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Quem são as candidatas negras e trans à vaga no STF ignoradas pela mídia tradicional

Inácio França / 24/09/2023
Foto noturna da fachada do STF iluminada com luzes cor de rosa.

Crédito: Fellipe Sampaio/STF

A reação dos setores da esquerda mais próximos do PT à campanha humorista e apresentador Gregório Duvivier para o presidente Lula indicar uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal (STF) foi tão violenta que os nomes propostos pelo movimento Mulheres Negras Decidem ficaram em segundo plano no debate público. Com isso, o ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB) e o advogado-geral da União Jorge Araújo Messias, passaram a ser tratados pela mídia nacional e por atores políticos como favoritos para ocupar a vaga da ministra Rosa Weber, atual presidente da suprema corte.

À margem das articulações nos gabinetes de Brasília, com autoridades se mexendo para tentar emplacar seus favoritos, os movimentos sociais ofereceram ao presidente Lula alternativas de nomes comprometidos com a luta popular.

Além da iniciativa das mulheres negras, esta semana a Aliança Nacional LGBTI+ e grupos independentes no meio jurídico apresentaram a candidatura de uma advogada e professora de Direito trans.

Finalmente, quem são e quais os atributos das três juristas negras e uma mulher trans cujos nomes e perfis praticamente sumiram do noticiário?

  • Adriana Alves dos Santos Cruz

Comecemos por Adriana Alves dos Santos Cruz, secretária-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde também exerce a função de juíza auxiliar. Não é a primeira vez que seu nome foi ventilado para ocupar uma vaga no Supremo, pois, em 2014, a presidente Dilma Rousseff foi apresentada ao nome dela, mas acabou optando por Edson Facchin.

Adriana foi procuradora do Banco Central até 1999, quando se tornou juíza federal do Tribunal Regional Federal da 2ª região, no Rio de Janeiro. Foi ela quem condenou a quatro anos e oito meses de prisão, por tráfico de armas, o pistoleiro e ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco.

Adriana Alves. Crédito: Justiça Federal

Ela é mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), doutora em Direito Penal pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professora da mesma disciplina na PUC-Rio.

No mestrado, a juíza pesquisou como a 2ª instância da Justiça Federal costuma decidir em casos em que o racismo ameaça a democracia. No doutorado, ela mudou o foco dos seus estudos e tratou das possibilidades e limites de compliance penal nos partidos políticos, ou seja, práticas e procedimentos que podem ser adotadas pelos partidos para atuar em sintonia com a legislação criminal.

Em entrevista para o canal da Justiça Federal, ela expressou sua visão da Justiça: “o Direito Penal é a ferramenta da sociedade para punir com limites, com parâmetros civilizatórios. Nós temos pessoas que, eventualmente, vão praticar condutas que serão incompatíveis com a vida em sociedade e que, por isso, precisam de uma resposta, precisam ser responsabilizadas. Porém, a resposta do Estado a essas condutas precisa se dar com limites e dentro de determinados marcos. Historicamente, o Direito Penal sempre foi exercido como ferramenta de controle para grupos específicos, no nosso caso, para conter a população negra desde seu marco zero”.

  • Lívia Sant’anna Vaz

A segunda indicada pelo Mulheres Negras Decidem, Lívia Sant’anna Vaz foi considerada na agenda da Década Internacional das Nações Unidas para Afrodescendentes como uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na edição Lei e Justiça. O motivo para isso foi sua atuação como promotora do Ministério Público da Bahia no combate ao racismo e à intolerância religiosa.

Lívia Vaz. Crédito: MPBA

Lívia Vaz ingressou no MP baiano em 2004. Depois de passar por várias comarcas no interior, em Salvador ela passou a atuar na promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e também passou a coordenar, em 2015, o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação no MP. Os resultados levaram outros ministérios públicos pelo Brasil a tomar iniciativas semelhantes.

Seu currículo acadêmico também é bastante recheado: ela é mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. O caminho foi longo e sofrido para alcançar esse patamar. Na escola, ainda criança, Lívia Sant’anna recorda que chegou a ser espancada por colegas brancos que gritavam “aguenta, negrinha!”

Em entrevista para o jornalista Bob Fernandes, no canal da TVT, Lívia Sant’anna explicou que, apesar da indicação para o STF não ter nascido de um projeto pessoal, ela resolveu assumir o compromisso de encarar o desafio publicamente em razão da baixíssima representatividade das mulheres negras no sistema de Justiça, onde ocupam apenas 6% dos cargos e funções. “Nunca me imaginei nesse lugar [a vaga no STF], pra falar a verdade. E racismo também é sobre isso, é muito difícil para nós, mulheres negras, nos enxergamos onde não estamos representadas”.

  • Soraia da Rosa Mendes

Por ordem alfabética, a escritora e advogada gaúcha Soraia Mendes é a terceira jurista negra apresentada pelo movimento social com todas as condições para ocupar uma vaga de ministra do STF. Assim como Adriana Alves Cruz, essa também não foi a primeira vez que seu nome surgiu como opção para a suprema corte: em 2021, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro decidiu indicar o “terrivelmente evangélico” André Mendonça, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, representando dezenas de organizações sociais, apresentou sua candidatura para o cargo.

Soraia Mendes. Crédito: BdF

Filha de uma empregada doméstica e de um operário sindicalista, ela passou a infância na vila Sepé Tiaraju, uma favela em Viamão, município da região metropolitana de Porto Alegre, Soraia é doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Como autora, publicou livros que se tornaram referências doutrinárias para o Direito Penal em temas como delação premiada, feminicídio, liberdade de comunicação e processo penal feminista. Ela foi nomeada perita redenciada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no processo que resultou na primeira condenação internacional do Brasil por feminicídio.

Hoje, ela representa as vítimas no caso de escândalo sexual envolvendo as funcionárias da Caixa Econômica Federal contra o ex-presidente da instituição do governo Bolsonaro, Pedro Guimarães.

Em entrevista para o programa Podcast do Conde, do canal Rede TVT, ela explicou que vê o Poder Judiciário como “uma estrutura que acaba tendo uma responsabilidade que, por ação ou omissão, chancelam violações. É preciso tecer críticas a essa estrutura e também ao Ministério Público, que teve um papel terrível nesses últimos anos, mas também reconhecer que o Judiciário desempenhou o papel de tábua de salvação”.

  • Antonella Torres Galindo

A caruaruense Antonella Torres Galindo, vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é a mulher trans lançada candidata à vaga no STF com apoio da Aliança Nacional LGBTI+ . Mestra e doutora em Direito pela UFPE, fez estágio doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal. Depois de ser aprovada em primeiro lugar em concursos públicos de três universidades federais, optou pela UFPE, onde foi coordenadora de curso, da pós-graduação e de Pesquisa & Extensão, antes de assumir a vice-diretoria.

Antonella Galindo. Crédito: Acervo pessoal

Na FDR/UFPE, é professora de Direito Constitucional, direcionando suas pesquisas e estudos à área de dos direitos humanos, com foco no direito antidiscriminatório e a defesa de vulneráveis, além de temas considerados mais técnicos ou teóricos, como justiça de transição, da democracia defensiva contra o autoritarismo, do Estado democrático de direito, das instituições e da jurisdição constitucional.

A trajetória acadêmica de Antonella Galindo inclui a colaboração com programas de pós-graduação da UFPB, UFRN, UFAL, , Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos) e da Universidade Autónoma de Lisboa/Portugal, além de participar de grupos de pesquisas da Universidade de Oxford, no Reino Unido: Oxford Transitional Justice Research e do Public International Law Group.

Seus livros e artigos – parte deles publicados ainda com seu nome anterior à transição de gênero, Bruno César Machado Torres Galindo) são referências para decisões de vários tribunais. No Tribunal Regional Federal da 5ª Região, ela é faz parte da Unidade de Monitoramento do Cumprimento das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para o canal Takin Wave Podcast, no YouTube, ela afirmou que a Constituição de 1988 “permitiu uma vivência democrática e alguns avanços democráticos interessantes, mas resiste com muita dificuldade porque, de alguns pra cá, encontrou um terreno arenoso, de mudanças políticas significativas e isso acaba abalando a confiança na Constituição. Para uma Constituição funcionar, precisamos de um consenso básico, mesmo entre setores que pensem diferente. Já os extremos buscam destruir o outro”.

Lula indicar jurista para vaga de Rosa Weber em outubro. Crédito: Nelson Jr./STF

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AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.