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Nova quarentena em Pernambuco é medida certa, porém atrasada, avaliam especialistas

Crédito: Hélia Scheppa/SEI

Finalmente, quarentena rígida. Depois de semanas de abertura de leitos para Covid-19, e subsequentes lotações das redes público e privada, o governador Paulo Câmara anunciou que, a partir de quinta-feira, 18 de março, serão 11 dias com serviços não essenciais fechados em todos os 184 municípios de Pernambuco. A taxa de ocupação das UTIs no estado está em 96%.

A decisão foi tomada devido à assustadora escalada dos números no estado. Na semana passada, havia 1.259 pessoas internadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) no Sistema Único de Saúde (SUS). E 1.126 solicitações de UTI. Para efeito de comparação, foram 641 solicitações na primeira semana de janeiro. “É o maior volume já registrado em toda nossa série histórica”, afirmou o secretário de Planejamento e Gestão, Alexandre Rebêlo, em coletiva que apresentou os números no final da tarde de hoje.

Até o início dessa nova escalada, Pernambuco nunca tinha chegado ao número de cem novas internações em UTI em um único dia. Agora, esse número já se repete há cinco dias consecutivos. Só no sábado passado, dia 13, mais 155 pessoas foram admitidas em UTIs do SUS no estado. Ao final do dia de ontem, 1.209 pessoas estavam internadas em leitos de UTI públicas em Pernambuco. O recorde na pandemia.

Como era de se esperar, o vírus tem se provado muito mais rápido que a capacidade do estado em abrir novos leitos. Só na semana passada foram 180 novos leitos abertos. Eles foram insuficientes para baixar os níveis de ocupação, que se continuam em 95%. “Estamos cada vez mais próximos do limite assistencial. É preciso entender, de uma vez por todas, que vidas estão em risco”, afirmou o secretário de saúde, André Longo, na mesma coletiva. “Precisamos urgentemente diminuir a curva de aceleração epidêmica. E isso só é possível com a mudança de comportamento dos pernambucanos e pernambucanas. Precisamos de um pacto pela saúde”, disse.

De acordo com Longo, 75 respiradores chegam nesta semana ao Recife. Oito novos leitos de UTI foram abertos hoje em Petrolina. E mais 12 serão abertos amanhã no Recife. Assim como 10 leitos de UTIs pediátricas no Imip. “Essas medidas, sozinhas, não impactam na curva. Volto a fazer um apelo: seja um agente de proteção. Precisamos do engajamento da sociedade pernambucana pelos próximos 15 dias”, afirmou.

Para os próximos 30 dias, a previsão é de 234 novos leitos. “Não basta abrir leito. Nesse momento, o importante é reduzir a transmissão. Precisamos de uma grande união de Pernambuco pela preservação da vida”, afirmou Longo. Dando sinais de nervosismo e falando em voz alta, o secretário também recorreu a uma frase de efeito: “Nós não temos mais o direito de errar, o erro agora poderá ser muito negativo, no sentido de custar vidas”.

O desafio de fiscalizar

Diante de vários casos de desrespeito às normas observados durante os finais de semana em que as medidas restritivas vigoraram, um ponto que preocupa e foi falado durante a coletiva é a capacidade de fiscalização do estado e dos municípios.

De acordo com Alexandre Rebêlo, toda a equipe do estado – secretaria de Defesa Social, Justiça e Direitos Humanos -, “todos os agentes públicos estarão zelando pelo cumprimento das medidas, em conjunto com os municípios, em fiscalização diária que será aumentada, colocando mais equipes para fiscalizar”. O gestor, no entanto, não detalhou números sobre esse aumento de efetivo. “Obviamente que estado não é onipresente, então reportar exemplos de descumprimento do decreto é importante. Os canais estarão funcionando e órgãos agirão em caso de descumprimento”, explicou Rebêlo.

O que não pode

Serviços de bares e restaurantes; shoppings e galerias comerciais; óticas; salas de cinema e teatros; academias; salão de beleza e similares; comércio varejista de vestuário, calçados, eletroeletrônicos e linha branca, cama, mesa e banho e produtos de armarinho; escolas e universidades (públicas e privadas); clubes sociais , esportivos e agremiações; práticas e competições esportivas; praias, parques e praças; ciclofaixas de lazer, eventos culturais e de lazer, além dos sociais. Igrejas e demais templos religiosos poderão abrir para atividades administrativas e para preparação e realização de celebrações via internet.

O que pode

Padarias; farmácias; postos de combustíveis; petshop; clínicas, ambulatórios e similares; bancos e lotéricas; transporte público; indústrias, atacado e termoelétricas; construção civil; material de construção; materiais e equipamentos de informática; lojas de materiais e equipamentos agrícolas, oficinas e assistências técnicas e lojas de veículos.

Alivia, mas não corta

Para o epidemiologista do Instituto para Redução de Riscos e Danos de Pernambuco (Irrdpe) Jones Albuquerque 11 dias de quarentena é pouco. E não se trata de um lockdown, já que poderiam ter sido feitas mais restrições. “É parecido com o que vimos em maio. Mas ônibus continuam circulando, não há restrição na circulação de pessoas, há circulação de veículos, não há barreiras nas BRs…Vai ajudar? Vai sim, mas, conter mesmo, infelizmente não vai. O que esse tipo de medida faz é criar um sentimento de consciência urgente”, diz.

Jones lembra o exemplo de Araraquara, no interior de São Paulo, que viu os números de internações caírem ao adotar medidas rígidas. “As pessoas não podiam sair para as ruas e até supermercado fechou. Onze dias serão suficientes? O que a gente aprendeu é que, com 54 dias de lockdown, a gente tem uns 3 ou 4 meses de normalidade, como aconteceu em alguns países da Europa. Em Wuhan, na China, foram 80 dias de lockdown, e desde então voltaram à normalidade. Não precisaram fechar mais. É uma regra? Não sabemos. Mas podemos dizer que onze dias serve para pensar no que fazer depois. Para desafogar um pouco os leitos. Para controlar a infecção? não serve. Onze dias não provoca uma virada”, diz.

Jones lembra do peso político e econômico de decretar uma quarentena mais rígida quando não há consenso nem mesmo entre as prefeituras. “Uma coisa positiva é que dessa vez a quarentena foi em todo o estado, e não apenas em cinco municípios, como foi no ano passado. A construção civil continua funcionando, o que é bom para manter minimamente uma circulação econômica. E é um trabalho majoritariamente feito ao ar livre e com máscaras. Mas é complicado quando vemos que há prefeitos que não apoiam, que não há a mínima coordenação nacional”, lamenta.

Antes mesmo da primeira morte por coronavírus no Brasil, o instituto Imperial College, de Londres, divulgou em março de 2020 um relatório que falava da importância de fechamentos e aberturas ao longo dos meses. “É como conhecer a maré. Temos que reconhecer os ciclos anuais da doença e ir nos adaptando. Os surfistas sabem a hora de ir e de voltar. É isso que temos que nos adaptar com o ciclo do coronavírus. É saber que vamos trabalhar dois meses, e depois fechar 15 dias. E assim por diante”, afirma.

Para Jones, mesmo com as mortes ainda numericamente menores que durante o primeiro pico, em maio do ano passado, a situação hoje é ainda pior. Além do número recorde de doentes em UTIs, ele cita três pontos. “O primeiro, são as variantes mais transmissíveis e que podem causar reinfecção; o segundo, o descrédito da população, muita gente saturou ou cansou da pandemia. E desacredita das autoridades quando falam da gravidade da situação. E um terceiro ponto é uma desorganização a nível geral. Temos o governo federal que não tem uma visão centralizada contra a pandemia. E muitos prefeitos são contra as medidas de controle. Precisamos de uma solução coletiva”, avisa.

Cobrança deve ser por auxílio e vacinação

O epidemiologista Rafael Moreira, pesquisador na Fiocruz e professor na UFPE, considera que a medida veio tarde. “Estamos no pior momento da pandemia. A situação está extremamente ruim e pode piorar – não podemos esquecer o exemplo de Manaus”, diz.

Para ele, o tempo mínimo da quarentena rígida deveria ser de 20 dias e com proibição de circulação de pessoas e veículos. “Mas estamos muito atrasados em tudo. Só agora a Câmara Federal está votando outro auxílio emergencial. Isso é essencial para que a situação econômica não condene as pessoas a outro tipo de tragédia”, diz.

Ele também critica a dicotomia entre economia e medidas restritivas. “As pessoas associam a pressão econômica ao fato de que as pessoas, sem trabalhar, vão morrer de fome. Isso é uma falácia. A pressão econômica tem que ser pela vacinação rápida, porque isso é que vai permitir que o lockdown não ocorra. Temos que ter manifestações é por medidas de auxílio econômico e pela compra de vacinas. Na ausência de vacinação em massa, com a vacinação tão lenta como está, ficamos sujeitos a maior chance do vírus gerar mais variantes e à banalização da doença, ao ponto da sociedade não se chocar mais com 2 mil mortes diárias”, lamenta Rafael.

O epidemiologista teme que as mortes aumentem nos próximos dias e semanas. “Os doentes passam de 3 a 4 semanas internados em UTIs. O vírus está agravando mais agora em jovens adultos, o que não víamos muito. Precisamos de uma mudança cultural. Se as pessoas já tivessem consciência e usassem máscaras, seria um grande avanço. É reflexo também da ausência de articulação do Ministério da Saúde”, afirma.

Abertura de novos leitos de UTI e compra de respiradores são medidas insuficientes, dizem especialistas (Crédito: Miva Filho SES/PE)

Medida decisiva

Na avaliação do médico infectologista do Hospital Oswaldo Cruz e mestrando em saúde pública pela Fiocruz Bruno Ishigami, o lockdown anunciado será “decisivo” para tentar controlar a epidemia em Pernambuco, apesar do cenário dramático do estado e dos números assustadores.

“Acho que ainda vamos manter um patamar alto de novos casos e isso me preocupa pela curva de mortalidade. Acho que vamos ter um recorde de mortes ainda. Mas a medida anunciada é decisiva para o dano ser menor”, avalia.

Bastante preocupado com a alta de internações em UTI nos últimos dias, o profissional, que também atua no Hospital do Idoso e na Clínica do Homem do Recife, alerta que os efeitos só serão sentidos daqui duas ou três semanas. Não são, portanto, imediatos.

Sobre o período da quarentena rígida, Bruno – que lembra que o estado está com taxa de UTI acima de 90% desde o dia 26 de fevereiro -, também acredita que dez dias é pouco tempo: “Mas é preciso agora aguardar para ver como será o comportamento dos dados e esperar para saber se haverá uma prorrogação”.

Ele lembra que, diferentemente da primeira onda, dessa vez as medidas estão sendo anunciadas com muita proximidade uma da outra. Em 2020, deu para sentir mais claramente os efeitos das restrições porque as medidas de rigidez foram anunciadas muito mais cedo.

Um acerto, muitos erros

Médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez também defende as medidas adotadas pelo governo estadual, mas faz ressalvas: “A decisão é acertada, apesar de tardia. No entanto, entendemos a dificuldade dos estados e municípios, pois é difícil agir sob pressão econômica e em meio à sabotagem intencional do Governo Federal além da ausência de suporte técnico, político e financeiro. Contudo, salvar vidas está acima de qualquer outro valor.”.

Compreender as dificuldades dos gestores estaduais não alterou, contudo, o espírito crítico da presidente da Abrasco, para quem o governo flexibilizou muito cedo as medidas restritivas ainda no meio do ano passado, demorou a agir quando os números voltaram a subir em novembro de 2020, não fiscalizou as medidas de distanciamento durante a campanha eleitoral e ao permitir que o transporte público funcionasse continuamente com excesso de lotação.

No entanto, Bernadete está convicta que o maior erro da gestão estadual foi na resposta global à pandemia. “O foco em abertura de leitos temporários de UTI em hospitais também temporários não diminui a circulação do vírus. Pernambuco ignorou completamente a importância da Atenção Básica e da vigilância epidemiológica ao não fazer busca ativa de casos suspeitos nas comunidades, não fazer testagem em massa nem isolar os casos confirmados e de pessoas que tiveram contato com doentes”.

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AUTORES
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Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com

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Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com

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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.