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Imagem: acervo André Cutrim
Diante das políticas desenvolvidas pelos militares na região durante os 21 anos de ditadura civil-militar, a preocupação do presidente Jair Bolsonaro e dos generais que o cercam com a suposta ameaça à soberania brasileira na Amazônia parece apenas retórica. A presença de empresas multinacionais e especuladores estrangeiros nunca foi tão forte quanto nos governos instalados após o golpe de 1964.
Coordenador do escritório da organização Fase na Amazônia, o historiador Guilherme Carvalho não tem dúvidas: “Essa conversa de receio com a internacionalização é uma farsa, um engodo. Foram os militares que aprofundaram a interferência estrangeira na Amazônia com o Jari, a Volkswagen e as mineradoras, por exemplo”.
Os dois exemplos lembrados por Carvalho entraram para a história como grandes fracassos.
O primeiro foi o Projeto Jari, do norte-americano Daniel Ludwig, milionário que, em 1967, conseguiu 200 milhões de dólares no BNDES (que, na época não tinha o S de social na sigla, pois era chamado de Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) para comprar milhões de hectares de terras no Amapá e importar do Japão uma fábrica de celulose completa, além de uma termelétrica, e uma mineração de bauxita.
Instalado em terras brasileiras com recursos brasileiros e isenção de impostos, Ludwig revelou-se um péssimo gerente.
Nos arquivos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), há exemplares dos jornais Movimento e Coojornal, de setembro de 1978 com reportagens que acusavam o general Golbery do Couto e Silva, então chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, e o então secretário particular do presidente, major Heitor de Aquino Ferreira, de praticarem tráfico de influência em favor das atividades de Daniel Ludwig no Brasil. Na época, as atividades do Jari eram responsáveis por 37% do déficit comercial brasileiro acumulado entre janeiro e outubro de 1978, cujo valor total alcançava 784 milhões de dólares.
O projeto foi fatiado e, em 1982, 23 empresários brasileiros o compraram.
A Volkswagen foi outra que acatou o apelo dos militares para participar do plano de aceleração da Amazônia, a esquecida Operação Amazônia, que será melhor apresentada alguns parágrafos abaixo.
Em 1973, a montadora alemã menosprezou sul do Pará para instalar um megalomaníaco projeto para produzir gado com técnicas supostamente modernas e exportar carne para Japão, Estados Unidos e Alemanha. Deu tudo errado.
A “modernidade” ficou na propaganda. A Volks realizou queimadas tão extensas, devastou porções de mata e submeteu centenas de pessoas ao trabalho em condições análogas à escravidão que, logo, chamando a atenção do nascente movimento ambientalista europeu. Em 1986, conseguiu vender as terras a empresários paranaenses por 25% do valor que pediam.
“O capital já internacionalizou a Amazônia há muito tempo. O que Bolsonaro quer agora é radicalizar, abrir completamente, dizendo estar fazendo o oposto”, denuncia Guilherme Carvalho.
Ford foi a primeira derrotada pela floresta
Antes da Volks, a Ford já havia conduzido um projeto desastroso. Em 1927, o governo paraense concedeu o direito de exploração para a empresa de Henry Ford plantar seringais e,sem pagar um centavo de imposto de exportação, fornecer borracha para os pneus dos carros que produzia. Mais de cinco milhões de seringueiras foram plantadas por agrônomos americanos que não entendiam nada do clima equatorial. A produtividade era baixa e os capatazes tentavam melhorá-la exigindo mais dos caboclos brasileiros, que se revoltaram a ponto de obrigar os americanos a fugirem para a mata. Em 1945, a invenção da borracha sintética enterrou o projeto de vez. A Ford foi embora, deixando para trás o patrimônio e dívidas trabalhistas que foram pagas pelo tesouro público, brasileiro, claro.
Para o coordenador da Fase, a política dos militares para a Amazônia era – e continua sendo – fruto da visão de quem se percebe como colonizador. “Na ditadura, os militares enxergavam a Amazônia como os portugueses enxergavam o Brasil, como uma colônia de onde seria retirada matéria-prima para o desenvolvimento da metrópole. Se o Brasil está na periferia do capitalismo, nós estamos na periferia da periferia, somos a colônia da colônia”, afirma Guilherme.
Segundo ele, os gestores e formuladores das políticas públicas federais herdaram esse ponto de vista. Tal herança chega à Amazônia na forma de ações e políticas públicas que não pensam as especificidades da região e de quem vive nela.
O exemplo escolhido por Guilherme para demonstrar o quanto os gestores brasileiros desconhecem a Amazônia beira o surrealismo: “Em Santarém, lugar onde a temperatura ao longo do ano nunca fica abaixo dos 30 graus, a Dilma Rousseff inaugurou um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida com sistema de aquecimento da água do chuveiro por energia solar no teto. O projeto tinha sido usado em algum lugar frio, construíram aqui sem adaptar, o que encareceu o valor das casas”.
Apesar do exotismo do exemplo, Guilherme Carvalho entende que a melhor tradução para a relação colonialista que o Brasil mantêm com a Amazônia está nos grandes projetos de hidrelétricas e rodovias. São decididas em Brasília, sem a participação da sociedade e com a concordância de governantes sempre dependentes dos recursos federais, para atender às necessidades da indústria e do consumidores do restante do país.
O economista e professor de Gestão Ambiental do Núcleo de Estudos do Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (NUMA/UFPA), André Cutrim Carvalho, recorda que “o ponto de partida para a internacionalização do capital na Amazônia foi a Operação Amazônia”.
Esse programa governamental, lançado logo nos primeiros anos da ditadura, foi descrito na época como um programa de “aceleração do desenvolvimento da Amazônia”. Leis foram adaptadas, terras públicas foram postas à venda e recursos públicos disponibilizados para empresários brasileiros ou estrangeiros abrirem indústrias e empreendimentos agropecuários na região.
Um “álbum” recolhido por Cutrim durante seus estudos sobre a relação entre o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola dá uma ideia clara de como os militares lidavam com o território. A publicação de 1967, assinada pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e pelo governo do Pará, cujo governador indicado pela ditadura era o tenente-coronel Alacid Nunes, mais parece um portfólio para vender produtos, no caso, os rios, as terras férteis e os recursos naturais. Assim, sem meias palavras.
“O álbum é uma amostra do desenvolvimento a ser implantado à força. A Operação Amazônia não fazia qualquer menção aos interesses ou cuidados com os povos tradicionais, principalmente os indígenas e caboclos ribeirinhos. Não há uma linha falando sobre as condições de vida dos milhões de seres humanos que já viviam aqui. O foco é no desbravamento, como se fosse um enorme vazio sem gente”, lamenta o economista.
O álbum, claramente direcionado para empresários do eixo Rio-São Paulo carrega um indisfarçável tom racista e xenófobo nos textos que falam da necessidade de evitar a “internacionalização demográfica” da “planície verde”. No entanto, na página anterior louvava as iniciativas do industrial Isaac Benzencry, um judeu marroquino cuja família chegara em Belém no início do século XX e fez fortuna com a tecelagem e beneficiamento da juta no Amazonas.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.