradicionais e fazendo com que os corpos e corpas, em sua maioria negros, paguem as contas com sistemáticas violações de direitos”, diz um trecho do documento.

Racismo ambiental e mudanças climáticas

Passeata de pescadores e pescadoras artesanais na Rua da Aurora, área central do Recife. Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Na barqueata, os cartazes e as faixas cravaram: essa negligência tem nome, chama-se racismo ambiental. Nesse sentido, as comunidades pesqueiras são bastante impactadas pelas inundações e enchentes, como se viu em maio e junho deste ano. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o Recife é a 16ª cidade do mundo e a primeira do Brasil mais ameaçada pela emergência climática e pelo avanço do nível do mar. São famílias em constante estado de alerta por causa de episódios de catástrofes, mas não só.

Como destaca o manifesto, as comunidades tradicionais pesqueiras são atingidas também pelo aumento da frequência de chuvas intensas fora dos períodos esperados no ano, piorando a vulnerabilidade econômica dos territórios. O sururu/marisco, por exemplo, quando chove muito forte, não consegue engordar e não se desenvolve o suficiente, ficando assim pouco rentável. Por isso, exige a categoria, é preciso discutir formas de mitigar os impactos ambientais e econômicos, uma vez que não há um manejo que garanta a proteção das espécies através de sua preservação, como acontece, por exemplo, com a lagosta, que, quando no período reprodutivo e de desenvolvimento, o governo federal assegura o pagamento do seguro defeso.

Após pressão, categoria consegue compromisso de audiência pública

Uma comissão de 15 representantes, entre pescadores, pescadoras, movimentos e organizações sociais, conseguiu se reunir, após a barqueata desta terça (9), na Seplag-PE, com a coordenadora do Chapéu de Palha, Maria de Oliveira. O programa, bastante divulgado em ações de propaganda do governo de Pernambuco, é outro ponto de debate entre poder público e comunidades. Ele atende a categoria, mas, para a pesca, tem alguns entraves de teto de pagamento para quem recebe o Auxílio Brasil (Bolsa Família) por causa da legislação federal. Além disso, nem de longe, chega a ser uma complementação de renda justa diante dos problemas enfrentados por pescadores e pescadoras.

Um dos principais encaminhamentos do encontro foi o compromisso de realizar, com urgência, uma audiência com o governador Paulo Câmara (PSB) e representantes dos seguinte órgãos e secretarias: Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas-PE), Seplag-PE, Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária (Sara-PE), Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco (Seres-PE), Instituto de Terras e Reforma Agrária (Iterpe), Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) e Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA). O objetivo da audiência é avaliar e debater as demandas garantindo representatividade das organizações e comunidades tradicionais.

Além disso, ficou garantida a consulta prévia, livre e informada nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) antes da implementação de empreendimentos e políticas que impactem as comunidades tradicionais pesqueiras, incluindo o processo de revisão do Chapéu de Palha da Pesca Artesanal.

Em nota, a Seplag-PE informou apenas que “Na reunião, os representantes apresentaram suas reivindicações acerca de questões sociais, ambientais, assistenciais, de desenvolvimento urbanístico e de políticas públicas para os pescadores e informaram que irão protocolar a pauta para que os encaminhamentos necessários sejam feitos pelas secretarias responsáveis por cada área”. A pauta foi protocolada ao final da reunião.

Vereador protocola PL sobre a pesca artesanal no Recife

Esta terça (9) também foi marcada pelo protocolo, na Câmara do Recife, do Projeto de Lei (PL) da “Política de Reconhecimento e Desenvolvimento Socioambiental das Comunidades Tradicionais Pesqueiras”, de autoria do mandato do vereador Ivan Moraes (Psol) e construído a partir da escuta de pescadores e pescadoras de todas as comunidades tradicionais da cidade, com participação de movimentos e organizações sociais.

“Recife é uma cidade que, todo mundo aprende na escola, teve sua origem ligada à pesca, uma cidade pesqueira, morada de peixe, mas a pesca não é reconhecida nem como atividade econômica nem como profissão de muita gente que deu origem a essa cidade”, justifica Ivan. No início de setembro, haverá uma audiência pública na câmara para apresentar e debater o PL.

Dentro dos limites da atuação do legislativo municipal, o texto traz diretrizes para que a prefeitura tenha condições de implementar projetos específicos para a pesca, uma vez que facilita, por exemplo, a construção de políticas a partir do reconhecimento. Por exemplo, nos equipamentos de saúde da família e na construção de planos urbanísticos para os territórios.

ATUALIZAÇÃO

Em nota, a Marinha informou que “a Capitania dos Portos de Pernambuco (CPPE) é o Agente da Autoridade Marítima com responsabilidade sobre as águas jurisdicionais do estado, o que inclui o canal de navegação da Bacia do Pina. Conforme as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM-7/DPC), não é permitido fundeio de embarcações nos canais de acesso ao porto e nas proximidades das instalações do ancoradouro por comprometer a segurança da navegação e o ordenamento do espaço aquaviário. O Cabanga Iate Clube solicitou, no ano de 2019, a autorização da CPPE para dragagem a fim de remover o material acumulado no canal de acesso ao Clube. A dragagem foi autorizada e o serviço foi finalizado no primeiro semestre de 2022. Quanto à área delimitada em frente ao Hotel Porto Novo SA, refere-se à construção de píeres autorizados pela CPPE, no que tange o ordenamento do espaço aquaviário e a segurança da navegação, que constam nas Normas da Autoridade Marítima.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com