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Rodoviários e especialistas rebatem empresas de ônibus: sim, há risco de contágio no transporte coletivo

Maria Carolina Santos / 06/08/2020

Crédito: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Como assim, o transporte coletivo é um lugar sem risco para a contaminação pelo coronavírus? Foi com perplexidade que muita gente viu um “estudo” do Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco (Urbana-PE) repercutir na imprensa com essa conclusão. Os gráficos disponibilizados pelo sindicato das empresas de transporte de Pernambuco mostram que, enquanto os casos da doença declinavam, mais pessoas andavam de ônibus. Ao inferir uma falsa causa e efeito, o gráfico induz ao erro de que o transporte coletivo é seguro e livre de vírus.

Os gráficos foram distribuídos em um release para a imprensa. Não fazem parte de nenhum estudo ou pesquisa feito pela Urbana-PE. “Foi algo pensado por conta das perguntas em entrevistas, com as pessoas achando que os ônibus estavam aumentando a disseminação do coronavírus “, conta o diretor de inovação da Urbana-PE, Marcelo Bandeira, que diz que o sindicato não fez nenhuma relação de causa e efeito nos gráficos. “Não estamos dizendo que há uma relação direta, nem que ônibus não é um vetor do coronavírus”, respondeu Bandeira, ao ser questionado sobre a intenção dos gráficos. “Não tem análise científica, nem pretende ter”, diz.

Os gráficos foram disponibilizados junto com um estudo em que a Urbana-PE pede que haja um escalonamento das atividades da indústria e comércio, para que os horários de pico sejam estendidos, desafogando os ônibus. Nesse estudo, protocolado em cinco secretarias estaduais e na Prefeitura da Cidade do Recife, não há muitas contestações, de acordo com especialistas ouvidos pela Marco Zero Conteúdo. A divulgação conjunta dos gráficos e da nota técnica, porém, fez parecer que os dois eram uma coisa só.

Professora da Universidade de Pernambuco (UPE) e médica sanitarista na Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (Fiocruz-PE), Tereza Maciel Lyra aponta erros básicos nas considerações da Urbana-PE. “Primeiro, eles inferem uma relação de casualidade que não pode ser feita. Ainda mais em uma doença complexa como a Covid-19”, diz.

"Aparato" para proteção dos trabalhadores é mera cortininha de plástico. Foto: Urbana-PE/Divulgação

Ela pontua que o uso correto e universal da máscara é indispensável, mas que as empresas de ônibus não podem jogar toda a responsabilidade nos passageiros. “Qual é a responsabilidade deles de garantirem o isolamento do condutor, a sanitização frequente? Em casa, lavamos até caixa de leite e pacote de macarrão porque acreditamos que possa ser um veículo para o coronavírus. Não dá para eliminar o transporte público, mas temos que cobrar para que eles ofereçam uma garantia mínima de segurança”, afirma.

O porta-voz da Urbana-PE afirma que as empresas colocaram um “aparato” para a proteção aos cobradores e motoristas. As fotos mostram que é uma mera cortina de plástico.

Veículos sem higienização

“Quando eu vi a notícia dizendo que os ônibus não eram vetor do coronavírus, eu me espantei com a ousadia”, diz o presidente do Sindicato dos Rodoviários de Pernambuco, Aldo Lima. “Os ônibus andam cheios, os terminais lotados, e não é apenas na hora de pico, como ficam repetindo”, conta.

Sobre a limpeza periódica dos ônibus, que a Urbana-PE garante que é feita a cada viagem, Aldo Lima é taxativo: “É mentira. Não tem tempo do ônibus chegar no terminal e ser higienizado. É chegando e subindo novos passageiros. Essa história da limpeza noturna, com quaternário de amônia (um desinfetante hospitalar), eu só escutei da direção de uma empresa. As demais não estão nem falando disso”, conta.

O sindicato cobra para que a frota de ônibus volte a estar 100% nas ruas. “Ainda tem a dupla função do motorista, que tem que pegar o dinheiro e dar o troco ao passageiro. Não há tempo para passar álcool em gel a cada troco”, diz.

Para a especialista em transporte Jéssica Lima, professora do departamento de Engenharia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), há formas de minimizar os riscos de propagação do coronavírus nos ônibus. “Alguns estudos acadêmicos afirmam que mesmo com aglomeração, mas com o uso de máscaras, e sem conversas, de fato o transporte público pode deixar de ser um grande disseminador do coronavírus”, diz.

Ela cita um estudo chinês na cidade de Chongqing que mostra que uma pessoa infectada subiu no ônibus sem máscara e passou 2 horas e 10 minutos. Nesse tempo, infectou 5 entre 39 pessoas. Depois, desceu do ônibus, comprou uma máscara e subiu em outro ônibus com 14 pessoas. Nenhuma foi infectada.

Além do uso correto da máscara por todas as pessoas, sem comerem ou falarem nas viagens, a pesquisadora cita também a limpeza dos veículos, o fornecimento de álcool em gel e a ventilação adequada. “É preciso diminuir também o tempo das viagens, com corredores exclusivos. Os estudos também mostram que a exposição por mais tempo deixa os passageiros mais expostos à infecção”.

Já a a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda distância mínima de um metro entre pessoas com máscaras, para minimizar a propagação do novo vírus.

A realidade atual no Grande Recife, porém, passa longe dessas estratégias. A própria Urbana-PE admite que não há disponibilidade de álcool em gel para passageiros dentro dos ônibus, apesar de garantir que tem álcool disponível para os funcionários das empresas. Até mesmo isso o sindicato rebate, afirmando que é algo esporádico. A testagem periódica dos rodoviários também não acontece. Foi feita uma única vez, em junho, numa ação do Sistema S. Desde então, 14 motoristas, cobradores e fiscais já morreram no Grande Recife por conta da Covid-19.

No momento, apenas 70% da frota de ônibus circula pelo Grande Recife. Com todos os ônibus na rua, os passageiros poderiam ter mais espaço e segurança, mas, por questões financeiras, a Urbana-PE é contra a volta total da frota. “Estamos com uma média de 50% dos passageiros. É algo anterior à pandemia e que, agora, se faz urgente, que é discutir o modelo de custeio do sistema, que fica muito oneroso ao passageiro”, diz Bandeira.

No primeiro momento da pandemia, foi feita a restrição de passageiros para 10% da capacidade em pé, com uso de todos os assentos. Agora, o percentual de pessoas em pé subiu para 20%: em um ônibus com capacidade total para 70 pessoas, 40 vão sentadas e 14 podem ir em pé. Na prática, esse decreto nunca foi cumprido, denuncia o sindicato dos rodoviários. “A gente vê o governo fechando bares e academias porque não cumprem os protocolos. Por quê não acontece o mesmo com as empresas de ônibus?”, questiona.

Epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (Fiocruz-PE), a médica Ana Brito diz que é preciso olhar a questão dos coletivos com base na realidade do Grande Recife. “E não com base em modelo asiático ou até mesmo europeu, em que há ocupação de 50% das cadeiras, com todos de máscaras, medidas coercitivas, como multas, com transportes sanitizados”, afirma.

Ela também afirma que ao se fazer uma correlação com uma doença é preciso afastar outros determinantes. “Falar que ‘João Pessoa fez lockdown, inclusive dos transportes, e nem por isso reduziu os casos’ é um erro. O que determina o número de casos são milhares de fatores, muito além da mobilidade. Um estudo desse tipo incorre em algo chamado falácia ecológica: um segmento de condições que se aplica no coletivo e que jamais pode se inferir no indivíduo”, explica.

Para não deixar dúvidas, a epidemiologista Ana Brito é direta: “Nada nos faz pensar que o transporte coletivo na cidade do Recife seja um fator não indutor do aumento de transmissão . É só pegar um metrô ou ônibus: são condições extremas, com as pessoas se tocando uma nas outras. Não tem como não haver transmissão em uma situação dessa, se tiver dois ou três assintomáticos. Mesmo usando máscara, porque todos ficam muito próximos. Como vamos dizer que não são espaços indutores de infecção? Claro que são”.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org