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Selo orgânico e agroflorestas: a experiência que está transformando quintais quilombolas no Piauí

Marco Zero Conteúdo / 01/02/2024

Crédito: Diaconia

Por Luan Matheus Santana e Tânia Martins, do Ocorre Diário*
Projeto Redação Nordeste**

A paisagem árida da Caatinga pode até enganar quem não é daqui. Mas, nesse chão de solos argilosos, rasos e pedregosos, há também uma grande quantidade de minerais que fazem desse bioma um território fértrtil para o plantio. Quem vive nessas terras há muito tempo sabe disso, mas sabe também que, além do manejo adequado, é preciso saber conversar com a Caatinga. Porque aqui, como nos ensinou o mestre Antônio Bispo dos Santos (falecido em dezembro de 2023), é terra de “biointeração”, onde todos os seres são importantes, se conectam e se interrelacionam. 

É nesse contexto que, na comunidade Queimada da Onça, localizada no Quilombo Lagoas, no município de São Lourenço do Piauí, distante 550 quilômetros de Teresina, foi plantada a primeira semente para o nascimento de uma iniciativa que busca ser o espelho para outra relação de produção agrícola no Estado, a Associação dos Produtores Agroecológicos do Semiárido Piauiense (Apaspi)

Hoje, com cerca de 170 associados distribuídos em sete municípios do sul do Piauí (São Raimundo Nonato, São Lourenço, Coronel José Dias, Canto do Buriti, Paulistana, São Francisco de Assis e Queimada Nova), a Apaspi já nasceu com o selo orgânico, expedido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). É a primeira associação de agricultores do Estado a conquistar esse selo, um sistema que certifica coletivamente os produtos e agrega valor à produção. 

Isso potencializou a comercialização dos produtos e consequentemente da produção. De 2019 até o ano passado, os agroecologistas do semiárido já produziram mais de 10 mil toneladas de pluma de algodão (produto resultante do processo de beneficiamento que separa a pluma do caroço do algodão) orgânico. A maior parte é vendida para uma grife francesa que produz sapatos e tênis com matéria-prima sustentável. No ano passado, a associação conseguiu comercializar 49,6 toneladas. 

“O que temos aqui é um consórcio agroecológico, que associa algodão e culturas agroalimentares, como milho, feijão, gergelim, amendoim e girassol. Essas são culturas que os agricultores já vinham cultivando há muito tempo nos territórios. O que a gente fez foi um rearranjo de um desenho para que se pudesse produzir de forma sustentável, em harmonia com o meio e resiliente ao clima do semiárido. Pensamos nessa estratégia para encabeçar a agroecologia no semiárido e tem dado certo, porque conseguimos levar o debate e expandir”, afirma Gean Magalhães, quilombola agroecologista e idealizador da Apaspi.

A partir da produção de pluma de algodão, os agricultores extraem o caroço, que ainda serve de alimentação para pequenos animais em períodos de seca. Só no ano passado, 28 toneladas de caroços foram distribuídas entre os agricultores associados. 

Agricultora Valquíria, do Piauí, mostra a produção de algodão orgânico. Do Quilombo Lagoas, ela é uma das sócias fundadoras da Apaspi. Crédito: Diaconia

Além disso, eles venderam a produção de gergelim, milho, feijão e girassol e também de outros alimentos destinados a programas governamentais, com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e pregões eletrônicos destinados a ofertar alimentos para os institutos federais da região. 

Toda capacidade produtiva e capilaridade de comercialização de produtos são conquistas antes inimagináveis para a maioria dos agricultores e das agricultoras, mas que se fizeram possíveis graças à insistência de uma jovem mente inquieta, à época com 17 anos e hoje com 32 anos, Gean Borges. 

Desde pequeno, ele se incomodava com a forma de plantio que seus pais e avós praticavam. “Não entendia por que abriam novas áreas, por que queimavam para plantar, sempre achei que aquilo estava errado”, pontua

Gean é nascido e criado na comunidade quilombola Queimada da Onça, na aridez do município de São Lourenço. Queimada da Onça é uma das 119 comunidades pertencentes ao Quilombo Lagoas, um território ancestral delimitado em uma área situada dentro de seis municípios no sul do Piauí. As comunidades, juntas, compõem a terceira maior população quilombola do Brasil, com 5.042 quilombolas.

Um quintal quilombola como vitrine

A Associação dos Produtores Agroecológicos do Semiárido Piauiense (Apaspi) está presente em oito comunidades quilombolas do Piauí, sendo seis delas no Território Quilombola Lagoas, o maior quilombo do Piauí e o terceiro maior do Brasil, e uma no Território Quilombola Chupeiro, município de Paulistana. A produção em larga escala da associação só se tornou viável porque ela é fruto de um trabalho coletivo. 

Apesar disso, foi no quintal da casa do Gean Borges que essa ideia começou a ser germinada. Filho e neto de agricultores, aprendeu com os mais velhos a gostar da roça. Sabia que era aquilo que ele queria para sua vida, mas o modo de produção —  baseado na queimada e abertura de novas áreas — lhe incomodava. 

Diante desse impasse, não viu outra opção senão buscar conhecimento para um uso mais eficiente da terra. “Queria entender como eu poderia trabalhar de forma mais sustentável. Gerar renda, mitigar os impactos desses trabalhos, porque eu vinha de um histórico familiar forte de uma cultura de desmatamento e queimada”, conta.

Foi então que, ao terminar o Ensino Fundamental, matriculou-se no curso Técnico de Agropecuária na Escola Agrícola da cidade de São Lourenço. “Tive professores que entenderam e me estimularam a mudar a técnica de plantio usada pelos meus antepassados. Também era necessário mitigar os impactos que o plantio convencional promoveu”, completa.

Foi aí que tudo mudou. No quintal da família, mesmo com certa resistência, Gean conseguiu estimular uma mudança no modo de produção e, com isso, estimular outras comunidades do Quilombo Lagoas a seguirem o caminho de plantar  pelo Sistemas Agroflorestais (SAFs) e a criarem pequenos animais, ovinos e caprinos, principalmente, no mesmo sistema. Os SAFs são formados por plantios de diversas e diferentes espécies vegetais na mesma área e ao mesmo tempo.

Imagem aérea mostra o Sistema Agroflorestal na comunidade Queimada da Onça, no Quilombo Lagoas, no Piauí. Crédito: Caritas/Márcio Bigly/Misereor

A coragem de fazer dos sonhos uma ação foi impulsionada com apoio e projetos sociais que tornaram possível o desenvolvimento da associação. É o caso dos projetos apoiados pelas Cáritas Brasileira, pela Diaconia e pela Brazil Foundation.

Já em 2018, a produção foi considerada muito boa. Em 2019, começaram as comercializações, entre elas a do algodão, cultura que sempre foi tradição na região, mas que havia acabado devido à praga do inseto bicudo. Com contribuições de instituições e entidades como a Diaconia, os agricultores passaram a conhecer técnicas que dão sustentação ao solo e fortalecem as culturas produzindo de forma consorciada. 

Plantaram, além do algodão, gergelim, milho, feijão, girassol e demais culturas agrícolas da dieta do sertanejo.

Protagonistas de um outro modo de produção

Outros jovens das comunidades que integram o Quilombo Lagoas, o maior do Piauí em território, são exemplos de superação dos desafios impostos aos filhos do bioma Caatinga. Assim como Gean, acreditaram que era possível mudar o cenário de aridez, desmatamentos e queimadas em áreas férteis, produtivas e sem uso de agrotóxicos. 

Valquiria Viana é uma das sócias fundadoras da Apaspi. Nascida na Lagoa das Cacas, comunidade também pertencente ao Quilombo Lagoas, a trajetória dela é semelhante à de Gean. Tudo começou a mudar ainda em 2008, quando iniciou os estudos na escola agrícola, onde passou quatro anos. 

“Eu sempre trazia para a comunidade. Aprendia as técnicas e trazia para o roçado, juntamente com meu pai. Em 2011, concluí o meu curso e surgiu a ideia de montar uma associação, em 2012. Daí então a gente vem sempre trabalhando com agroecologia. Antes a gente vivia trabalhando na forma como nossos avós trabalhavam, hoje a gente reaproveita, fazendo adubação verde, não usando agrotóxicos. Antigamente a gente produzia e não tinha rendimento. Através da Apaspi, hoje a gente tem bastante oportunidade”, afirmou.

Se Gean e Valquiria hoje têm muitas certezas sobre os acertos que tiveram, uma delas é a de que, sem a juventude, o projeto não seria viável. Por isso, a metodologia usada para atrair a juventude do quilombo para se adequarem ao Sistema Agroflorestal foi mostrar que só é possível construí-la de forma coletiva. 

Gean em oficina de formação com crianças e jovens. Crédito: Apaspi

“Hoje trabalhamos com jovens e trabalhadores multiplicadores, que plantam as unidades de experiência participativa, que servem como vitrines para que outros agricultores possam conhecer”, disse Gean. Ele se refere aos módulos de formação, criados para acompanhar as culturas do plantio à colheita.

“Nossa juventude é como se fosse nossa ferramenta, são eles que vão levar a produção agroecológica adiante”, ensina, acrescentando que atualmente eles se organizam em grupos locais, cada um jovem rural no papel de animar o grupo, fazer apresentação das atividades, dos protocolos de plantio e manejo. 

Esses jovens no geral são agricultores e têm o papel de articulação para estimular e inserir outros no processo. “Temos feito busca ativa dos jovens, filhos e filhas de pequenos agricultores quilombolas, para experienciar os processos agroecológicos”, detalha.

O desafio de produzir e preservar a Caatinga

Conviver com a casa comum — como costumam falar os agricultores do quilombo ao se referirem à Caatinga, que tanto respeitam, admiram e defendem — é questão sentimental para a maioria de seus habitantes. Por isso, o trabalho da Aspapi não se concentra apenas na produção de toneladas de alimentos, mas também na conscientização política de que é preciso mudar a nossa relação com o meio ambiente. 

Pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), Federal da Paraíba (UFPB), Federal de Pernambuco (UFPE), Federal de Viçosa (UFV) e do Instituto Federal Goiano (IFGoiano) divulgaram, em 2023, um estudo preocupante acerca da relação da Caatinga com as mudanças climáticas. Segundo os pesquisadores, a previsão é que, até 2060, haja uma redução de pelo menos 40% no volume de chuvas na região. Esse cenário coloca a Caatinga como um dos biomas mais ameaçados pelas mudanças climáticas. 

Um cenário que torna ainda mais importante pensar soluções capazes de recuperar o que já foi destruído. “Tanto na produção de pequenos animais como de alimentos,  o semiárido precisa avançar para os sistemas agroflorestais. Respeitar a Caatinga, lutando para manter ela viva é nosso grande desafio hoje na região”, observa Gean, ao tempo em que chama a atenção para a qualidade do bioma e suas ameaças. 

“Por ter sido degradada ao longo dos anos, a caatinga, que é um bioma único, tem dificuldade enorme de se regenerar por si só. Então a agrofloresta entra tanto com estratégia de regeneração das áreas degradadas como com preservação e manutenção das áreas  que existem”, explica, acrescentando que essa foi a grande defesa que trouxe para o quilombo, da discussão dos Sistemas Agroflorestais como ferramenta de convivência com o semiárido.

*O Ocorre Diário é uma plataforma de comunicação popular e colaborativa do Piauí que ousa sonhar-fazer uma comunicação das potências emancipatórias, dialógicas, plurais e decoloniais da informação. 

**Quem são, o que pensam e o que fazem jovens ativistas do meio ambiente de territórios periféricos, rurais e ribeirinhos do Nordeste? É com essa provocação que o projeto Redação Nordeste publica a série especial de cinco reportagens “Jovens ativistas socioambientais do Nordeste”. Participam deste trabalho conjunto as organizações de jornalismo independente Afoitas (PE), Conquista Repórter (BA), Mídia Caeté (AL), Ocorre Diário (PI) e Mangue Jornalismo (SE).

Enquanto o aumento da temperatura provoca efeitos mais rápidos sobre o planeta do que as decisões mundiais para atenuar a crise climática, projetos inspiradores se fortalecem em diversos territórios por uma questão de sobrevivência. Representando as populações mais atingidas pela crise e pelas injustiças socioambientais, jovens marcam presença e assumem a linha de frente para transformar o lugar onde vivem. Nesta série coletiva, você vai conhecer a história e a capacidade de mobilização e organização da juventude e de organizações e movimentos locais. 

A Redação Nordeste é a união de organizações de jornalismo independente de oito estados nordestinos, que consolida um trabalho cooperativo, integrado e aprofundado de jornalismo com foco nas pessoas. Esta rede nasceu em 2023 e recebe o apoio da OAK Foundation e International Fund for Public Interest Media (Ifpim).

Edição e mentoria de Raíssa Ebrahim, da Marco Zero

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É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.