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Quanto vale sete minutos com Tom Zé?

Laércio Portela / 05/10/2016

Tenho certeza que ele viu no meu rosto um risco de frustração. Segurou dois segundos de suspense e falou no meu ouvido: “Mas eu admiro o Chico Buarque”. Tem gente que xinga, né Tom? Mas a gente admira o Chico.

Descendo as escadas do segundo andar da Caixa Cultural, eu só pensava naquela generosidade. Porra, o cara tá na esquina dos 80, pulou, cantou, beijou, abraçou e autografou por duas horas e ainda faz esse carinho ao repórter inoportuno?

30 minutos ali em pé vendo Neusa e Tomás vendendo cds, vinis, songbooks e, do lado, meninos e meninas sorridentes (quase eufóricos) na fila para cumprimentar o velho miúdo, ainda mais sorridente e eufórico do que todos ali.

“É bom isso para ele. Se chegar direto agora no hotel ele não dorme. Vai ficar andando de um lado para o outro. Tem muita energia”, sussurra Tomás, o jovem produtor. Eu só posso concordar.

Da asma à macrobiótica

Não há mais fila. Todos se foram. Eu me aproximo: “Tom quero te fazer três pedidos… Dois, agora”. O primeiro era um abraço (ele foi mais ligeiro do que as palavras), um autógrafo e uma entrevista. “Tá bom, querido”. Querido!

“Eu sempre fui muito doente. Desde que eu nasci. Primeiro eu tinha asma, depois eu tinha gripe toda semana, depois comecei a delirar de 15 em 15 dias. Era um desespero para minha mãe”. É a resposta que recebo para a pergunta sobre tanta intensidade no palco.

Fico sabendo que em seguida vieram as dores no estômago, o Tai Chi, a macrobiótica e um homem que não come fora de casa nem bebe. Daí tanta vitalidade? “E tem uma coisa que funciona muito. É esse negócio de você também ganhar energia quando você oferece. Você dá e recebe de volta. É impressionante”.

Eu não vou mentir, estou mesmo impressionado, Tom.

O palco da Caixa é pequeno. O artista, imenso.

Como foi imenso o tempo de 30 anos sem tocar numa novela da Globo. ♫♫ Óooo, senhor, cidadão. Eu quero saber… Com quantos quilos de medo, com quantos quilos de medo, se faz uma tradição? ♫♫

Como foi imensa para ele a surpresa de ver Xique-xique dançada pelo Grupo Corpo para bilhões de telespectadores na cerimônia de encerramento das Olimpíadas sem ter citados os nomes dos autores.

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Tom Zé associa sua vitalidade no palco à doença na infância e juventude. “Tive que me cuidar pra chegar até aqui. E você também ganha energia quando oferece. Você dá e recebe de volta”

E esse disco, aí? Canções Eróticas para Ninar? Tem a ver com a descoberta da sexualidade lá em Irará, não tem? “O sexo é uma coisa que tá todo dia na frente da gente, no sonho, na fantasia, na segregação, no pecado, no divino…”.

Tá mesmo. “Essa coisa que Hannah Arendt chamou de poder não-violência, poder que é diferente até de força. E é uma diferença difícil de tratar porque tá todo imantado, todo sujo de agressão contra a mulher…”

A Mulher é uma força

Fico sabendo que o disco comemorativo dos 80 anos quase não saiu. “Deu um trabalho danado, você não imagina. Foi uma luta. Quase que eu resolvo não fazer”.

Não fazer? Porque tudo que tá relacionado com sexo tá subentendido que a mulher é um ser inferior. Então é um cuidado terrível para conseguir fazer”.

Tom fala com propriedade. Ele que há pouco mais de uma hora representava no palco um deus pagão, masculino-feminino-feminino-masculino, vestindo uma calcinha vermelha sobre a calça bege. Sem medo e sem vergonha.

“A gente tem que respeitar e ter carinho. Afinal de contas, a mulher é uma força. A mulher é um poder”.

Um poder que está se impondo em meio à tragédia, me atrevo a dizer ao artista. Nestes tempos sombrios que vivemos, de corrosão política e ataque às identidades, o feminismo é o que melhor nos aconteceu, fortalecido nos corações e nas mentes da novas gerações…

Ele não me deixa terminar a frase.

“É, mas, ao mesmo tempo, a Folha de São Paulo publicou essa semana uma pesquisa Datafolha em que um em cada três brasileiros acha que quando a mulher é estuprada a culpa é dela”.

Como você fica ao ler isso? “Assombrado”.

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O disco comemorativo dos 80 anos quase não saiu. O artista “assombrado” condena o discurso da inferioridade da mulher

Tento lembrar do breve roteiro que tracei no caderninho que trago no bolso da calça. Lembrei. O jornalismo. Eu preciso perguntar a ele sobre o jornalismo.

“Eu fui jornalista. Eu fui um fracasso. Cobria a Viação e Obras Públicas da Prefeitura de Salvador. O secretário nunca dava a mínima bola para mim. Os outros repórteres chegavam na hora, eram atendidos na hora e eu ficava lá sentado… mofando… Eu trabalhava para o Jornal da Bahia. Até que um dia eu desisti porque eu era mesmo um fracasso”.

Chico, o golpe e uma gargalhada

Carinhoso, Tom coloca as mãos nas minhas costas e vai me conduzindo pelo corredor que leva à porta do camarim. “Você me prometeu três perguntas e parece que vai fazer trinta”. Só mais uma, prometo.

O impeachment? “Todo mundo sabe o que é isso. Uns têm uma opinião, outros têm outra. Mas todo mundo sabe o que é isso. Eu não vou me meter, dando opinião. Eu sou uma pessoa que convivo com pessoas de todas as opiniões. Não é honesto eu me meter nessa coisa. Não é honesto”.

Tenho certeza que ele viu no meu rosto um risco de frustração. Segurou dois segundos de suspense e falou no meu ouvido: “Mas eu admiro o Chico Buarque. Admiro muito o Chico, a coragem dele. Mas eu sou dos que fica calado”.

É não, Tom. Agora mesmo antes do show eu li sua entrevista para o Diário de Notícias, em julho. E o título do texto não deixa dúvidas: “Hitler está vivo no Brasil. São os que estão no poder”.

Penso na repórter que, como eu, começou a entrevista perguntando sobre música, mas queria mesmo era provocar Tom com perguntas cabulosas sobre política. Para ela, ele não se calou. “Minha filha, realmente é um golpe, todo o mundo sabe. A gente vive uma ditadura mascarada. Um governo fazendo tudo o que uma democracia não faz e que não quer ser chamado de ditadura”. Assim mesmo, nesse Tom!

“Foi. Já falei sobre isso. Já falei. Em Portugal. Eu pensei que Portugal era longe. É sério, quando eu falei em Portugal eu pensei que estava fora do mundo, aí no outro dia estava em todos os jornais aqui”. Não deu pra segurar, gargalhamos juntos eu, Tom, Tomás e Sibely – a funcionária de uma empresa terceirizada da Caixa que fez a vez de “santa protetora” do artista nessa sua passagem pelo Recife.

Despedida

Eu sei, era a última pergunta. Apenas me despeço (“Boa sorte, segue com essa tua força, Tom.”). Ele sorri (“Força para você também”). Dá tempo para um último abraço… e vai entrando no camarim, mas para, dá meia volta e segura meu braço.

“Você me perguntou sobre o jornalismo. Tem uma música nesse disco aí que você está nas mãos que diz ‘a imprensa, musa que pensa’ então tem aí uma opinião minha sobre o jornalismo”.

Esse Tom, sempre carinhoso. Talvez tenha visto em mim ali a mesma aflição dele na ante-sala do secretário de Viação e Obras da Prefeitura de Salvador. Obrigado, Tom. Assim talvez eu não seja de todo um fracasso.

Já dentro do carro, numa Rua do Bom Jesus vazia, vejo no celular o marcador do gravador apontar 7 minutos cravados. Será que dá para escrever alguma coisa com isso?

Coloco o CD para rodar e volto para casa ao som de Orgasmo Terceirizado:

♫♫O orgasmo batizado está terceirizado:

Ansiedade na cidade, curiosidade.

Só a revista JP organizando um comitê

Para dar em primeira mão, primeira mão,

Como a dotoura Pascowitch com um palpite

– Intuição bate no peito, coração no pé direito –

Foi buscar na sua redação

Para importar à Casa do Oriente

A moça mais competente

Mandou massagear ♫♫

Ai-ai ei-ei iê-iê ó u ipsilone

É de gemer.

Ai-ai ei-ei iê-iê ó u ipsilone

E gemer mais.

♫♫ É de outubro ano 15, memorize,

Uma vitória da imprensa, musa que pensa,

Numa edição histórica, a revista categórica

Expõe pela primeira vez

O que o homem prometeu e nunca deu,

Onde relata a jornalista

A aventura da conquista:

Maioridade, mulher, tereis.

E nessa narração é uma comoção

Quando ela perde o leme

Treme, soluça e geme ♫♫

Ai-ai ei-ei iê-iê ó u ipsilone

É de gemer.

Ai-ai ei-ei iê-iê ó u ipsilone

E gemer mais.

Ai-ai ei-ei iê-iê ó♫♫

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República