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Saúde mental em Pernambuco está sem comando desde janeiro

Maria Carolina Santos / 21/03/2023
Fachada da emergência psiquiátrica do hospital Ulysses Pernnambucano: pequeno prédio público, pintado de amarelo desbotado, com marcas de umidade no rodapé e na lateral esquerda. Acima de uma janela fechada há uma placa azul e branca com o brasão de Pernambuco e a inscrição Secretaria Estadual de Saúde - Hospital Ulysses Pernambucano.

Crédito: Inácio França/MZ Conteúdo

Desde o controverso decreto de janeiro em que a governadora Raquel Lyra (PSDB) exonerou todos os cargos comissionados do Governo de Pernambuco, a vaga de Gerência de Saúde Mental (Gasam) da Secretaria Estadual de Saúde segue vazia. É de responsabilidade do cargo apresentar para os profissionais de saúde do estado as diretrizes que a saúde mental vai ter ao longo do governo, fazer a ponte com o Governo Federal, além de oferecer capacitação para os profissionais.

Há pelo menos três reuniões a comissão de saúde mental do Conselho Estadual de Saúde cobra uma posição sobre o cargo vago. A Marco Zero questionou a SES-PE sobre o assunto, mas não obteve resposta.

Na última reunião do Conselho, ocorrida na semana passada, a secretária Zilda Cavalcanti pediu paciência e disse que está em busca de um perfil técnico, compromissado e que a questão da saúde mental é de extrema importância dentro da secretaria. Também afirmou que em breve a nomeação deve sair e que as questões que seriam da gerência estão, por ora, com a secretaria executiva de vigilância e atenção primária, comandada por Verônica Cisneiros.

Entre psicólogas, psiquiatras e terapeutas existe o receio de que o cargo esteja sendo avaliado, ou disputado, por políticos evangélicos e conservadores ligados às comunidades terapêuticas. Isso porque, desde que Raquel Lyra assumiu, há uma série de movimentações em relação às políticas de drogas e de saúde mental do governo. Quanto mais demora na nomeação do cargo, maior a desconfiança.

A primeira movimentação dos políticos evangélicos fundamentalistas ocorreu já na única emenda à reforma administrativa de Raquel Lyra aprovada pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), em janeiro. A emenda, do deputado Cleiton Collins (PP), que é fundador da comunidade terapêutica Saravida, alterou as competências da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança, Juventude e Prevenção à Violência e às Drogas. Uma mudança sutil, mas vista por especialistas como uma brecha para o financiamento de comunidades terapêuticas, como acontece na secretaria equivalente da Prefeitura do Recife.

Outra evidência da pressão dos fundamentalistas evangélicos foi a exoneração do secretário executivo de Políticas sobre Drogas, Rafael West, militante pela redução de danos, que saiu antes mesmo de assumir, poucos dias após ter sido nomeado.

Zilda Cavalcanti. Crédito: Mª Eduarda Bione/SES-PE

Já na Alepe, foi criada em fevereiro a Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental dos Pernambucanos com o deputado evangélico fundamentalista Joel da Harpa (PL) na presidência e entre os membros os pastores Júnior Tércio (PP) e Cleiton Collins.

Até hoje as secretarias de saúde – tanto estadual quanto a do Recife – seguem “blindadas” dos avanços das comunidades terapêuticas. Mas há o receio de que haja uma pressão por espaço. “Até agora a Secretaria de Saúde não apresentou um fluxograma de ações. Não pode ficar só apagando incêndios, tem que ter planejamento e diretrizes. A gerência de saúde mental é quem faz o monitoramento das ações de saúde mental dos municípios. É um modelo descentralizado e tem que haver os gestores”, critica a coordenadora de saúde mental do Conselho Estadual de Saúde, Íris Maria.

Para ela o governo Raquel Lyra está também perdendo tempo em não estreitar relações com Governo Federal, que recentemente reativou seu departamento de saúde mental, que havia sido desmantelado no governo Bolsonaro. “É uma vaga que tem, sim, o interesse dos políticos conservadores, que é um grupo hermético, que não tem muita discussão. Mas hoje temos um caminho bem interessante para discutir saúde mental no Brasil junto ao Governo Federal. Raquel Lyra vai querer ir na contramão desse movimento?”, questiona Irís.

Leis “barram” comunidades terapêuticas

Irís Maria lembra que em julho vai ter a 17ª Conferência Nacional de Saúde, evento para discutir e melhorar as políticas públicas em saúde. É um momento importante de construção coletiva e, por isso, municípios e estados devem estar bem preparados. A demora em nomear um gestor pode enfraquecer essa preparação.

Nas conferências participam os segmentos de usuários, trabalhadores e gestores. “As políticas públicas de saúde mental precisam ser implementadas e melhoradas. O controle social é quem é o guardião dessa política, no sentido de avançar, de ver os processos de financiamento”, explica. As conferências de saúde mental acontecem a partir da convocatória do Conselho Nacional de Saúde. Pernambuco finalizou em agosto do ano passado a IV Conferência Estadual de Saúde Mental, evento que precede a conferência nacional, reforçando a luta pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps), com tratamento no território e em liberdade. O tema foi “A Política de saúde mental como direito: Pernambuco pela defesa do cuidado em liberdade, rumo à avanços e garantia dos serviços da atenção psicossocial no SUS”.

Íris Maria, coordenadora da comissão de saúde mental do Conselho Estadual de Saúde

O psicólogo clínico João Marcelo Costa, mestre em Gestão Pública, estava como gestor do Gasam de 2015 até a exoneração em janeiro deste ano. Na visão do ex-gestor, a reforma psiquiátrica, aprovada como lei em 2001, que prevê o fechamento gradual de leitos de longa permanência, e a portaria estadual 747, de 2018, que estabelece as políticas de saúde mental em Pernambuco, são impeditivos legais para as comunidades terapêuticas avançarem na pasta da saúde.

As comunidades terapêuticas, mantidas por grupos religiosos, pregam a reclusão para tratamento. Elas estariam, portanto, na contramão da legislação. “A política estadual não é ditada por uma gestão, mas é toda coletiva. Está nítido nela que não há permissão de nenhum tipo de cuidado baseado nos princípios asilares. A política é muito clara ao não conceber o hospital psiquiátrico como ponto de atenção e ao colocar que não cabe tipo algum de modelo asilar (de reclusão) na rede de cuidados”, afirma João Marcelo.

Pernambuco, que já teve quase três mil leitos exclusivos de saúde mental, tem hoje 235 leitos divididos entre um hospital contratado pelo município de Serra Talhada e o Ulysses Pernambucano, na Tamarineira, a grande referência de urgência e emergência psiquiátrica do estado. Há também 89 vagas em hospitais regionais, que receberam capacitação para atender os pacientes de saúde mental.

Faltam Caps

Ao contrário de outras áreas da saúde, ter menos leitos em hospitais psiquiátricos é algo desejável. Mas o avanço da reforma psiquiátrica passa também pelo fortalecimento e expansão dos Centros de Atenção Psicossocial, os Caps, geridos pelos municípios com fundos principalmente do Governo Federal, e que têm caráter aberto, integrado e comunitário. E isso não está acontecendo, nem aconteceu na gestão passada. É um desafio complexo, que ficou ainda mais sofrido com a pandemia. No Recife, por exemplo, há apenas três Caps voltados para crianças.

A Marco Zero conversou com duas militantes da reforma psiquiátrica que trabalham em Caps no Grande Recife. Uma delas relatou que os dez Caps com atendimento 24 horas na capital não estão dando conta. No relato, ela fala que o imóvel do Caps Davi Capistrano, no Ipsep, foi interditado com as chuvas de maio do ano passado e ainda está em reforma, com a equipe atendendo no Caps Livre Mente, em Setúbal. E cobrou que o estado tenha mais participação no financiamento da rede. 

Há também o adoecimento dos profissionais, que, muitas vezes, trabalham sobrecarregados. “A pandemia aumentou muito o número de pessoas com depressão, ansiedade e tentativas de suicídio. E os profissionais de saúde não ficaram imunes a isso. Há uma sobrecarga de trabalho e a rede de Capes e de unidades de acolhimento, para pessoas com problemas abusivos de álcool e outras drogas, não estão sendo expandidas. Também não temos clareza qual o direcionamento que o governo do estado vai dar para a saúde mental”, criticou outra servidora, que preferiu não se identificar.

A vaga na gerência de saúde mental é uma das muitas que ainda não foram preenchidas na Secretaria Estadual de Saúde. Na sexta-feira passada, a deputada estadual Dani Portela (Psol) protocolou uma indicação à secretaria para que preencha 678 cargos que ainda se encontram vagos. Entre eles, há 210 postos de médicos, 129 vagas de analistas em saúde, 119 vagas de assistentes em saúde, 147 vagas de auxiliares em saúde e 40 (quarenta) vagas de fiscais da vigilância sanitária sem nomeação na secretaria.

  • ERRATA: este texto foi corrigido às 15:07 de 22 de março. Inicialmente publicamos que a equipe do Caps do Ipsep estava atendendo, desde maio do ano passado, no Caps Espaço Azul, de Casa Amarela, quando o correto é que os profissionais foram alocados temporariamente no Caps Livre Mente, em Setúbal.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org