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Sementes crioulas: como as prefeituras podem ajudar os agricultores a produzirem alimentos saudáveis

Jeniffer Oliveira / 02/10/2024
A imagem mostra uma mulher jovem e parda ao ar livre segurando uma grande tigela cheia de grãos de feijão. Ela está vestindo uma camiseta vermelha com algum texto e gráficos, mas os detalhes específicos estão obscurecidos. A mulher usa óculos escuros e boné, o que oculta parte do seu rosto. Ao fundo, há uma estrutura que parece ser uma casa com uma porta azul e paredes brancas, e várias sacolas estão empilhadas contra a parede dessa estrutura. O céu está claro com poucas nuvens, sugerindo que pode ser um dia ensolarado.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O Programa de Sementes de Lagoa Seca, criada pela lei municipal 206/2014, a “lei de sementes”, foi o primeiro a ser implantado na região da Serra da Borborema, semiárido paraibano. Exemplo para municípios vizinhos, o programa garante o cultivo, o repasse e o beneficiamento das “sementes da paixão” – como se chama na região as sementes crioulas, produzidas pelas famílias agricultoras que adotam a agroecologia -, assim como veta a compra e distribuição de sementes transgênicas e híbridas pela gestão municipal.

Esta conquista para as famílias agricultoras do território só aconteceu a partir da luta e da organização de diferentes atores do município, como o sindicato dos trabalhadores rurais e as organizações da sociedade civil. Foi o então vereador Nelson Anacleto, à época filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), quem propôs e aprovou a lei na câmara dos vereadores da cidade, mas a ideia só saiu do papel em 2021, quando o próprio Anacleto assumiu a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do município.

Foram mais de seis anos para que a lei fosse efetivamente implantada, e isso só aconteceu, segundo Anacleto, a partir da vontade política da gestão municipal. “Tem que ter decisão política. Você tem que ter a lei formal, a mobilização social e a decisão política”, reforça o ex-secretário, atual candidato a vereador da cidade, pleiteando um quarto mandato.

A decisão política, no caso de Lagoa Seca, se materializou no momento em que a prefeitura comprou aproximadamente 1.400 quilos de sementes crioulas em outros municípios para viabilizar a implantação do programa, pois a região vinha passando por uma seca que durou quase dez anos. Com isso, foram beneficiadas em torno de 120 famílias agricultoras e, a partir do segundo ano, não houve mais necessidade de comprar sementes de outros municípios, pois, mesmo com a seca, os agricultores conseguiram uma boa produção. No último levantamento, realizado em 2023, o Programa Municipal de Sementes conseguiu comprar cinco toneladas das famílias agricultoras locais.

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A apenas nove quilômetros de Campina Grande e com aproximadamente 28 mil habitantes, Lagoa Seca possui dois terços da população residente na zona rural, sendo essencial uma política pública que fortaleça estes territórios e os sistemas alimentares baseados na agricultura familiar e agroecologia.

Mas o programa vai além de apenas entregar as sementes. Desde a implantação, é realizado o acompanhamento para do plantio, manejo e controle de qualidade dessas sementes para assegurar a produção e manutenção do programa pelos anos seguintes. Noaldo de Andrade, atual secretário de agricultura, explica que a seleção das famílias escolhidas para receber as sementes é feita com base nesse acompanhamento.

Um dos agricultores familiares do território que receberam as sementes crioulas foi William Gertrude dos Santos, de 34 anos, que havia perdido sua plantação de batatas doce após o período de seca. Com as sementes e o auxílio teórico e técnico da prefeitura e da AS-PTA (organização não governamental que atua na regiçao há 31 anos no fortalecimento da agricultura familiar e do desenvolvimento rural sustentável), o agricultor viu os bons frutos aparecerem.

“Os primeiros anos também de cultivo foram excelentes, porque eu peguei bons anos de inverno. Plantei feijão preto, o feijão carioca também, e coloquei em torno de 10 sacos para a secretaria de agricultura. O milho também foi uma bênção, as espigas eram muito bonitas”, afirma William. “A vizinhança ficou admirada por eu conseguir cultivar uma lavoura livre de veneno, livre de qualquer tipo de agrotóxico”.

A imagem mostra um homem branco, de meia idade, de cabelos curtos e óculos de grau pé sob um terraço com telhado com telhas expostas, segurando três espigas de milho. As espigas têm grãos amarelos brilhantes e estão parcialmente descascadas, revelando os grãos. A pessoa está vestindo uma camiseta rosa com a palavra “destaque” impressa em letras brancas. Ao fundo, há vegetação e uma estrutura que sugere um ambiente rural ou de fazenda.

William não esconde a satisfação com a produção das sementes crioulas

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Com o programa municipal de sementes os agricultores voltaram a preservar e abastecer não só os bancos comunitários de sementes, mas os banco de sementes familiares. Eles possuem sementes suficientes para vender à prefeitura e guardar para os próximos plantios. Os bancos comunitários de sementes são essenciais para agricultura familiar na região da Borborema. Estima-se que a região possui 60 bancos de sementes abastecidos pelos próprios agricultores.

Exemplo a ser seguido

O que William vivenciou em Lagoa Seca, também é a realidade da jovem agricultora do município de Montadas, Valéria dos Santos, de 26 anos. Filha e neta de agricultores – assim como Willliam -, ela perpetua os conhecimentos familiares no manejo das sementes crioulas. A jovem, que começou plantando no sítio dos pais, hoje possui dois hectares dedicados ao cultivo de alimentos saudáveis com o uso de sementes crioulas.

“Hoje em dia é difícil a gente encontrar uma semente que seja livre de transgênicos, livre de produtos químicos que são colocados na semente para conservar. Então a gente ter essa oportunidade de ter acesso a uma semente de qualidade é excelente”, explica Valéria.

Oa esforços para replicar em Montadas um programa municipal de sementes semelhante inspirado na experiência de Lagoa Seca, aconteceu a partir da articulação do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável para implantar seu próprio programa de sementes, em parceria com representações da sociedade civil, do sindicato dos trabalhadores rurais, da prefeitura e da Empresa de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária (Empaer).

Com o aporte de recursos inicial da prefeitura, o programa de sementes de Montadas teve início com a compra de 1.200 quilos de feijão e 600 quilos de milho. A distribuição ocorre com dez quilos de feijão e cinco quilos de milho para cada agricultor fazer o seu plantio, mas requer a devolução de um quilo a mais do que foi retirado, ou seja, se o agricultor recebe dez quilos, ele precisa devolver 11 quilos para reforçar o banco de sementes. Pelo menos 150 famílias agricultoras são beneficiadas diretamente pelo programa.

“No ato da distribuição o agricultor nos dá algumas informações, tipo o endereço dele, a localidade e a comunidade onde ele vai realizar o plantio e a gente acompanha. Geralmente a gente faz algumas visitas aos sítios no período de colheita para saber como é que tá a colheita das famílias, se estão tendo uma boa produção. Depois a gente vai novamente informando a eles que já estamos recebendo a semente”, relata Edmilson Vieira, secretário de Agricultura de Montadas e integrante do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável.

A imagem mostra várias sacolas de papel marrom alinhadas em fileiras, estendendo-se ao fundo onde se tornam menos nítidas devido à profundidade de campo. Cada sacola tem um texto impresso que inclui as palavras “SEMENTES DA PAIXÃO” e “10 kg”.

Nos 13 municípios da Borborema há, pelo menos, 60 bancos comunitários de sementes

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Diferente de Lagoa Seca, o município de Montadas tem um desafio a mais no plantio do milho da paixão. Segundo os agricultores, no território existe um latifundiário que possui criação de aves e, para alimentá-las, planta milho transgênico. Por isso, o milho crioulo de propriedades vizinhas está sempre correndo o risco de ser contaminado.

As sementes transgênicas são oriundas de organismos geneticamente modificados (OGMs), isso quer dizer que foram alteradas geneticamente, com inclusão de DNA de outra espécie. Geralmente são utilizadas por ter uma resistência maior a pragas e tolerância a herbicidas. Se plantadas próximas a lavouras orgânicas ou agroecológicas podem contaminá-las por diversos fatores. No caso do milho, ocorre a polinização cruzada de forma natural, através do vento e das abelhas, por isso a dificuldade em plantá-los em territórios próximos de lavouras de transgênicos.

Resgate do plantio das batatinhas sementes

Montadas já foi conhecida como a terra da batatinha, mas na época da “revolução verde”, onde se realizava financiamentos rurais com a distribuição de pacotes de agrotóxicos, as condições de plantio ficaram difíceis para este tipo de alimento. Com isso, a babatinha ficou quase extinta entre os agricultores familiares.

Nos últimos anos, um forte movimento dos sindicatos do Polo da Borborema – rede de sindicatos rurais e 150 associações comunitárias de 13 municípios – para resgatar o plantio das batatas, agora, de forma agroecológica. Hoje, aproximadamente 25 famílias agricultoras já trabalham com esse cultivo, incluindo William e Valéria, mencionados acima.

Entre as iniciativas para resgatar o cultivo das batatas é a implementação de uma unidade frigorífica no Banco Mãe de Sementes, no município de Lagoa Seca, que possibilita que os agricultores armazenem suas batatinhas sementes para o próximo período de plantio. O estímulo da produção possui a articulação dos sindicatos do Polo, da AS-PTA, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e de outras organizações parceiras.

As mulheres agricultoras na disputa eleitoral

A articulação sindical do Polo da Borborema tem sido essencial para as conquistas dos agricultores e agricultoras da região, conhecida pelas lutas sociais conduzidas por Margarida Maria Alves, liderança assassinada por fazendeiros em 1983. Nestas eleições, várias mulheres agricultoras, com atuação como sindicalistas, tentam se eleger para as câmaras de vereadores dos seus municípios com o objetivo de defender e fortalecer os princípios da agricultura familiar e agroecológica.

Em Esperança, Marizelda Salviano (foto à esq.) foi vice-presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agriculturas Familiares, mas se afastou do cargo para pleitear uma vaga como vereadora filiada ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Com um histórico de militância, Marizelda iniciou sua trajetória nos movimentos sociais e, há 14 anos, é uma das principais lideranças entre os agricultores da região.

“A gente vai estar na câmara pelo agricultores para trabalhar na região da Borborema pela agroecologia, com o movimento de mulheres, para travar o debate pelo não uso de transgênicos e do não uso do veneno. Eles que plantam e colhem e muitas vezes não têm como vender. É uma luta nossa quando a gente olha para o todo, quando o governo não favorece as sementes crioulas”, afirma.

Se for eleita, uma das suas propostas é criar em Esperança uma lei semelhante a de Lagoa Seca e Montadas, para que os agricultores tenham as sementes das paixões preservadas e valorizadas para garantir a soberania e segurança alimentar no município. “É garantir que essas sementes sejam preservadas, mas também identificar como levar esses alimentos para a mesa das famílias e para a merenda escolar”, assegura Marizelda.

Segundo a candidata, hoje o município tem aproximadamente 35% da merenda escolar oriunda da agricultura familiar. Uma de suas metas é chegar aos 100%, garantindo a alimentação saudável das crianças e adolescentes do município. Também há a intenção de levar os alimentos dos produtores locais para os outros equipamentos públicos que, de alguma forma, distribuem alimentos.

Não muito distante de Esperança, a sindicalista Ana Paula Cândido (foto à dir.), também está na corrida por uma vaga na câmara de Queimadas pelo PP. A base da sua campanha se estrutura na valorização de projetos voltado para o homem, a mulher do campo e a juventude rural. Uma das propostas é que os agricultores possam produzir suas sementes com destino certo, sendo compradas pela a secretaria de agricultura e distribuídas nos bancos de sementes comunitários que já existem.

“E com esse projeto, a economia vai girar dentro do nosso município, onde os agricultores vão produzir, vão ter recurso em dinheiro, mas também os outros agricultores vão ser beneficiados com as sementes de boa qualidade para o plantio, para a própria alimentação dos animais”, afirma Ana Paula. Segundo ela, o sindicato dos trabalhadores rurais já tentou emplacar este projeto na câmara municipal com os atuais vereadores, mas não obteve sucesso.

Para fortalecer ainda mais a comercialização dos produtos oriundos da agricultura familiar, Paula também fala da certificação a partir do selo SIM, o Serviço de Inspeção Municipal. “Que a gente possa produzir os nossos alimentos, as poupas, os derivados, mas que a gente possa colocar na merenda escolar, mas a gente tem uma dificuldade dentro do município”, reforça. Para as áreas rurais, a candidatura também propõe o reflorestamento de áreas afetadas pelo desmatamento e políticas de cuidados para os animais dos agricultores com profissionais do próprio município.

A equipe de reportagem visitou os territórios a partir do convite da Rede ATER NE e AS-PTA, que executam o Projeto Cultivando Futuros: transição agroecológica justa em sistemas alimentares do Semiárido brasileiro. A iniciativa também é desenvolvida na Alemanha pela agência de cooperação internacional Pão para o Mundo (Brot fur de Welt, nome em alemão). A ação tem financiamento do Ministério Federal da Alimentação e da Agricultura da Alemanha (BMEL, na sigla em alemão).

AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.