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“Resistir acabou se tornando um modo de vida”, diz feminista afro-equatoriana

Débora Britto / 02/09/2019

selo ocupa políticaAtivista social de direitos humanos, feminista, Juana Carol Francis Bone atuou como assessora legislativa na Assembleia Nacional do Equador. Além de ser cofundadora do Movimento Mujeres de Asfalto, trabalha no campo das eleições de mulheres e lideranças sociais com recorte afrodescendente no Equador. Juana participou do Ocupa Política no último sábado (31) no debate Combate ao Racismo: resistência e ancestralidade.  Para ela, os custos para construir uma nova forma de fazer política valem a pena quando estão de acordo com práticas de resistência e construção que dialogam com a base da sociedade. “Não quero dizer que tudo na política atual é inútil, só quero tentar ser clara: custa muito em uma sociedade racista ser mulher na política, ser uma mulher negra rural, ser uma mulher negra, rural e pobre. E estar nesses espaços não para preencher, mas para re-existir como atores políticos”, afirma.

“Está na hora de desenvolver estratégias, às vezes talvez seja preciso ceder, mas sobretudo precisamos não perder a raiz. O último processo eleitoral nos marcou ao vermos a diferença que o reconhecimento dessa diversidade de organizações sociais progressistas traz, e a mudança para a militância da organização política progressista à esquerda que se recusava a se reinventar tanto discursivamente como organicamente em suas práticas”, provoca Juana.

Confira abaixo a entrevista que ela concedeu à Marco Zero Conteúdo.

Qual é o contexto do debate sobre raça, gênero e sexualidade no Equador?

O principal contexto é de desigualdade, da precariedade da vida nos últimos tempos, com as medidas racistas do Estado. Existe o temor de colocar essas pautas na agenda pública. O Equador é um país racista que não gosta de ser perturbado por interpelações desse tipo. O tempo passa e uma das coisas que mais encontramos é a naturalização da violência, a invisibilidade do Estado e a falta de políticas. Colocar o debate de gênero e sexualidade na agenda pública tem sido historicamente uma tarefa árdua das diferentes organizações sociais.

Onde estão as mulheres negras na política no Equador?

As mulheres negras no Equador estão em várias trincheiras resistindo a partir do território à nossa estética, nossos sentidos e sentimentos. Veja o cimarronaje (fenômeno de resistência contra o sistema colonial) como ideologia política e memória social contínua.

As organizações políticas (movimentos e partidos políticos) continuam sem dimensionar seu papel em um sistema democrático que comercializa estritamente a questão eleitoral. As mulheres estão lá, mas muitas vezes como objeto e não como sujeitos de direitos. Essa realidade pode parecer um pouco cruel, mas ainda existe uma dívida histórica no setor de participação cidadã e seus mecanismos eficazes de inclusão.

Como está ocorrendo esse debate no Equador, que tem uma população afro-equatoriana ou negra de 7%?

Temos uma população auto-reconhecida que cresce, mas o debate e a resistência ocorrem a partir dessas dimensões, longe do público, do Estado. No último período, intensificou-se o relacionamento das organizações afro com o Estado, com o caso do assassinato de Gavis Moreno, um funcionário público. O Estado foi responsabilizado, mas não implementou protocolos de segurança. Passaram-se alguns meses e, em uma manifestação, Andrés Padilla é morto pelas costas por um policial. Os territórios historicamente do povo afro são abandonados e a vida é precária, a impunidade em processos judiciais também é um problema.

Não há debate quando a maquinaria estatal é usada para invisibilizar. O que resta das bases organizacionais é resistir. Não se trata de esgotar a palavra resistência, é que acabou se tornando um modo de vida.

A esquerda quebra ou aumenta quando os padrões de gênero e raça entram em cena?

No Equador, a esquerda é fraca pelos vícios do poder, além de sustentar que “as prioridades do debate público não são gênero e raça”. Isso é tão arcaico que alguns deles falam que a crise da “luta de classes” seria o feminismo comunitário que tem servido como instrumento político para tornar visíveis as vozes, o território e as novas agendas políticas.

O que a esquerda ganha ao apostar na inclusão dos excluídos historicamente?

Mais do que ganhar é tornar o seu discurso mais empático com as realidades. As distâncias percorridas pelas organizações políticas e sociais com a esquerda são o reflexo de não construir uma agenda que nos represente. O desgaste dos partidos de esquerda e o formato dos movimentos progressistas e seu crescimento baseiam-se na geração dessa empatia com os territórios.

Existe uma falsa controvérsia neste debate sobre identidade e luta de classes?

Passa pela empatia, existe uma controvérsia sobre as distâncias de atualização das reflexões com uma abordagem prática da interseccionalidade. Mara Viveros nos convida a atravessar esse filtro. O desenho da política mestiça (mista) como estratégia para homogeneizar todo o problema acaba levando novamente o tema da esquerda para as periferias do debate e da reflexão, permitindo que apenas alguns estejam na cena pública.

Isso apenas me faz pensar como é necessário que a luta do feminismo negro materialize o mapeamento do poder e onde estamos ou onde isso nos coloca.

O que os críticos das agendas de identidade dizem para defender a ideia de que enfraquecem a esquerda?

Eles não dizem nada. Os intelectuais nas novas investigações realizadas não dizem nada, e não dizer nada é continuar o jogo da invisibilidade política ou responder estritamente à agenda de cooperação internacional. A complacência da academia com o Estado.

Reinventar a esquerda na região é reconhecer uma memória histórica racista, sexista e xenófoba, da qual nossas organizações políticas, academia e Estado foram cafetões sem compaixão.

Qual a importância de trazer sua experiência para discutir em Ocupar Política no Brasil?

A oportunidade de estar no Ocupa Política não é apenas um espaço para contar uma experiência (sem a necessidade de romantizar), mas também para me alimentar da agenda internacional dos avanços e desafios do que significa fazer interseções políticas democráticas e de como enfrentar sistemas racistas sexistas, xenófobos.

É da construção dessas novas alianças que surgiram estratégias das organizações sociais para fazer parte das estratégias nas organizações políticas.

Você acha que existem semelhanças entre o contexto do Brasil e do Equador?

Sim, estamos em crise. É preciso encarar a convulsão que a região está enfrentando com o avanço dos anti-direitos. Eles são mais eficazes na internacionalização de uma agenda racista e xenofóbica. Eles alimentam a cultura do medo com as estratégias mais progressistas e sustentam o discurso de segurança. É uma crítica hipócrita da supremacia das convergências dos excluídos. Precarizam a vida das comunidades negras e indígenas, desapropriam o território e usam o aparato estatal para tornar essa agenda eficaz.

No entanto, o panorama de resistência se torna visível com a diversificação das vozes. Ainda temos esperanças (e trabalhamos para elas desde as bases) na elaboração de uma política diferente.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.