Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Por que Lula deve restaurar mecanismos de combate à corrupção e transparência desmontados por Bolsonaro

Marco Zero Conteúdo / 22/12/2022
Lula (homem branco, de cabelos, barba e bigode brancos), fotografado de baixo para cima, em fundo escuro, usando paletó azul escuro e camisa clara, diante de um microfone.

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

por Pedro Paz*

O tema da corrupção foi, mais uma vez, expressivo nas majoritárias brasileiras deste ano. Para se ter uma ideia, nos dois turnos, de 16 de agosto a 30 de outubro, o assunto foi citado em 140 das 8.184 postagens do clã Bolsonaro nas redes sociais digitais Facebook, Twitter, Youtube, Instagram, Telegram e Pinterest, segundo levantamento realizado no banco de dados Bolsodata, na plataforma Metamemo, sistema que coleta, armazena, processa e visualiza as publicações de qualquer perfil.

Nos 30 dias seguintes, houve um apagão, uma queda vertiginosa de publicações da família que representa a extrema direita no país e que, agora, com menos poder e aliados, teme ter seus perfis suspensos. Foram exatamente 273 e nenhuma com referência ao assunto, o que reforça, que nunca houve uma preocupação real com a questão e que a temática tem sido instrumentalizada para desqualificação de opositores e instigar e fornecer material de campanha para sua base, com fins apenas eleitoreiros.

Até porque o clã Bolsonaro nunca foi flor que se cheire. Os integrantes da família são envolvidos em inúmeros casos de corrupção. Em contraponto aos seus sistemáticos ataques, o Instituto Lula listou 17 episódios em outubro, de propina no pneu a ônibus superfaturado, passando por rachadinha e 51 imóveis comprados com dinheiro vivo.

De todo modo, a corrupção deve permanecer em pauta na esfera pública brasileira e não só pelo fato de terroristas brancos e de classe média desconsideraram a anulação das condenações do Lula e insistirem em não aceitar o resultado do pleito. Sob o fantasma da Lava Jato, que culminou na sua prisão de 580 dias, o presidente eleito se tornou alvo de críticas por viajar à COP27 em um jatinho do empresário José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp e dono da QSaúde, preso em julho de 2020, em um desdobramento da operação liderada pelo ex-juiz federal Sérgio Moro.

Nesta transição entre governos, também já foi apontado que a equipe de transição de Lula tem ex-ministros presos ou denunciados por corrupção, como Guido Mantega e Paulo Bernardo. Em seu discurso de diplomação, no dia 12 de dezembro, Lula foi acusado de silenciar sobre a temática. Em entrevista à Folha de SP, na quinta-feira, 15, a deputada federal reeleita Tábata Amaral (PSB-SP), da base do Lula, cobrou dele combate à corrupção. Afinal, como deve ser tratada a corrupção no governo Lula 3?

Para o professor associado do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), José Henrique Artigas de Godoy, o tema da corrupção deve ser enfrentado de forma racional e republicana, ou seja, de maneira habitual e democrática, adequada aos parâmetros modernos e institucionais, no sentido de restaurar mecanismos de transparência e de controle desmontados pelo governo Bolsonaro.

Seguindo uma plataforma de promoção de accountability, no entendimento de Artigas, deve ser recomposta a plataforma Transparência Brasil, de acompanhamento de gastos do governo em tempo real, assim como devem ser derrubados os decretos de sigilo, que contraditam o princípio republicano. Na mesma direção, devem ser recompostos os meios de garantia de acesso à informação e reforçados os instrumentos de controle da Controladoria-Geral da União (CGU) e das corregedorias das polícias.

Não obstante, o papel de controle, no ponto de vista do cientista político, não pode se dar apenas com esforços do Executivo, visto que o Ministério Público (MP) e o Judiciário também devem ter ações de recomposição ou aperfeiçoamento de mecanismos de controle. Contudo, segundo José Henrique Artigas de Godoy, nenhuma reforma do Judiciário está em pauta e não há que se ter esperanças de exercício do controle por parte do Ministério Público Federal, ao menos não enquanto Augusto Aras permanecer à frente da Procuradoria Geral da República. Afinal, ele já deixou evidente não ter nenhum interesse em investigar as centenas de denúncias apresentadas ao órgão que dirige.

“De forma absolutamente nítida o referido procurador vem, desde o início de seu mandato, agindo como se fosse um representante do governo e não do Estado, como prescrito na Carta constitucional, de forma que sua ação vem sendo omissa, leniente, complacente e, em muito grau, cúmplice das reiteradas ilegalidades executadas pelo presidente e seus aliados”, critica Artigas.

José Henrique de Godoy. Crédito: Acervo pessoal

Na avaliação do também líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Pensamento Social e Político Brasileiro, também não há como esperar que, nestes poucos dias antes do fim do mandato de Bolsonaro, seja dado início à investigação de denúncias encaminhadas à mesa diretora da Câmara sobre crimes de responsabilidade executados pelo presidente, visto que, após mais de 150 denúncias, o presidente Arthur Lira não levou a cabo qualquer ação no sentido de apurar denúncias de corrupção.

“Não o fará no apagar das luzes do governo. Também não se pode esperar que órgãos de controle, como o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), exerçam seus papéis de controle como prescreve a Constituição e as normas reguladoras do MP. Estes órgãos jamais executaram ações efetivas de controle. Desde suas criações, ambas as instituições não promovem accountability, não executam controle e não punem os membros de suas corporações”, desaprova o professor e pesquisador da federal paraibana.

Artigas de Godoy destaca que esses órgãos não fomentam meios de transparência, de controle ou responsabilização. “São órgãos a serviço dos interesses corporativos dos membros do MP e da magistratura e não dos interesses da República, chancelando toda sorte de abusos de poder ou corrupção, fomentando a impunidade e, com isso, estimulando a ação ilegal reiterada dos membros das corporações que deveriam controlar, como já comprovado em estudos publicados por reconhecidos acadêmicos que estudaram sistematicamente as ações do CNMP e do CNJ desde a criação destas instâncias que deveriam ser de controle, mas nunca assumiram, de fato, este papel”.

Assim, se o Legislativo, via Congresso e Tribunal de Contas, não teve qualquer ação republicana de controle desde o governo Temer, não há que se esperar que agora passe a ter, na opinião de Artigas. E quanto à próxima legislatura, na concepção dele, não há como saber de antemão qual será a ação dos novos deputados e senadores, o que em grande medida dependerá da recondução ou não de Lira e Pacheco à frente das mesas diretoras da Câmara e do Senado, respectivamente.

“Se não há nenhuma indicação de que o Legislativo ou o MP venham a executar efetivamente seus respectivos papéis até, pelo menos, a substituição de Lira e Aras, tampouco pode-se esperar uma mudança de procedimentos de órgãos como o CNMP e o CNJ, restando apenas a expectativa de que os esforços do novo governo conduzam a um reforço dos meios de controle e responsabilização, alterando a composição da Polícia Federal (PF), da CGU e das Corregedorias, tornando-as mais efetivas no combate à corrupção, contraditando a omissão interessada, complacente, anuente e cúmplice de crimes contra a administração pública, como caracterizada nos últimos anos, sob os governos de Temer e, principalmente, Bolsonaro”, aponta o acadêmico.

Na análise de Artigas de Godoy, pode-se esperar do próximo Executivo uma ação mais condizente com o combate à corrupção, contudo, nada sugere que o mesmo possa ser afirmado quanto às perspectivas futuras de controle a serem executadas pelo Legislativo, pelo MP ou pelo Judiciário.

“Sem reformas que permitam um efetivo papel de controle do CNMP ou do CNJ, só poderemos esperar destes órgãos mais do mesmo, qual seja, mais impunidade e corporativismo, na contramão da accountability. Espera-se uma melhora relativa no tangente ao exercício da transparência, controle e responsabilização, mas apenas na arena das ações do Poder Executivo pois, no campo dos demais Poderes, infelizmente, teremos certamente que conviver com a complacência com o crime por parte de agentes públicos, inclusos promotores, procuradores e magistrados”, finaliza o cientista político.

Uma espécie de panaceia

Tássia Rabelo de Pinho é professora-adjunta do mesmo departamento e programa de pós-graduação em que Godoy leciona. Na visão dela, Bolsonaro mobiliza o discurso anticorrupção tal como Carlos Lacerda mobilizava contra Getúlio, o PSDB contra o PT e o próprio PT, na sua primeira década e meia fazia em relação à elite política.

“Trata-se de uma espécie de panaceia, causadora de todos os males que, caso venha a ser enfrentada, resolverá todos os problemas do país, o que sabemos não ser real. A corrupção precisa ser investigada e punida, e não tratada como espetáculo e trampolim eleitoral”, afirma a docente.

Tássia Rabelo de Pinho recupera que o pleito de 2022 guarda muitas diferenças em relação ao anterior, mas também semelhanças. A primeira diferença notável, não apenas em relação ao anterior, mas em relação à toda história do Brasil, foi a disputa entre o atual presidente da república e um ex-presidente, fato inédito com resultado também inédito, posto que nenhum candidato no cargo de presidente jamais perdeu a eleição.

Outra diferença que ela destaca é em relação às condições em que Bolsonaro chegou à disputa. Aquele candidato de um partido nanico, com poucos segundos de TV e rádio, que dizia que não faria o que chamava de “toma lá dá cá” em relação aos partidos e atacava o Centrão, não existia mais.

“Bolsonaro entrou no jogo e, após ficar dois anos sem partido, se filiou ao PL do Valdemar da Costa Neto. Entretanto, mesmo com a máquina, a caneta, o orçamento secreto, recursos vultosos e o próprio PL, Bolsonaro seguiu conseguindo se fazer reconhecer como um candidato anti-establishment. Algo que foi fundamental na construção da sua persona no pleito anterior e para a sua conexão com aqueles que são contra 1tudo isso que está aí’”, examina a professora da UFPB.

Tássia Rabelo de Pinho explica que a narrativa anticorrupção serviu ao aumento do antipetismo, a esse ressentimento de antigos apoiadores do PT, mas não está ancorada na concretude dos fatos e pode ser facilmente escanteada em nome de outros aspectos que constituem a liga do Bolsonarismo. “O que quero dizer é que a corrupção tem um papel importante do ponto de vista retórico, para justificar as posições tomadas, mas não me parece ser o fator de amálgama do bolsonarismo”.

A professora e pesquisadora da UFPB reconhece que, quando há investigações, há também um maior acesso à informação em relação à corrupção, que não necessariamente significa o aumento do fenômeno, mas da sua exposição. Entretanto, para ela, essa é apenas uma parte da história.

“Não podemos deixar de lembrar do papel que o oligopólio da mídia cumpriu ao longo de quase duas décadas na espetacularização de investigações tratadas como sentenças, e na ausência do questionamento em relação aos abusos cometidos ao devido processo legal. A solução para isso não é simples, particularmente porque hoje a produção de conteúdo não é mais monopolizada pelos veículos de comunicação tradicional que há muito deveriam ter sido regulamentados.”

A disseminação de fake news e a lógica imediatista e superficial das redes sociais contribuem, na concepção de Tássia Rabelo de Pinho, para o aprofundamento dessa lógica que, se antes, visava a audiência, para além de interesses diretamente econômicos e políticos, agora está ancorada na economia da atenção, nos clickbaits (ou “caça-clique”, conteúdo da internet que é destinado à geração de receita de publicidade on-line) e, mais uma vez, em interesses econômicos e políticos.

Tássia Rabelo de Pinho. Crédito: Acervo pessoal

Especificamente sobre Bolsonaro, a cientista política julga que ele não é uma ameaça e sim um agente de desconstrução da democracia. “Ao defender torturadores e a ditadura civil-militar brasileira, aprofunda ainda mais o déficit que temos em relação ao direito à memória, verdade e justiça. Ao questionar a legitimidade do processo eleitoral e se calar diante da vitória de Lula, coloca uma sombra sobre o sistema dado que, como aponta Dahl, o consenso em relação às regras do jogo e o reconhecimento da derrota por parte dos perdedores são elementos fundamentais para continuidade da democracia”. O Dahl mencionado pela entrevistada é o norte-americano Robert Dahl, cientista político da Universidade de Yale, falecido em 2014.

Para além desses fatos, ela ressalta inúmeras atitudes durante sua gestão que poderiam ser consideradas antidemocráticas, o que inclusive é reconhecido pelo relatório do Freedom House. “De maneira sintética poderíamos citar o sigilo de cem anos, a desconstrução de mecanismos de participação social, os diversos incentivos, retóricos e materiais, à violência política, intimidações à Suprema Corte, entre outros”.

A defesa da democracia, ainda que tenha sido parte central do processo de mobilização de parte das forças progressistas, é um conceito abstrato para grande parte das pessoas, eleitoras de Bolsonaro ou não, entende a professora. “Por mais que existam setores fascistas dentre aqueles que apoiam o presidente derrotado, parte considerável da sua base vota em função de outros aspectos que constituem seu discurso, tais como a defesa da família, da religião, o populismo penal”.

Crise ética e estética

De modo geral, as 140 postagens do clã Bolsonaro nas redes sociais sobre corrupção, durante as eleições deste ano, visaram desqualificar a campanha do Lula, com uso de imagens de divulgação do opositor ou do jornalismo de referência como a Folha de S. Paulo. Eram publicadas em diferentes horários, principalmente à noite, quando a base mão estava mais em horário de trabalho e, consequentemente, disponível para disseminar as mensagens. A depender da rede social, as reações ultrapassavam a casa das 400 mil, com mais de 30 mil comentários e compartilhamentos, com a ajuda, evidentemente, de influenciadores e apoiadores.

Para Isabella Valle, Professora Adjunta do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-graduação de Comunicação da UFPB, a atuação de Jair Bolsonaro em redes sociais digitais pode ser caracterizada por uma crise ética e estética, que permeia conteúdos deliberadamente falsos e contraditórios e que ludibria sobretudo um tipo de público não nativo do ambiente digital. “São sugestões, montagens, negações, pouco sutis, que visam a convencer e incutir o estado de crise nas pessoas. Ele instaura o caos, a desconexão, e vem caoticamente se colocar como solução, como única conexão possível”.

No entendimento dela, o discurso anticorrupção nas comunicações do Bolsonaro em redes sociais digitais é hipócrita propositadamente porque cria associações rápidas e fáceis para o juízo popular (tipo lula-presidiário ladrão), apaga qualquer transparência de sua gestão e performa como se o tema não abrangesse nenhuma complexidade.

Os algoritmos das redes sociais, inclusive, reforçam a chegada de certo discurso a públicos-alvo específicos, no entanto tivemos nova resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que acelerou a retirada de fake news de sites e redes sociais, um importante legado destas eleições. No entanto, Isabella Valle afirma que falta educação digital.

Isabella Valle. Crédito: Acervo pessoal

“Temos uma era pós-massiva na comunicação funcionando ainda sob uma mentalidade de massa. Por isso ainda afeta deste modo. Não acho que isso é verdadeiro para qualquer público. Os jovens, nativos digitais, já entendem melhor como é viver na era da pós-verdade, o que atenua a força das fake news. Mas o pensamento moderno, massivo, ainda é predominante e tudo que cola nele serve como uma luva para disseminar falsidades”.

Acusação de censura à rádio Jovem Pan e de suposto favorecimento ao ex-presidente Lula nas inserções de rádio no Nordeste mostraram que meios de comunicação tradicionais como o rádio ainda são relevantes e retomam a necessidade de debate sobre a regulação da mídia, em um contexto de desertos de notícias e de 30 milhões de pessoas sem acesso à internet.

“O rádio é uma mídia superimportante, nunca deixou de ser, inclusive ganha força com a cultura de podcasts. A oralidade é a forma de comunicação mais amiga, mais simpática. A falsa ideia de censura é fruto de um descaso governamental em relação à regulação da mídia. Há uma revolução midiática em curso e uma crise também das instituições tradicionais, não do jornalismo em si. É preciso repensar tudo, liberar a imprensa, mas mantendo seu compromisso público, que é informar, checar, mediar”.

Iniciativas de checagem de fatos ganharam destaque nestas eleições também. Contudo, principalmente nos debates televisivos, eleitores cobraram que o que é dito passe por checagem instantânea. Na avaliação da professora e pesquisadora da UFPB, a checagem em tempo real é possível porque normalmente os fatos apresentados nos debates são previsíveis. “Mas esse não seria o ‘futuro’ do jornalismo, porque [a checagem] é sua própria alma, desde sempre, sua permanência, sua sobrevivência, seu sentido de existir”.

Em algum momento, nós, eleitores, parecíamos incomodados, exaustos e, em algum grau, adoecidos com uma campanha tão longa, agressiva e com excesso de informações. “O mundo vive uma era dos excessos, de trabalho, de informação, de consumo. Isso tudo nos tira do eixo, do centro e afeta porque nos deixa vulneráveis. É menos custoso ir pelo caminho mais fácil, que demanda menos energia, depois de investirmos tanta força na validação de nossa existência neste mundo, nesta era”.

*Pedro Paz é jornalista e doutorando em Antropologia pela UFPB e produziu esta reportagem especial com uma bolsa da Metamemo, em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Uma questão importante!

Colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossa página de doação ou, se preferir, usar nosso PIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).

Apoie o jornalismo que está do seu lado.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.