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Crédito: Oyama Bastos
Pelo menos 300 famílias que vivem da pesca artesanal nos municípios do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca estão novamente sob ameaça em Suape, no litoral sul de Pernambuco. O projeto de construção de um terminal privado de minério de ferro na Ilha de Cocaia, já previsto no plano diretor do complexo industrial e portuário, começou a ganhar contornos de realidade em dezembro passado.
Pescadores e, sobretudo, as mulheres pescadoras que vivem da mariscagem (a coleta de mariscos) temem que as intervenções do porto a destruição de sua fonte de sustento e renda. Também reclamam da falta de comunicação oficial sobre o projeto e reivindicam uma consulta prévia às comunidades, instrumento legal previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e assegura que comunidades tradicionais precisam ser “consultadas de forma livre, informada e prévia”.
A bela e turística Ilha de Cocaia é um pedaço de terra e mangue em plena área portuária e que teve seus contornos atuais definidos no final da década de 1970 com a dragagem do istmo de Cocaia. Foi uma das primeiras grandes intervenções no complexo a afetar significativamente a atividade pesqueira na região.
Antes, essa área era formada por uma faixa de terra contínua, repleta de manguezais e restinga. Os rios Massangana, Tatuoca, Merepe e Ipojuca desaguavam no oceano formando um sistema estuarino de extrema relevância ambiental, social e cultural.
Para entender o que pode acontecer com a Ilha de Cocaia, é preciso antes entender um outro projeto. No final de 2021, após mobilização do governo de Pernambuco, de políticos e empresários, o Ministério da Infraestrutura (Minfra) autorizou a mineradora mineira Bemisa, uma das maiores do Brasil no ramo, a construir e explorar uma ferrovia de 717 quilômetros ligando Curral Novo, no Piauí, ao Porto de Suape. Trata-se de um projeto orçado em R$ 5,7 bilhões e que pode gerar milhares de empregos.
A ferrovia da Bemisa apresenta-se como uma alternativa viável à lendária Transnordestina, uma obra que tinha a promessa de baratear o custo logístico no Nordeste, mas que começou em 2006 e se arrasta sem conclusão até hoje.
O investimento da Bemisa nessa ferrovia torna-se viável caso a Ilha de Cocaia seja transformada num terminal privado de minério, o que possibilitaria a movimentação de cerca de 20 milhões de toneladas de minério por ano em Suape.
Mas, para isso, seria preciso transformar Cocaia numa área privada, retirando-a da chamada poligonal do Porto Organizado de Suape, sob jurisdição do Governo Federal desde a federalização dos portos, iniciativa do governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Em dezembro, quando o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, assinou a autorização para a ferrovia da Bemisa, ele também deu início ao processo de consulta pública para que a ilha de Cocaia seja retirada da poligonal.
Não é só o Governo Federal que demonstra interesse no assunto.
“A confirmação desse projeto ferroviário entre o Piauí e o Porto de Suape é uma vitória de todos os pernambucanos. Temos trabalhado em parceria com a Bemisa para concretizar essa obra pelas indiscutíveis vantagens de Suape e, mais do que nunca, esse investimento está em um caminho irreversível para a sua concretização já nos próximos anos. A ferrovia vai cortar o Estado de ponta a ponta e será mais uma grande vantagem logística para Pernambuco, com a criação de milhares de empregos em setores diversos”, avaliou, na época, o governador Paulo Câmara (PSB).
O diretor-presidente de Suape, Roberto Gusmão, também comemorou na ocasião: “O que também nos anima em todo esse processo é que a ferrovia não trará benefícios apenas com o transporte de minérios para Suape, pois há uma infinidade de novas possibilidades de negócios para diversas cargas, como grãos e veículos, por exemplo. O benefício não será apenas para Suape e para Pernambuco, mas sim para toda a região Nordeste.”
A partir daí, pescadores e pescadoras entraram em estado de alerta. Preocupados e indignados, passaram a contar com apoio e assessoria jurídica de entidades representativas e organizações socioambientais como a Colônia Z-8, Associação Quilombola Ilha de Mercês, Fórum Suape – Espaço Socioambiental e o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
“O que a empresa Suape quer mais dos pescadores? Já estão querendo matar nossa alma, nosso corpo, nosso espírito, Porque, quando eles vêm com essas propostas, os pescadores ficam doentes. Sem garantia do sustento, sem poder fazer o que gostam, sem poder passar o ofício que têm para os filhos. Porque eles estão fazendo isso? O que eles querem mais da gente? A gente não aceita isso não. Aquilo ali era tudo mangue. Tudo, tudo, tudo. A gente anda ali desde muito cedo. Eles estão acabando com tudo. Eles tão pisando nos pequenos, mas eles não esqueçam que existe um Deus maior”, desabafa emocionada uma pescadora de 61 anos que não quis se identificar por medo de represálias da administração do porto.
“Suape acha pouco o que ela já fez? Acabou com o manguezal, acabou com a maior parte das croas, acabou com tudo que foi área da gente pescar. Isso não pode existir. Depois que eles acabaram com tudo, aquela ilha ali é a única coisa que a gente tem. Aquela área que restou é a única coisa que ainda podemos usar para tirar nosso marisco, nosso alimento. Ela acha pouco o tanto de mangue que ela derrubou? Ela acha pouco matar o rio?”, indaga um pescador de 57 anos, nascido na praia de Suape e que pesca desde os 12 anos. Ele também pediu anonimato.
“Os pescadores sobrevivem dessa ilha (Cocaia). Pegam caranguejo, siri, aratu, ostra, marisco, pesca de camboa. Se acabar com aquilo, acabou. A ilha é berçário de peixes, vai prejudicar até os pescadores que pescam em alto mar”, explica a presidente da Colônia Z8, Gicleia Maria da Silva Santos. “Já tem pouco manguezal e agora querem acabar com o pouco que tem”, alerta.
Juntas e representando os interesses da comunidade pesqueira, as entidades participaram da consulta pública que se deu de forma online e teve prazo encerrado no fim de janeiro. Na manifestação conjunta, repudiaram o que consideram “como mais um processo de desrespeito e de invisibilização das comunidades tradicionais atingidas por Suape”.
Também evidenciaram “a consternação diante do fato de que até o momento as entidades representativas dos povos que utilizam a área para a pesca artesanal não foram contactadas, sequer informadas oficialmente, dos planos previstos para a Ilha de Cocaia. Muito menos procedeu-se à consulta prévia a esses povos, desrespeitando-se, mais uma vez, a Convenção 169 da OIT”.
As entidades também alertaram: “o polígono do porto organizado tornou-se uma área de exclusão da pesca, o que fez com que as comunidades passassem a conviver com o medo constante de serem perseguidas e criminalizadas ao darem continuidade ao ofício da pesca na localidade. A situação vem sendo tratada junto ao Ministério Público Federal, no âmbito do qual se busca excluir as áreas de pesca do polígono do porto organizado e/ou compatibilizar de alguma forma a atividade portuária e a continuidade da atividade de pesca”.
Mesmo com as restrições impostas, as comunidades pesqueiras mantiveram as atividades na área delineada do porto organizado por uma questão de sobrevivência e por entender que a instituição dessa poligonal se deu de forma ilegal, uma vez que desconsiderou a existência dessas pessoas e respectivas territorialidades.
Uma das assessoras jurídicas do Fórum Suape, Luísa Duque informou que, até o momento, as entidades não tiveram acesso ao projeto de implantação do terminal de minério de ferro. “Tendo em vista que se trata de um território tradicional usado pela pesca artesanal há gerações, antes mesmo da chegada de Suape, nós entendemos que uma consulta pública não é suficiente. Isso precisa chegar às pessoas. Não pode ser um espaço de manifestação por e-mail somente. É preciso haver uma metodologia de diálogo, inclusive de forma participativa, com a comunidade”, diz.
Na consulta pública online, foram apresentadas sete contribuições na fase de recebimentos de sugestões, sendo que quatro delas têm igual teor, feitas em conjunto pelas entidades citadas aqui na reportagem.
Em nota, o Minfra explicou que “a proposta de retirada da Ilha de Cocaia da área do Porto Organizado de Suape ocorreu porque o desenvolvimento de um projeto integrado ferroviário-portuário seria economicamente mais sustentável por meio de autorizações de uso”.
E detalhou: “O modelo de autorização de uso na área portuária é incompatível legalmente com a figura do porto organizado, pelas limitações de que terminais de uso privado sejam implantados nas áreas dos portos organizados. Assim sendo, para que não haja restrições de ordem legal para a implantação de um projeto ferroviário-portuário no local, no modelo de autorização de uso, é necessário que todas as superfícies para a consecução do mesmo estejam fora da jurisdição do porto organizado, inclusive a Ilha de Cocaia”.
De forma resumida, a autorização de uso é um ato administrativo em que um governo faculta o uso de determinado bem público a particular.
Sobre os próximos passos após a consulta pública e questões referente a autorizações e licenças, o ministério disse que “o andamento depende das ações da própria empresa, o que inclui a obtenção dos devidos licenciamentos para execução do projeto junto aos órgãos competentes. Isso inclui autorização para que a empresa implante, além da ferrovia, o terminal de minério de ferro pretendido na Ilha de Cocaia, em Suape, para escoar a produção de suas jazidas localizadas no Piauí”.
Sobre a Consulta Prévia, prevista pela OIT, o Minfra comentou que “a consulta pública em curso segue o rito administrativo previsto no ordenamento jurídico brasileiro. O Ministério da Infraestrutura decidiu, porém, abrir a oportunidade a todos se manifestarem no curso do processo de revisão da área do porto organizado de Suape, inclusive os povos indígenas e tribais”.
Diferindo as comunidades pesqueiras, o ministério afirmou ainda que as pessoas foram comunicadas e contactadas oficialmente sobre os planos de mudança na Ilha de Cocaia e os investimentos na área. Como comprovação, colocou que “entidades representativas e pessoas físicas da comunidade local apresentaram contribuições na consulta pública”.
A Marco Zero também não teve acesso ao projeto da Bemisa.
Suape, por sua vez, não concedeu entrevista sobre o assunto. Por nota, afirmou que “a empresa Suape informa que as questões relativas à consulta pública realizada recentemente sobre a Ilha de Cocaia cabem à Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários (SNPTA) responder”.
“Já o Plano Diretor 2011 de Suape, devidamente aprovado e de conhecimento de todos, prevê um terminal de minérios na Ilha de Cocaia”, finalizou.
Desde a implantação do complexo industrial e portuário, as populações locais têm sido atingidas por sucessivos impactos e conflitos socioambientais, especialmente para quem vive da pesca e passou a ver a própria soberania alimentar ameaçada. O custo do desenvolvimento econômico pregado por Suape, uma empresa pública, tem sido alto nas últimas décadas.
A Marco Zero produziu, em 2020, o premiado especial “Suape às avessas”, que mostra como o complexo aprofundou as desigualdades no Litoral e na Mata Sul de Pernambuco, região marcada pela exploração secular da cana-de-açúcar.
“Eles já acabaram com a pescaria da gente. Não pescamos mais nem metade do que era em outros tempos. Os braços de mar do rio Tatuoca eles fecharam, acabaram com os manguezais dali e a gente sabe que os peixes desovam no rio e vão para o mar. Ali era tudo uma coisa só, os rios todos livres se juntando com o mar. Aí dragaram tudo, derrubaram o mangue, tamparam o rio e o mangue. Há 40 anos, era peixe demais nessa região. Suape vai matar a gente de fome. Isso não pode se acabar, é nossa sobrevivência. Esse lugar é patrimônio histórico, não pode se acabar não”, protesta outro pescador que também preferiu não se identificar.
Recentemente Suape começou a reverter, ainda de maneira parcial, o embarreiramento que bloqueou o fluxo do importante rio Tatuoca e asfixiou o ecossistema local para dar lugar a uma estrada. A via foi usada para levar materiais e máquinas para construir o Estaleiro Atlântico Sul. A barreira ou enrocamento, como também é chamado, era para ter durado cerca de um ano apenas, mas durou o tempo da omissão socioambiental de Suape: 14 anos. Durante todo esse tempo, a comunidade quilombola Ilha de Mercês alertou para os prejuízos causados.
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com