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por Yuri Euzébio
Incrustada em frente à igreja de Nossa Senhora da Saúde, numa das extremidades da estrada Real do Poço da Panela, zona norte do Recife, em um casarão histórico como um oásis de outros tempos, fica localizada o ponto comercial conhecido na cidade apenas como “a venda de seu Vital”. Aviso aos não-iniciados no pernambuquês: uma venda é uma bodega, ou seja, um pequeno comércio de secos e molhados.
O dono da bodega é um comerciante distante dos padrões convencionais.
Vital José de Barros, 84 anos, nasceu em 1940 na cidade de Bezerros, no Agreste de Pernambuco, e chegou ao Poço da Panela em 1964. É um sujeito caladão, que, à primeira vista, pode parecer bronco e carrancudo.
Apesar de ser poucas palavras, geralmente certeiras, sem muitos arrodeios, é capaz de fazer amigos e aglutinar pessoas de todas as classes sociais. Tanto que sua bodega se transformou em uma espécie de centro político, social e cultural do bairro.
Casado há 63 anos com Severina Firmino de Barros, 87 anos, é quando fala dela que seu lado mais doce vem à tona. “Nos conhecemos na praça de Casa Forte, ela costurava para uma família ali e era um domingo à noite”, relembrou. O casal tem seis filhos: Ângela Barros, Angélica Barros, Ricardo Barros, Rosângela Barros, Rosilda Barros e Reginaldo Barros.
Mas, de início, seu Vital estava de olho mesmo era na irmã de dona Severina. “Ela sabe disso e sabe também que eu nunca me arrependi”, conta. Já a venda veio somente alguns anos depois. “Eu trabalhava na fábrica da Pilar e morava numa casinha de aluguel, eu tinha um irmão que morava aqui no Poço e me falou dessa casinha que estava disponível aqui para vender, bem perto da dele”, disse Vital. “Vim olhar a casa e já deixei apalavrada, fui na Pilar para me botarem pra fora e eu receber a rescisão para comprar a casa, mas eles não queriam me demitir”.
Depois de uma negociação com o gerente da fábrica, Vital conseguiu a rescisão e comprou a casa no Poço. Foi assim que ele foi parar em seu endereço no bairro. “Dali fui vender doce numa bicicleta no meio do mundo para arrumar dinheiro, depois consegui um emprego na Fratelli Vita e Severina colocou um ponto pra vender umas coisinhas”, contou. Algum tempo depois, observando o sucesso da esposa nas vendas, Vital resolveu sair da fábrica de refrigerantes e trabalhar com dona Severina no comércio.
“Aí o negócio foi melhorando e o rapaz que tinha essa casa com um ponto alugado me chamou para comprar a venda aqui e eu comprei. Isso foi em 1968.”, relembrou. Vital explica que primeiro comprou só o ponto comercial da venda. “Fiquei pagando aluguel na casa e trabalhando na venda, quando foi em 1989, comprei a casa também”, lembra.
Antes de ser dono da casa que fica nos fundos da venda, Vital ficava admirando o imóvel, como quem já sabia o que viria a acontecer alguns anos depois.
De suco Tampico a caixa de fósforo, leites, ovos, feijão, pão – vendido num balaio de vime – e cerveja gelada, de tudo você encontra na venda. A bebida enraizada ele mesmo faz. Em tempos de grandes redes varejistas engolindo os pequenos comerciantes, seu Vital é também o símbolo resistente de um passado mais tranquilo e reconfortante. É na calçada da “Venda de Vital” que os boêmios, artistas plásticos, músicos, empresários e trabalhadores braçais que vivem no Poço circulam para conversar e tomar um cerveja com queijo coalho cru, um dos poucos tira-gostos disponíveis.
Por sinal, até o ano passado seu Vital também acompanhava os clientes na cerveja, mas uma internação, com sete dias na UTI, o fez abandonar a bebida. “Os médicos disseram que se eu bebesse não tinha volta mais não, então eu esqueci e tô vivendo melhor ainda”, conta.
Seu Vital preza pela lentidão e por um estilo de vida sem wifi, sem tela de televisão pendurada na parede, quase que transgressor nos tempos atuais. O QR Code pendurado num cartaz perto do balcão para pagamentos em pix é o da conta de sua filha, mas ele mesmo não tem pix. Fazendo as contas de cabeça, controla as finanças da venda com mãos de ferro, sempre atento aos clientes e ao que está sendo consumido.
Não usa zap porque prefere ligar para as pessoas ou conversar olhando nos olhos. A quem sugere uma reforma ou ampliação para “modernizar” a venda, seu Vital nega veemente e responde que está satisfeito do que jeito que está.
Desde criança, Vital mantém uma relação íntima com o forró, já que ainda em Bezerros costumava ouvir sempre no rádio as melhores canções do ritmo. “Toda vida ouvi forró, acho uma das danças mais bonitas que tem. É uma coisa maravilhosa para quem sabe apreciar, porque diverte muito”, disse.
Há 18 anos, seu Vital recebe na venda os músicos da banda Regente Joaquim para um forró no seu salão. Tudo começou de maneira despretensiosa, como parece ser a tônica do estilo de vida dele.
“Tudo começou em um aniversário de seu Vital em 2008, depois disso fomos fazendo forró lá com maior regularidade”, relembra Geraldo Lima Júnior, o Gerrá, servidor da Justiça Federal e zabumbeiro da Regente Joaquim. O músico detalha que Seu Vital e Dona Severina fazem aniversário no mesmo dia 1º de maio e costumam dar sempre uma grande festa para comemorar juntos na venda.
Foi em uma dessas festas de aniversários que começou a tradição do forró na venda de seu Vital, desde então, todas as sextas-feiras dos meses de maio e junho são embaladas pela Regente Joaquim. A banda nasceu no salão de seu Vital, quando ainda não tinha nem nome, mas nesta sexta-feira, véspera de São Pedro, pela primeira vez vai tocar no palco oficial da prefeitura montado na frente da bodega.
“A gente fazia um forrózinho lá, mas não tinha nome ainda. Aí fomos chamados para tocar numa festa do Eu Acho é Pouco”, recordou Adriano Chiló, sanfoneiro e vocalista do grupo. “Um dia Palula chegou lá em seu Vital para os ensaios dessa festa com umas seis folhas de partituras, porque ele estudava música na federal e tinha aula de regência lá, aí juntamos os dois: Regente Joaquim, porque ele se chama Joaquim”, completou.
Palula é Joaquim Palula, o guitarrista. A banda também conta com Alessandra Lisieux no triângulo, João Flávio Neto no baixo e Nylber Silva na rabeca. Para Chiló, a grande diferença do forró de seu Vital está na essência do lugar. “Eu acho que primeiro de tudo aquela mercearia traz um universo do agreste da gente, do sertão, parece o interior da gente”, explicou o sanfoneiro.
“Outra coisa é a própria figura de Vital que é folclórica, digamos assim, e todo o mundo conhece e gosta. Além de que aquilo é a extensão da casa dele, não é um bar simplesmente não”, completou o músico.
A Regente Joaquim não recebe cachê para tocar na venda, apesar de seu Vital insistir em pagar algo, eles aceitam apenas cerveja como contrapartida do forró e um chapéu passa ao fim das apresentações para doações espontâneas. O único pedido que seu Vital faz é que o show termine com a música Índia, uma guarânia cuja versão em português foi gravada por Roberto Carlos, sua música favorita. Os músicos também fazem questão de não usar microfone para aproximar o público e todo o mundo cantar junto.
Segundo Gerrá, o que explica esse fenômeno da venda de seu Vital é a autenticidade do dono. “O sentimento que eu tenho é que aquilo é um pedacinho do interior, hoje no Recife você não tem outro lugar igual. Isso traz uma lembrança vivida, uma saudade do que já viveu, você sente isso ali”, disse. “Ele é uma pessoa muito autêntica, ele é aquilo ali, daquele jeito. A turma fica querendo mudar a venda e ele é aquilo ali, não tem essa cabeça de eu quero sempre mais, mais. Vital não, o que ele tem já satisfaz ele, por isso ele é tão querido”, explicou o zabumbeiro.
Além do forró, o Guaiamum Treloso Rural também teve início na venda. Era uma prévia de carnaval criada no salão da venda e que cresceu a ponto de virar um festival de música alternativa no bairro de Aldeia. Outro bloco que nasceu ali na venda foi Os Barba (é isso mesmo, sem concordância nominal).
Os Barba surgiu em 2001, na calçada da venda de seu Vital, como brincadeira entre amigos barbudos da vizinhança: Maurício Silva, Evaldo Moura e Samarone Lima.
O espírito da troça era coletivo. Todos participavam, tudo era discutido ali na calçada de Vital, tendo Evaldo Moura, o Naná, como principal liderança. Segundo Samarone Lima, poeta e jornalista hoje radicado em São Paulo, eram sempre dois panelões de feijoada, um garrafão de 20 litros de Pitú, a mesa de frutas, a orquestra, as 200 camisas pintadas por vários amigos artistas, a coroação do rei dos Barba, e muita festa.
“A eleição do Rei Barba era uma noite divertida, a pintura das camisas era uma festa inesquecível, e todos vivíamos nossa prévia no sábado antes do carnaval com rara felicidade. No domingo após a prévia, era a vez dos pequenos com os Barbinha”, relembra Samarone.
Se o forró e a decoração da venda continuam sob controle de Vital, o mesmo não se pode dizer do bloco: “a cada ano, aumentava a quantidade de gente na nossa pequena festa. A partir de um certo tempo, a beleza foi se perdendo. A multidão foi, aos poucos, engolindo uma festa comunitária”, lamenta Samarone.
“Virou outra coisa, não tem mais muita graça não”, admite Angélica Barros, filha mais nova de Vital e testemunha dos Barba desde o princípio. Angélica explica que, originalmente, que os Barba não saía em desfile, ficava sempre na concentração em seu Vital. “Agora vem uma galera que não tem nada a ver, esse ano mesmo teve briga, a gente teve que fechar as portas da venda. Foi horrível”, conta Angélica.
Além de tudo isso, o artista plástico pernambucano Cavani Rosas, 71 anos, já transformou a venda em arte duas vezes. Fez dois desenhos: um de seu Vital e depois, a pedido do mesmo, um dele acompanhado de dona Severina.
“Eu conheço ele há uns 40 anos, fiz o desenho dele há um tempo. Recentemente fiz esse outro, porque ele queria muito que ela estivesse no desenho, aí eu fiz e reproduzi para ele vender lá e ajudar”, explica o artista.
De acordo com Cavani, a figura de seu Vital é chave para entender o Poço da Panela. “Ele é o ponto central do Poço, tudo gira ao redor dele. É a coisa mais importante que existe ali, acho que mais do que a igreja porque a frequência das pessoas lá diariamente, e no forró é muito grande. É impressionante e resiste ao tempo”, resumiu.
Além disso, há inúmeros poemas, crônicas, textos e contos que citam a venda de seu Vital e eternizam o espaço. “Eu moro aqui há mais de 60 anos, meus meninos nasceram aqui, se criaram, estudaram, foi tudo aqui e eu não tenho um inimigo nesse bairro graças a Deus, esse é o meu maior presente”, diz um orgulhoso Vital.
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