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Por Luis Paulo Santana*
Como antropólogo que acompanha de perto o quilombo Ilha de Mercês desde 2019, me sinto compelido a compartilhar minhas observações e reflexões sobre o recente projeto do Complexo de Suape divulgado no Diário Oficial do Estado de Pernambuco. De acordo com a publicação, foi firmado um acordo do complexo portuário de Suape com a Universidade de Pernambuco (UPE) para a realocação do quilombo de Ilha de Mercês. O objetivo do acordo é “garantir que a transferência dos remanescentes do quilombo Ilha de Mercês seja feita de maneira respeitosa”.
Os conflitos entre o empreendimento portuário e o quilombo, assim como com outras comunidades assentadas na região, vêm desde sua origem, na transição entre as décadas de 1970 e 1980. Com a expansão incessante das operações e atividades de Suape, terras historicamente pertencentes à comunidade quilombola da Ilha de Mercês foram invadidas e expropriadas sem o devido consentimento ou compensação justa. Essa expansão, marcada pela construção do porto, rodovias e indústrias, resultou na fragmentação do território quilombola, na destruição de áreas de cultivo e pesca, além da violação de locais de memória importantes para a comunidade.
Após quatro décadas de impasses e conflitos, uma possível solução surge aos olhos da sociedade, conforme divulgado em 04/10/2024. Contudo, esse projeto levanta mais dúvidas e incertezas do que propriamente confiança.
Primeiramente, é crucial entender que esta proposta de reassentamento está embasada no Plano Diretor do Complexo de Suape, atualizado em dezembro de 2022, sendo uma versão mais desenvolvida e detalhada do plano original de 2011. Apesar de melhorias na linguagem e maior atenção às questões sociais, habitacionais e ambientais, o plano mantém o mesmo objetivo: a expansão da região para o desenvolvimento portuário.
Ao tratar das questões fundiárias, o Plano Diretor Suape 2035 defende, com exceção de alguns casos, o reassentamento das comunidades ali localizadas, alegando que as áreas são incompatíveis com as atividades industriais ou com a vocação ambiental do local. O termo utilizado, “Reassentamento Involuntário”, é claro por si só e revela que a realocação ocorrerá independentemente da vontade das comunidades em questão.
Este é um ponto problemático, especialmente para o quilombo Ilha de Mercês, situado em grande parte na Zona Industrial Portuária (ZIP) e na Zona Industrial (ZI). O Complexo de Suape não oferece alternativas além da realocação, o que já revela uma falta de abertura para um diálogo verdadeiramente horizontal. Vale lembrar que Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, que, em seu Artigo 16, inciso 2, determina que o reassentamento de comunidades tradicionais só pode ocorrer com o consentimento livre e informado da própria comunidade. No entanto, convém registrar, o acordo divulgado entre o Complexo de Suape e a UPE para a realização do projeto de reassentamento do Quilombo de Ilha de Mercês não conta com uma plena concordância interna. Ao contrário, a proposta de reassentamento gerou uma grave divisão interna na comunidade, resultando em conflitos significativos.
Além disso, é preciso também destacar que o suposto “sucesso” desse acordo se trata de uma resposta tardia a uma catástrofe prolongada que atinge profundamente a comunidade, cujas raízes e cultura foram desrespeitadas. Até pouco tempo atrás, essa proposta certamente seria vista com desdém pela comunidade. No entanto, são quatro décadas de violações territoriais e culturais que levaram parte do Quilombo a considerar a realocação como uma saída menos onerosa, visto que o território, que deveria ser protegido, está cada vez mais comprometido, tanto do ponto de vista social quanto ambiental. Por outro lado, o Complexo de Suape promove essa situação como um “case de sucesso”, ignorando os problemas históricos que ele mesmo causou.
Assim, a divisão interna na comunidade e os conflitos advindos dessa proposta indicam que a consulta realizada pelo Complexo de Suape foi inadequada. A aceitação do reassentamento nunca foi unânime e afirmar que o território pertence apenas ao empreendimento ignora o território ancestral — muito anterior ao próprio Complexo de Suape — e a necessidade de consentimento pleno da comunidade, violando assim os direitos garantidos pela Convenção 169 da OIT. A falta de um processo genuíno de diálogo e a ausência de informações completas comprometem o caráter livre e informado da consulta. Ainda que parte da comunidade aceite o acordo devido à precariedade do território, isso não elimina as falhas no processo de negociação, que claramente carece de maior atenção e equilíbrio.
Além disso, algumas perguntas permanecem: como será resolvida a questão dos quilombolas de Mercês que não desejam sair do território? Serão deslocados à força, violando direitos fundamentais? Isso contraria a própria Convenção 169 da OIT, que garante o direito de dizer ‘não’. Para aqueles que aceitaram o reassentamento, para onde irão? A mesma convenção estabelece que as comunidades, ao serem reassentadas, devem ser transferidas para “terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam, no mínimo, iguais às que ocupavam anteriormente, garantindo suas necessidades e seu desenvolvimento futuro”.
Será que o Complexo de Suape será capaz de garantir terras férteis e próximas de rios, mangues e mar, essenciais para pescadores, marisqueiros e agricultores? Se considerarmos o cenário em que toda a comunidade seja realocada, o que acontecerá com o atual território da comunidade? O Plano Diretor prevê uma ampliação portuária até 2035. Há, ainda, a previsão de uma outra expansão após 2035, que inclui a construção de grandes canais de navegação adentrando o território. Pelo mapa apresentado para o cenário pós-2035, é possível observar que, com a finalização desses canais e novos terminais dentro da área do porto organizado, rios e manguezais locais deixarão de existir em suas formas atuais, o que invariavelmente causará um impacto ambiental de proporções imensuráveis. Não haverá compensação ambiental possível para a destruição desses ecossistemas.
Por fim, o histórico do Complexo de Suape, bem documentado ao longo dos anos por diversos estudos e relatos de pessoas que vivenciaram o processo de expropriação, não inspira confiança. Seu atual instrumento de planejamento urbano e gestão territorial não garante uma abordagem social e ambientalmente responsável para o futuro da região. É fundamental que Suape reconheça sua responsabilidade pela situação atual da comunidade quilombola e promova um diálogo intercultural respeitoso, levando em consideração os valores, a cultura e os modos de vida do Quilombo de Ilha de Mercês.
Em sua publicação no Instagram, o Complexo de Suape garantiu que ‘durante todo o andamento da ação, será garantida a participação ativa da comunidade, em todas as fases, desde o planejamento até a implementação’. No entanto, à luz dessa declaração, desconfiamos da possibilidade de a comunidade recusar um reassentamento em uma situação que não tenha equivalência socioecológica às terras que atualmente ocupam. Desconfiamos também de que haverá respeito ao direito de dizer ‘não’ por parte daqueles que resistem ao reassentamento. Desconfiamos, assim, da ideia de que o que se desenha para o Quilombo Ilha de Mercês é uma realocação respeitosa. É necessário um posicionamento crítico diante da gravidade da situação, bem como que toda a sociedade tenha plena consciência dessas dinâmicas, para que possamos estar atentos às condições que Suape e a UPE estão prestes a impor a essas pessoas no processo de reassentamento.
*Antropólogo, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFPE) e bacharel em Ciência Política (DCP/UFPE). Pesquisa comunidades tradicionais, impactos de grandes empreendimentos e conflitos socioambientais. Integrante da Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (Aspan).
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